
Queridos amigos,
Não se encontra explicação para o silêncio dos historiadores. José Joaquim Lopes de Lima, vê-se à légua, não fala de cor, era um administrador colonial experimentado e oferece-nos nesta sua digressão por Cabo Verde e Guiné um documento que inventaria, na lógica que se irá consolidar décadas depois, a gama de conhecimentos sobre as gentes, os recursos, a ocupação (fundamentalmente a falta dela), quem era quem nas praças e nos presídios. É um relato algo complementar à Memória sobre a Senegâmbia Portuguesa que um filho da terra, Honório Pereira Barreto, enviará para Lisboa. E assombra como Lopes de Lima propõe soluções, rende-se aos fascínios da natureza e não lhe doem as mãos a falar de tristes realidades como será o caso daquele exército de maltrapilhos e meliantes.
Uma peça singular para a historiografia guineense, da primeira metade do século XIX. De leitura obrigatória. E também quando se lê o que ele escreve sobre Cabo Verde (territórios interrelacionados na época) também se questiona como é que é possível a historiografia cabo-verdiana poder silenciá-lo.
Um abraço do
Mário
Guiné, o seu primeiro grande relato no século XIX:
O capitão-de-fragata da Real Armada José Joaquim Lopes de Lima (2)
Mário Beja Santos
José Joaquim Lopes de Lima foi oficial da Armada e administrador colonial com vasto currículo, governou a Índia e Timor e Solor, entre outras responsabilidades. Cavaleiro da Torre e Espada, membro do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima, a Rainha D. Maria II, deram-lhe uma incumbência graúda, que ele abraçou, dando à estampa seis volumes que a pretexto da estatística das possessões portuguesas revelou-se um emérito plumitivo, um viajante curioso e documentado. O primeiro volume é dedicado a Cabo Verde e às suas dependências na Guiné Portuguesa. Tanto quanto sabemos, e independentemente de na época ser publicada a memória sobre a Senegâmbia Portuguesa, de Honório Pereira Barreto, outra joia narrativa e peça historiográfica incontornável, o relato de Lopes de Lima é o primeiro grande documento sobre a Guiné do século XIX, recorde-se que a data de publicação é 1844.
Logo no proémio, bem curiosa é a carta que Lopes Lima endereça a José Falcão, com data de 15 de junho de 1844:
“É certo que há cerca de dez anos se tem talvez escrito mais sobre as colónias portuguesas do que em todo o século passado; mas todos os escritores do tempo, ricos de saber, tropeçam a cada passo em erros, dúvidas, e lacunas, por falta de dados estatísticos seguros, a que se apegam (…) Cada um destes livros, depois de uma ligeira introdução histórica, será dividido em duas partes, contendo a primeira a estatística geral da respectiva Província e a segunda a estatística topográfica de cada uma das suas divisões naturais, por capítulos. E refere que na primeira parte se dá realce à geografia, à divisão do território, à população, ao clima, solo e produções, indústrias, legislação, força pública, religião, instrução, rendimento e despesa; e depois proceder-se-á a uma notícia geral do país”.
Prova comprovada que estudou e inventariou, é o rol que ele nos dá das plantas e dos animais. Nas plantas, é minucioso, e parece um tanto inacreditável que ele tenha visto o que escreve: abóbora, agrião, alface, ananás, anil, arroz, árvore de cera, bambu, bananeira, beldroega, cabaceira ou calabaceira, café, papaia, feijão, figueira-brava, inhame, laranjeira, limoeiro, malagueta, manga, melancia, milho-miúdo, palmeira de cola, palmeira de dendém, pau de incenso, pepino, poilão, cibe, tamarindo, tomateiro. E passando para os animais, outro rol em extenso: boi, búfalo, cabra, cão, carneiro, cavalo, cavalo-marinho, chacal, elefante, fritambá (uma espécie de antílope), gazela, javali, leão, lebre, lobo, macacos, onça, porco, Sim-sim, tigre (?) e veado.
É lapidar quando chega a altura de falar da educação, nada de ilusões: “Não tratarei em separado da instrução pública nas Praças e Presídios da Guiné: que é coisa de que lá nunca houve nem o menor vestígio: os filhos da Guiné, que têm instrução, foram educados fora do seu país; e algum que de lá nunca saiu, e sabe ler, escrever e contar, obteve o ensino (à custa de presentes) de algum oficial ou inferior da guarnição da respectiva Praça. Mais adiantados estão os Mandingas, sabem quase todos ler e escrever árabe”.
Ao esmiuçar quem habita na Guiné, diz que a população possui três classes:
“1 – dos poucos negociantes brancos, pretos ou mulatos que vivem honestamente à Portuguesa ou à Inglesa ou à Francesa, enfim, quase à Europeia, acomodando-se às práticas ou exigências dos povos brutais, há por vezes belas da Guiné, activas e laboriosas, e diz-se que destas ligações têm nascido mui grossas fortunas;
2 – soldados, mal vestidos, mal nutridos, mal disciplinados, enervados pelo vício, e pelas doenças inseparáveis dele, que ali há longos anos vegetam languidamente; por vezes, se tem procurado melhorar esta miserável milícia (composta de malfeitores de Portugal e soldados incorrigíveis, vadios e ratoneiros de Santiago); mas esses melhoramentos serão sempre de pouca duração sem um sistema novo – uma reforma radical, começando por oficiais e sargentos;
3 – os chamados Grumetes, gentios baptizados, oriundos de diversas nações, que vivem apinhados em casa-palhoças à roda dos nossos fortes, servindo como marinheiros as canoas, e muitas vezes corretores no comércio interno; estão sujeitos aos governadores das praças, contra os quais amiúde se revoltam. Estes negros só mostram ser cristãos em ir à missa, quando a há, e misturam palavras santas da nossa religião com as erróneas da sua gentilidade; em tudo o mais, vivem soltamente, entregues à embriaguez e à libertinagem. Quando se casam, é mister que a noiva ao sair da igreja venha escoltada por gente bem armada, porque é de uso acometerem o préstito e roubam à viva força a desposada, a qual tem depois de ser resgatada a aguardente”.
Lopes Lima deixa bem claro que são mais os estrangeiros a fazer negócio na Senegâmbia que os portugueses:
“Há todo o fundamento para supor que as exportações da Guiné Portuguesa estão entregues a estrangeiros; além de dois ou três navios americanos, há umas vinte e tantas escunas, e chalupas inglesas, e francesas, da Gâmbia e da Goreia, que fazem duas ou três viagens por ano, levando aos nossos portos (e às vezes directamente às povoações do gentio dentro dos nossos rios) carregações valiosas, e transportando em retorno géneros de maior valia ainda, que os poucos negociantes das nossas praças lhes aprontam de boa vontade, porque disso tiram lucros razoados (Portugal é que não os tira), e com os quais carregam grandes navios para Inglaterra e França.
Este mal vem de longe: já em 1594 se queixava André Alvares de Almada que os portugueses residentes em Guiné andavam lançados com os ingleses, e franceses, que os traziam muito mimosos: e a razão disso era então, e é hoje, o terem os portugueses de cá deixado de ir àquele resgate, como o mesmo Almada lamenta, queixando-se de que o ouro ia fugindo para outras terras por não haver nas nossas com que o comprar, pois que se passavam oito anos sem irem lá os navios: é o mesmo que hoje acontece; o mesmo que tem sempre ali acontecido desde que as carregações de escravos foram pelos nossos reputadas única exportação de Guiné”.
E a seguir, depois de elencar as forças militares existentes vai falar das fortificações.
(continua)
Carta hidrográfica do golfo da Guiné, de José Joaquim Lopes Lima, por amabilidade da Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa
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Nota do editor
Último poste da série de 30 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21709: Historiografia da presença portuguesa em África (245): Guiné, o seu primeiro grande relato no século XIX: O Capitão-de-Fragata da Real Armada, José Joaquim Lopes de Lima (1) (Mário Beja Santos)