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domingo, 28 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25117: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (16): Excertos do Diário de um 'Bate-chapas'


Guiné > Zona leste > Região de Gabú > Piche > CCAÇ 3546 (1972/74) > Coluna logística, vinda de Piche, a chegar à Ponte Caium... À frente uma Chaimite,  seguida de uma White...  

Foto do álbum fotográfico do nosso camarada Jacinto Cristina (natural de Figueira de Cavaleiros, Ferreira do Alentejo), o mais famoso padeiro do CTIG, esteve mais de um ano no destacamento da Ponte de Caium.

Foto: © Jacinto Cristina (2010) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].





Imagem da parada de Bajocunda, em dia de chuva... Foto cedida por Amílcar Ventura, ex-fur mil mec auto, 1ª CCAV / BCAV 8323 (Pirada, Bajocunda, Copá, 1973/74).  

Foto: © Amílcar Ventura (2010) Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Contos com mural ao fundo (16): Excertos do Diário de um 'Bate-chapas'

por Luís Graça


Excertos do Diário de um 'Bate-chapas'...Trata-se de uma alcunha, "Bate-chapas", o que era vulgar na tropa e na guerra. A começar pelo Spínola, o "Caco Baldé". Toda a gente tinha alcunhas. E algumas bem brejeiras, se não mesmo pornográficas. 

Dizem os entendidos que a palavra vem do árabe al-kunia, sobrenome... (Significa: epíteto, geralmente fundado nalguma particularidade física, moral ou comportamental do indivíduo ao qual ele se atribui.) 

Neste caso, o indivíduo és tu, fotógrafo amador que, nas horas vagas, fazias retratos dos teus camaradas, na Guiné, tendo um pequeno laboratório de fotografia, a preto e branco, onde revelavas os negativos. 

Frequentemente usavas a expressão  "Vamos bater uma chapa"... Daí a alcunha...

Estes excertos fazem parte de um texto que, se um dia passar no crivo da crítica,   talvez  ainda possa vir a ser publicado como livro de memórias de um ex-combatente, numa  singela edição de autor.  (
Só tens dúvidas sobre o eventual interesse que as tuas memórias poderão ter para a posteridade; mas nesse caso, é a posteridade que cabe decidir, )


2/3/2018

Dia de inverno. Não admira, estás em março. E a primavera é só daqui a três semanas. E parece que vai continuar assim nos próximos dias. Partidas da meteorologia. Ou nem por isso. Se há algo que é previsível (ou devia sê-lo) é o tempo. Razão por que há as previsões meteorológicas e os meteorologistas. Ciência matemática, garantem-te, o que não quer dizer exata. Como a ciência militar, que é arte e engenho...

Dantes, qando eras miúdo,  pensavas que era o São Pedro quem mandava nos céus e arredores. Metiam-te medo com o dilúvio e a arca de Noé na catequese. Santa ignorância, quando se é puto. Quem te metei isso na tua cabeça,  essas patranhas ?  O senhor abade, a catequista, a professora (cresceste na aldeia)... 

Agora parece que já destronaram o santo, não havendo ninguém de respeito que mande nesta... "merda" cá em baixo. Anda tudo desregulado: o tempo, o clima, a economia, os quatros humores, a saúde, a cabeça dos humanos… Até as estações do ano andam trocadas.

Quando eras puto, havia quatro estações, e o Natal era no inverno, e fazia frio, e caía neve. Ou, pelo menos, a água gelava no fontanário da aldeia da tua mãe. 
Na Guiné, no teu tempo, havia duas estações, dividindo o ano ao meio: a das chuvas (de maio a outubro), e a do tempo seco (de novembro a abril). O mundo dual é sempre mais simples.

E quando as primeiras chuvas caíam era uma explosão de vida e de alegria. Lembras-te dos milhões de insetos que caíam no chão (e no prato da sopa, se era à hora do rancho). É das imagens de rara beleza que tu guardas de África, a alegria de miúdos e graúdos que vêm para a rua "embebedar-se de água". Literalmente, "embebedar-se de água". Tens pena de nunca ter tirado uma "chapa" a cenas "bíblicas",  como esta.

Até tu, ó "Bate-chapas", pé de chumbo, vinhas para a rua, no meio da tabanca, dançar com os "djubis", as bajudas e as mulheres grandes. Grande tonto!... Mas, de facto,  nunca te lembraste de tirar umas "chapas" desses momentos que, afinal, eram dos mais felizes da vida na Guiné, os primeiros dias de chuva!... E o cheiro que  a terra molhada recendia!...

Reflexão amarga, quando pensas nesse tempos, de há 50 anos atrás: hoje o deserto avança, e
stás a dar cabo da tua casa, do teu chão, do teu teto, da tua terra, dos teus rios, dos teus mares. Aqui  e na  Guine, pelo que te têm  contado, a malta que lá voltou..  A fauna e a flora, as criaturas de Deus, sofrem sem terem culpa, à exceção do bicho  homem.

Pintem-no de todas as cores, para que ele apareça ainda mais feio, fero e mau, neste caso o "diabo branco" que metia medo aos "djubis" na "festa do fanado"!… 

O povo precisa, em todas as culturas, da figura de um diabo, ora branco, ora preto, ora vermelho,  que simbolize o mal absoluto, que aterrorize, mas que também brinque com a gente. Como os caretos transmontanos da tua infância.

Em dias assim, o que te resta é meter-te num centro comercial, o mais perto de casa, com estacionamento à borla, luzes, lojas, ar condicionado, ... e o formigueiro humano, 
gente tão solitária como tu,   cada um no seu carreiro, como a formiga,  subindo e descendo escadas rolantes...

Enfias-te num cinema, dantes ia-se para a tasca, o homem, ou a igreja, a mulher. A oferta é muita mas a maior parte é lixo. Puxas dos cartões, à cata de descontos. Sempre dão para as pipocas. Afinal, ser velho  é um "privilégio"  nesta sociedade!....  Sénior, se faz favor
....Veterano!....

Não sejas intelectualmente arrogante. Se o lixo está em cartaz, é porque há clientes, há público para consumir o lixo. Ainda por cima pagam para comer lixo. 

Não sejas mau, da tua parte também és um consumidor de lixo, seja cinema, sejam salmões da Noruega,  ou douradas da Grécia, ou nozes da Califórnia,  ou as mensagens de gente megalómana ou mesquinha  nas redes sociais. (Felizmente, e para bem da tua saúde mental, eliminaste a tua conta no Facebook.)... Sem esquecer  o  futebol ou as pregações evangélicas ou os "sites" pornográficos. Ou os "best-sellers" de Natal. O último romance do...  "Ah!, Ainda não o leste, bolas, não sabes o que estás a perder ?!... Devias ter lido, está no 'top ten'.... É o máximo!"...

Em suma, o que se vende é o que é badalado, o que é visto na televisão.   Claro, há uns gajos de fato completo e gravata que gozam à brava com isto tudo, e vão aumentando as suas contas bancárias e fortalecendo as suas redes de poder e de influência. As lojas e as redes sociais estão cheias de lixo, barato, a preço de saldo, que tu compras. 

 E "a malta não olha a preços, quer é descontos"… e viver, freneticamente, o cagagésimo de segundo do presente... que amanhã já será passado. E pesado.

"O último a morrer que feche a tampa do caixão!", lembras-te do sacana do quarteleiro que nunca saia do quartel, era a função dele,  ficava a guardar as armas e as bagagens, quando a gente saía....  Mas  tinha um medo do caraças de  um eventual ataque ao quartel com foguetões 122 mm. (Não o dizia nem o confessava, mas percebia-se.)

Lembras-te, ó "Bate-chapas"?!... Foi a frase publicitária de maior sucesso que tu criaste lá no quartel: "A malta não olha a preços, quer é descontos"… Tão atual, hoje em dia, cinquenta anos depois!... Eh, pá, tu devias ter ido para o "marquetingue", davas uma "ganda criativo"!...E nunca para fotógrafo de casamentos e batizados!... 

E será que hoje serias mais rico e feliz ?!

Houve "chapas" ao preço da chuva, no primeiro Natal que lá passaste. A malta mal ganhava para a cerveja. Mas um luxo era a fotografia para mandar para casa... Não perdeste dinheiro, até ganhaste algum. Foi uma operação de "marq
uetingue", para lançar a marca do "Bate-chapas". 

E o sucesso foi de tal ordem que vendeste logo umas largas dezenas de fotos da malta vestida de pai Natal tropical, ladeado de bajudas de "mama firme"... Fizeram sucesso, os gajos da CCS do batalhão  também se juntaram à festa, a clientela foi aumentando... 

Com esse  "patacão" começaste a  investir em máquinas fotográficas e outro  material  para o laboratório. No final da comissão, tinhas três máquinas compradas em Bissau, lá na loja dos libaneses, o tal Taufik Saad...  E compraste peças de artesanato em prata, feitas pelo ourives de Bafatá,o tal do dente de ouro... E mais quinquilharia asiática, louça chinesa, etc. , que chegava a Bissau, oriunda de Macau.  Ainda chegaste a embalar tudo, até que um incêndio reduziu os teus "recuerdos" da Guiné a cinzas...

Havias gajos que arriscavam,  faziam chegar algum contrabando, como as bebidas alcoólicas da Intendência, através desse truque dos caixotes feitos com tábuas de madeira preciosa, que valiam ouro na metrópole, nessa época.

"Bate-chapas"!!!... A princípio, não achaste piada nenhuma à alcunha... "Bate-chapas" era uma especialidade dos gajos da ferrujem. Havia bate-chapas ou "chapeiros",  estofadores e até correeir
os.  E sacristoes e cangalheiros. Afinal, a tua arma era a cavalaria. 
Mas não te lembras de ver por lá alimárias, a não ser uma ou outra besta humana... , coisa que, de resto existe em todo o lado.

"Bate-chapas!"... Que insulto!.... Era desvalorizar o teu talento e a tua arte de fotógrafo. Mas toda gente tinha uma alcunha. E tu acabaste por assumir a tua. Até a mulher do capitão, era a "Capitoa". E o alferes "Casanova", comdante do teu pelotão,  era o... "Picha d'Aço". E o cozinheiro, o "Merda Seca"... E o impedido do capitão  o "Meia-Leca"... 

As lojas aqui, no centro comercial, também tresandam a "merda seca", "made in" China, Indonesia, Bangladesh. Dantes, tinhas "scotch whisky", marca branca, que vinha diretamente da Escócia em barris para a malta da tropa. O mais baratinho. E depois engarrafado no Beato com água do Tejo, dizia-se. Chamavam-lhe "uísque de Sacavém". Para os bravos que se batiam para sobreviver à tona de água do Geba!... Nunca foi coisa que apreciasses, tinhas os teus problemas de estômago...

"Beber a água do Geba"...  Lembras-te da expressão ?!... Bebeste algumas vezes a água do Geba, mas nunca tiveste saudades da Guiné nem muito menos vontade de lá voltar. Mas quem recorda, não desdenha, é isso ?!

E nos saldos saldam a roupa de inverno e os sapatos de inverno, porque já vem aí a primavera e logo a seguir o verão do contentamento da malta. "Ainda vamos ser felizes, meu amor, com casa à beira da praia no reino de Portugal e dos Algarves", diz a chavala para o gajo, ali ao teu lado, comendo pipocas. (Não percebes esta mania, horrorosa, de as miúdas de agora se tatuarem de alto a baixo, parecem umas osgas, todas pintalgadas!)

Compra-se a crédito, barato, a casa de praia, pré-fabricada. E a mobília. E os electrodomésticos. E o amor. E a moda é quem mais ordena. Consumir é bom para a economia, que acelera e às vezes desacelera, para desespero do senhor ministro das Finanças… Mas nem tudo o que é bom para a economia é bom para o balanta, o felupe, o fula,  o mandinga ou o bijagó... Ou o morador do Bairro da Bela Vista em Setúbal onde vivia um dos teus antigos camaradas do esquadrão,  de quem não sabes noticias há já uns largos anos.  Era de Cabo Verde, chamavam-lhe o "Turra", na brincadeira. (Hoje acusavam-te de racista!)
 
10/3/2018

Foste à praia do Guincho, "levaste o carro a passear", gostas de lá ir no inverno. O mar está sujo, escuro e bravo como um touro. Espuma de raiva. Às vezes apetecia-te ter a raiva do mar. "Vamos ter forte temporal esta noite", dizem os metereologistas da Antena Um, os novos profetas da desgraça. Aviso amarelo a passar para o vermelho daqui a umas horas. Tempestade Félix. 

Não percebes nada de meteorologia, meu estúpido. O que é o anticiclone dos Açores ? E o que é uma tempestade tropical ? E um furacão ? Há uma escala para medir estas fúrias dos elementos da natureza. Devias saber mais sobre estas merdas de que agora tanto se fala, as alterações climáticas, a subida da água dos oceanos, os fogos florestais....

Há gajos que são pagos para saber.  Tivestes 22 meses na Guiné, na puta da guerra, a defender a Pátria, nunca te explicaram quem era a Pátria, essa entidade nebulosa, hermafrodita, simultaneamento macho e fêmea. Nem nunca te disseram quem eram os pais da Pátria... Nunca te explicaram isso, nem na recruta nem na guerra. O teu capitão, miliciano, que até era um gajo fixe, afável, católico, não tinha jeito nenhum para as tiradas patrióticas.  Nunca o ouviste falar da Pátria. Mas os camaradas que morreram na estrada de Piche, esses, "morreram em nome da Pátria"... Viste cópia do telegrama, "tipo chapa um", que se mandava para a família, da malta que morreu, calcinada na Chaimite. na estrada de Piche-Buruntuma.

15/3/2018

Fazes horas… Meu estúpido, que raio de expressão?!... Se tu soubesses em que ano, mês, semana, dia ou hora a morte te vinha bater à porta, já tinhas dado um salto mortal no sofá, no "hall" do cinema, e programado os últimos dias ou meses que te sobravam para viver… Ninguém entra em pânico com esta hipótese felizmente teórica, a não ser quando ouve o verídico final do médico, do juiz ou do carrasco. Os médicos agora já não estão com paninhos quentes, olham-te, olhos nos olhos, e fuzilam-te:  "Dois ou três meses de vida, trate de fazer as malas"...

A sacana da tua médica de família mandou-te ir ter com os gajos do ACP, o Automóvel Clube de Portugal, para te passarem o atestado médico a enviar ao IMT – Instituto da Mobilidade e Transportes. Ah!, querias revalidar a carta de condução ?!...Ela diz que não pode atestar a tua validade (e, muito menos, a virilidade, a acuidade auditiva, a sanidade mental, a integridade da rede neuronal, a verticalidade da coluna vertebral, e por aí fora)…

"Estamos todos a prazo, doutora… Quem me diz que não apanho uma macacoa ou não sou atropelado à porta do centro de saúde ?!... Ainda há dias, um velhote com 90 anos, sem carta (há mais de cinco anos!), me iam passando a ferro na passadeira… Velhote de 90 anos, um  piloto, medalhado!... Um histórico da TAP, que ainda pilotara os Super Contellation nos anos 60 e tinha saudades da Lourenço Marques do Kanimambo!"...

E tu que vais fazer setenta em 2020, se lá chegares ?!.. 20 anos de distância ainda é muito ano… Não é nada, idiota, é já daqui a 20 anos!... E a guerra já acabou há 50!...

Fazes horas!... em vez de estares a viver intensamente o resto dos dias que te faltam para cumprir calendário… Agora vives para cumprir calendário, para não dar cabo da estatística da esperança média de vida… Por patriotismo, para que o teu país não fique "mal na fotografia", como ficava nos anos em que lá andaste, na Guiné, apontador de Chaimite!...E, nas horas vagas, a tirar o retrato à malta... Toda a gente queria tirar o retrato para mandar para casa, no aerograma do dia seguinte, como "prova de vida"... "Estou bem, meus amores, até ao meu regresso!... Rezem por mim"... (Não se podia mandar fotografias nos aerogramas, mas a malta queria lá saber!)

Até tu, lembras-te ?!, ias fazendo um tracinho na parede, em cada semana que passava… 4 eram um mês, 48 um ano, mais coisa menos coisa… Que um gajo queria era cavar daquele campo de concentração!... E "a Pátria deles, que se fodesse"!...

Quando um gajo trabalhava, tinha horas para tudo, estava tudo planeado, regulamentado, havia normas e leis, livro de ponto,  usavas agenda e gravata, saías de casa de manhã, entravas à noite, metias-te no comboio de Sintra a caminho de Lisboa, com regresso a Rio de Mouro, a tua gaiola dourada com vista sobre o Palácio da Pena, a serra de Sintra, o pavoroso cimento à volta!...

 Um mouro de trabalho, isso sim, uma besta de carga, foi o que tu foste!... Sem sábados nem domingos, que eram dias de casórios e batizados... Para quê ?, para quem ?... E sobretudo porquê ?

Agora não já precisas da puta da agenda, nem de apontar o nome e o número de telefone dos clientes e fornecedores, a não ser para marcar a consulta do dentista e registares o dia e a hora da última vez em que deste uma queca! Fazes as palavras cruzadas e a sopa de letras que é para prevenir o Alzheimer, a recomendação da tua vizinha, ainda boazona, que vive sozinha com o cão, e que trabalha lá na clínica manhosa do teu bairro…(Deve pensar que ainda és um bom partido, com umas pequenas recauchutagens! )

Agora és um cinéfilo compulsivo, vais ao cinema todas as semanas...As sempre adoraste cinema. Foste ver o filme "Três cartazes à beira da estrada"… Passa-se num cidadezinha ronceira do Missouri e há uma mãe justiceira que quer vingar a violação e a morte da filha, um lugarzinho do mundo onde nunca foste, nem onde nunca irás, porque é sítio que não interessa nem ao menino Jesus, tal como o Rio de Mouro, ou a puta da aldeia da tua mãe, Mazouco, lá em Freixo de Espada à Cinta onde nasceu também a tua avó e a tua bisavó (que nunca conheceste).  Tal como não conheceste o filho ilustre da terra, o almirante Sarmento Rodrigues que foi governador da Guiné, nos anos 40 (coisa que não sabias, imagina!).  Nem muito menos o poeta Guerra Junqueiro. (Nunca te falaram dele na escola.)

Morrerá de parto, a tua mãe, do teu mano mais novo, uns anos depois,  ainda andavas na escola, contava-te a chorar o sacana do teu velho, que voltou logo a casar, sem chegar a fazer o luto...

Cresceste sem mãe a partir dos 10 anos. A outra foi sempre madrasta… Mãe é mãe e só há uma... Também lá está a fazer tijolo, a tua madrasta, ela e o teu velho, morreram, há mais de dez anos, os dois num acidente de carro, na autoestrada a caminho do Norte… Um estúpido acidente com a gaja a conduzir com a mão direita, com o telemóvel na mão esquerda… Infelizmente, o teu velho (que, por ironmia, fora da GNR, da Briugada de Trânsito) morreu sem teres resolvido o contencioso que tinhas com ele… Nunca gostaste da gaja dele, que afinal o acabou por matar... 

Há anos que não falavas com ele e muito menos com ela...E estás com essa atravessada na tua consciência, acusa-te o teu irmão mais novo, que aparava o golpe. Sentes culpa por o teu velho ter morrido, nas circunstâncias trágicas em que morreu, sem nunca teres tido uma conversa séria com ele, nem que fosse de despedida, de filho para pai, de pai para filho...

E lá no Missouri, no sul, na América profunda onde nada acontece, o raio do realizador fez um filme que é um misto de tragédia, comédia, "western" e "thriller" policial. (Eh!, pá, andas a pensar fino e a falar grosso, ainda acabas em crítico de cinema… E já tens "nick name", o "Bate-Chapas", registado na Sociedade Portuguesa de Autores, para quando acabares de escrever e publicar o teu livro, "Memórias de um 'Bate-chapas' que queria ser fotocine na Guiné")…

E a propósito, achas que é um bom título, camarada ?... Não é, não, senhor, vão-te confundir com os gajos da ferrugem… E depois é comprido demais!...."Bate-chapas", essa, sim, era uma especialidade dos gajos da ferrugem... Havia uma 1º cabo bate-chapas, na CCS do batalhão, que estava em Nova Lamego, mas a malta chamava-lhe o "Penedo Durão", era teu conterrâneo de Poiares, imagina como o mundo era pequeno!... (Chegaste a beber uns copos com ele, quando lá ficavas!... Perdeste-lhe o rasto,  nem sequer voltaste mais a Mazouca. )

E alguém sabe lá o que é um fotocine!… Estes gajos de agora não foram à tropa, esta geração do pós-25 de Abril… "Bate-chapas"… que raio de alcunha que te puseram!.. Tu nunca foste mecânico, eras operacional, 1º cabo apontador de cavalaria, a quemderam uma G3 em vez de uma Chaimite…   E fotógrafo nas horas vagas.

Chamavam-te "Bate-chapas", tamubém na reinação, os "djubis" e as bajudas, por que andavas sempre a tirar fotografias, no quartel, na tabanca, nas colunas, era o teu biscate, o teu "vício", para arredondar o pré ao fim do mês, e fazer um pé de meia para as férias… Eras um fotógrafo compulsivo, rconheces hoje. Revelavas e expunhas as provas, numeradas, num placard que servia de mostruário.

A Arminda e a garota, que tu mal conhecias (tinha escassos meses, a tua filha, quando partiste para a Guiné), ansiavam por ti, ainda faltavam dois ou três meses para vires de férias… Quem eram os cabos que vinham de licença de férias à metrópole nesse tempo? Só tu, que tinhas dois ordenados, e o cabo cripto, que era um gajo evoluído, com estudos como tu (por sinal,  chumbaram os dois no CSM), e o "escritas" que também comia da gamela com o "nosso primeiro"… E, claro, os graduados, os furriéis, os sargentos, os alferes, e o capitão no 1º ano (no segundo ano levou para lá a esposa, a "Capitoa", uma valentona que aguentou com um ataque de foguetões 12mm ao).

Podias ter sido fotocine, se tivesses tido uma boa cunha, se tivesses tido sorte na puta da vida, era uma rica especialidade, não saías de Bissau, quando muito terias que fazer uma ou outra sessão de projeção de cinema no mato… Ias de avião até Bafatá ou Nova Lamego, depois apanhavas uma coluna… Na outra semana, descansavas e ias beber umas "bazucas" no Pelicano ou na 5ª Rep (o Café Bento!).

Lembras-te quando a malta esteve de prevenção em Bafatá?!... Mesmo assim, furava-se o esquema, ia-se à noite ao Bataclã ( uma espécie de clube noturno lá  do bairro da Rocha), no dia dos teus anos, armaste-te em rico, até convidaste as gajas todas que fodiam com a tropa, para ir ao cinema, ver uma cagada de um filme cómico italiano do tempo da Maria Cachuca ?!… 

Foste que tu pagaste os bilhetes, foi bodo geral aos pobres... Os "djubis", as bajudas e as mulheres grandes, riam-se que nem uns perdidos, mesmo não percebendo patavina que os gajos e as gajas do filme diziam, em italiano, e muito menos as legendas… E o sacana do Lopes, trocista e racista, a mandar as suas bocas: "Ó Barrote Queimado, quem não sabe ler, vê os bonecos"…

O cinema de Bafatá, a grande obra de civilização que lá deixou o "tuga" no leste… Mais a piscina, e a mesquita, e a catedral… Nunca mais viste um filme quando a guerra começou a sério para o esquadrão, e os índios e os cobóis deixaram de ter tempo para limpar as armas…


16/3/2018

Rica vida de reformado, dirás tu, a gozar contigo próprio. Dias de inverno, a escassos dias da primavera que há-de vir (ou não). Foi um mês em que choveu sem parar. E vai continuar a chover , pelo menos até ao dia 22, segundo viste na Net. Afinal, do que seria de ti sem o raio da Net, mesmo já não tendo os teus amigos virtuais do Facebook... Aliás, não tens um   amigo verdadeiro, do peito, daqueles  que te possam dar um ombro para chorar, se um dia vieres a precisar. ("Que um homem não chora, muito menos os camaradas da Guiné", dizia o "Casanova", armado em durão...)

Voltas a enfiar-te no "porto de abrigo" do teu centro comercial. O que dá para ver a meio da tarde, ó cinéfilo ? O filme "Post", de SpielBerg, com o Tom Hanks e a Merry Streep. É sobre quê ?, perguntas. O papel do jornalismo nas democracias modernas. O braço de ferro do "Whashington Post" e do poder político-militar na América que queria cortar o bico aos jornalistas.

Não é nada de empolgante, mas é importante pelo episódio (histórico) que recria: publicação, pelo "New York Times" e pelo "Washington Post", dois jornais de referência, dos papéis do Pentágono, um documento ultrassecreto feito por académicos sobre o envolvimento americano no Vietname, desde o presidente Eisenhower. Os governos americanos foram-se atolando no Vietname e as perspetivas eram claramente as de uma crescente escalada e quiçá desastre a nível militar.

O estudo encomendado pelo Robert McNamara estava guardado a sete chaves até que uma cópia foi parar aos jornais… Mas há lá chaves e cofres que guardem um segredo ?!... 

Só a malta na Guiné é que foi apanhada de surpresa pelo Strela!... E antes pela notícia da morte do Amílcar Cabral, "teu vizinho de Bafatá" (dizia-se que a mãe vivia lá!), e depois pela declaração unilateral da indepência em 24 de setembro de 1973. Mas o que é que os "pides" andavam a fazer nessa época ? E os craques da Força Aérea… não sabiam que já havia uma arma dessas, o Strela, a ser utilizada no Vietname ?... E a golpada dos capitães, não se estava mesmo a ver que um dia haveria de estoirar a bernarda ?!... E os generais e os  almirantes do Caetano  ? Onde andavam ? A arear o bronze das cruzes de guerra?... Andavam todos, afinal,  a brincar ao faz-de-conta!...  Por isso o Império caiu sem honra nem glória!  (Confessas que não deste conta do estrondo.)

Não te quiseram para fotocine, os sacanas  da tropa, tu que já eras fotógrafo, amador, na vida civil!... Amador, uma ova!, profissional, com cartão passado pelo sindicato corporativo!... Eras um fotógrafo encartado, fazias casamentos e batizados, tinhas um patrão, já velhote, que não podia a ir a festas, que se enfrascava todo, cortava a cabeça aos noivos com a bezana e dava cabo dos rolos… Valia-lhe o genro, que acabou por tomar conta do negócio...  

Mas, olha, safaste-te, a biscatagem deu-te para montar o teu negócio próprio, quando regressaste de vez, são e salvo, graças a Deus, benzia-se o teu velhote, amarrado a uma gaja vinte anos mais nova do que ele, e que o chupava até ao tutano… Pobre do velho que podia ter tido mais sorte na puta da vida!... Polícia da Brigada de Trânsito, com uma boa reforma e um bom pé de meia.  Também transmontano como a tua mãe, mas mais acima, de Vinhais.

Mais tarde, com as tuas economias todas, deixaste Lisboa e abriste uma papelaria e livraria com secção de fotografia, lá no teu bairro, em Rio de Mouro. Tal como na tropa, em matéria de fotografia, fazias tudo menos a revelação de diapositivos. 

Uma merda, afinal!... Veio depois a fotografia digital, a revelação automática, os computadores,  as impressores, o "self-service",  os centros comerciais...  

O negócio foi por água a baixo!... Os livros vendiam-se pouco, a não ser o material escolar... E a fotografia deixou de ter procura...

Vendeste a baiuca, logo início da crise de 2008, 2009… Que tristeza, hoje recusas-te a passar por lá… Já passou por mais mãos. Agora deve ser uma loja de um chinês ou um templo evangélico. Valeu-te ao menos o dinheiro do trespasse, compraste títulos da dívida pública, que sempre te dão algum rendimento, no banco não vale a pena teres dinheiro, ainda tens que pagar por cima.

−Ó "Bate-chapas", tira-me aqui um chapa, e faz-me um postal com dois corações que é para mandar para a minha Maria  que vai fazer 21 anos e já pode casar comigo quando eu voltar!...

− Ó "Bate-chapas", arranja-me umas fotos das putas do Bataclã que é para eu mandar para o meu mano mais novo que vai às sortes, e que nunca viu uma gaja nua…

E a alcunha ficou mesmo, para o resto da vida, "Bate-chapas"... Não levas a mal. Já faz parte da tua identidade... Afinal, foste um "Bate-chapas" toda a vida... Ainda hoje te fazem uma festa quando vais aos convívios anuais do esquadrão:

− Ó "Bate-chapas", bate-me aqui uma!...

Eras um gajo popularucho. Tinhas centenas, milhares,  de provas e negativos, no teu estaminé, improvisado, por detrás da caserna grande... Tinha lá a tua "morança", de paredes de adobe, barrotes de cibe e cobertura de colmo,  com a devida autorização do capitão, a quem não levavas nada dos trabalhos fotográficos (nem a ele nem ao "nosso primeiro", como não podia deixar de ser)...  

Ficou tudo reduzido a cinzas quando houve aquela pavoroso incêndio, que até parecia um ataque dos gajos do PAIGC ao arame farpado… "Ninguém soube como aconteceu", contaram-te depois.)

Foram muitos os palpites, mas tudo indica que tenha sido um raio numa aquelas frequentes trovoadas tropicais… Houve quem dissesse que foi sabotagem, gajos civis que trabalhavam no quartel e que eram "turras", e que terão deitado o fogo à tua palhota, quando estavas fora, a fazer segurança a uma coluna logística até Piche ou Buruntima. Em boa verade, não te lembras de ter inimigos..., a não ser os gajos a quem apontavas o canhão  da Chaimite. ..

Estavas já perto do final da comissão, felizmente tinhas depositado um mês antes a guita, o teu pé de meia, no BNU, uma semana em que te desenfiaste até Bissau, com a devida  licença do capitão… Ficaste de tanga, sem máquinas, sem rolos, sem laboratório, sem arquivo, sem as bugigangas que querias trazer para a família, sem trocos, sem peúgas nem cuecas… Até a lista dos calotes ardeu!... 

 Não havia bombeiros no esquadrão!... E muito menos água e mangueiras e bocas de incêndio!... "Deixa arder, que o meu pai é bombeiro!", diziam alguns gajos, cínicos, que já estavam com a cabeça feita, a pensar no avião que os levaria de regresso a casa... 

E hoje aqui estás, viúvo, reformado, fechado numa sala de cinema de um centro comercial, comendo pipocas para aliviar a angústia do fim de tarde… Antes de ires para casa, e aqueceres a sopa requentada que a tua empregada, guineense do Biombo ou Binar (vê lá tu!),  faz-te para toda a semana… Trabalha como segurança, de segunda a sexta, e o serviço doméstico é uma biscatagem. Ela tem um bom físico, é de origem balanta. Mas já nascida em Portugal.  (O avô morreu numa  mina nossa, no corredor de Guileje, em 1973, a família tem lá um papel para limpar o cu, a dizer que o homem grande foi "combatente da liberdade da Pátria"! )

De tempos a tempos, meia dúzia de vezes se tanto por ano, falas pelo Skype com a tua filha que está na Austrália, casada com um grego... E mal conheces os teus netos que não falam português. Porra, tens uma filha com 50 anos!... Foste pai aos 20, grande irresponsável!...

E lá vais escrevinhando o teu diário, falando em voz alta com o teu "alter ego", o mesmo é dizer, falando para as paredes do teu T2 em Rio de Mouro, agora grande demais para um homem só.

Podias ter sido um grande fotocine, um grande fotógrafo, até um grande cineasta, quem sabe ?!... Foste apenas uma "Bate-chapas"… 

Consola-te: levaste um pouco do calor da amizade e da camaradagem da Guiné a muitos lares portugueses, mães e pais, esposas, namoradas, madrinhas de guerra…, arrancaste muitos sorrisos a "djubis", bajudas de "mama firme" e mulheres grandes de teta caída… E até a homens grandes, régulos, milícias, guerreiros que habitualmente nunca sorriam... Foste à guerra, deste e levaste… Tiveste mulheres que gostaram de ti. E tiveste sorte de não ter ficado esturricado dentro de uma caixão blindado como era a Chaimite.

E hoje ? Nem amigos e amigas tens, do Facebook, tristes e empedernidos corações solitários… E olhas-te para o espelho e vês um gajo velho, como ó caraças!,… e pegas no teu bilhete de identidade, que é vitalício, e a foto que lá está não condiz com a puta da imagem que vês no espelho da casa de banho … O São Pedro não te vai deixar entrar no Paraíso, quando chegar a tua vez… 

Mal por mal, vais ficando por aqui, esquecido (e oxalá que ainda por uns bons aninhos!), no Limbo da Terra, depois de teres conhecido o Inferno da Guiné.  Gostavas, em todo o caso, que na tua lápide, alguém escrevesse por ti:

"Não adianta reclamar, ó 'Bate-chapas', ninguém te vai devolver o dinheiro... Nâo há livro de reclamações no Céu, no Paraíso ou no Olimpo dos deuses e dos heróis, como lhe queiras chamar: tu é que compraste o bilhete errado para a sessão de cinema errada… Trocaste o filme… da tua vida, ó 'Bate-chapas'! "...

© Luís Graça (2018). Revisto em 15/12/2024.
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Nota do editor:

Último poste da série > 23 de janeiro de  2024 > Guiné 61/74 - P25101: Contos com mural ao fundo (Luís Graça) (15): A vida é curta e a arte é longa: memórias de um médico que também passou pelo Hospital Militar de Bissau

Guiné 61/74 - P25116: Blogpoesia (796): "A Mensagem que deixaste", por Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)



A MENSAGEM QUE DEIXASTE

A mensagem que deixaste
como laço da prenda de todos
faz pensar.
Tão sublime que exalta
e tão vaga que oprime.
Leva-nos além do falar
que só não falando se entende.
Por mais serena que seja a luz
e mais suave o convite
não sabemos quem ordena e conduz
se a razão se o palpite
se a chaga ou a lança
se a sorte ou a desdita
ou o sonho que tudo reduz
àquilo que se acredita.
Trememos de frio em dia de sol
e somos ventre de cobiça
nas tardes cinzentas de chuva.
Ressumamos de inveja gotas de suor
na face dos que pensam
sermos nós o melhor.
Subimos o alto dos montes
descemos o fundo dos mares
onde tudo se fecha e se abre
na falsa harmonia dos contrastes
que fazem a ponte entre a noite e o dia.
Nascem algemas de ouro
nos pulsos abertos de sangue
e não sabemos quem seguir
se a alma se a razão
quando neste vaivém de cansaço
uma entra e outra sai
como sangue no coração.
Se o sonho cai desfeito
nas trevas de tudo ter feito
entre a razão e o deserto
não há razão que resista
a uma vida em aberto.
Todos olham e dizem
o que seria bom de sentir…
mas nós não queremos ouvir.
A farsa que a gente é
só dói mesmo de pé
antes de a gente cair.

adão cruz

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Nota do editor

Último poste da série de 21 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25096: Blogpoesia (795): "Os sítios que são só recordações", por Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR da CCS / BCAÇ 3872

sábado, 27 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25115: Armamento do PAIGC (8): A pistola, de origem soviética, Tokarev TT-33


A pistola Tokarev TT-33


1. Segundo o nosso especialista de armamento, Luís Dias (*), a pistola Tula Tokarev TT-33 surgiu na antigaURSS, baseada no desenho da Colt-Browning e foi a pistola das forças da União Soviética durante a II Guerra Mundial, vindo posteriormente a ser fabricada pelos países do Pacto de Varsóvia e pela China até ser substituída pela Makarov, no calibre 9 mm Mk.

Foi a pistola usada pelas forças de guerrilha do PAIGC. (**)

Também há referências, no nosso blogue, às pistolas apreendidas pelas NT:

CESKA ZBROJOVKA Cal. 7,65 mm, pistola semiautomática;

CESKA ZBROJOVKA Cal. 6,35 mm, pistola semiautomática pequena.

Características da pistola Tokarev TT-33

  • TIPO: Pistola semiautomática
  • PAÍS DE ORIGEM: URSS, países do Pacto de Varsóvia e China
  • CALIBRE: 7,62 mm Type P
  • DATA DE FABRICO INICIAL: 1933
  • ALCANCE ÚTIL: 50 m
  • ALCANCE PRÁTICO: 5 a 10 m
  • PESO: 0,840 kg com carregador com 8 munições
  • MUNIÇÂO: 7,62x25 mm Tokarev
  • ALIMENTAÇÃO: 8 munições num carregador unifilar colocado no punho.
  • SEGURANÇA: A única segurança é feita pelo cão travado (half-cock) a meio de ser armado.
  • FUNCIONAMENTO: Pistola semi-automática, funcionando por recuo do cano e de acção simples. As forças do PAIGC possuíram ainda pistolas CZ, de origem Checoslovaca, nos calibres 6,35 mm e 7,65 mm.

Observações: Tokarev 'versus' Walther

A pistola Walther P-38, é uma arma de grande qualidade, muito robusta, tendo-se mantido ao serviço das forças armadas portuguesas ao longo de todos estes anos, embora se preveja vir a ser substituída em breve. É uma arma excelente para tiro prático, sendo nitidamente superior, quer no tipo de munição utilizada (9 mm Parabellum), quer no seu funcionamento, à Tokarev que, segundo alguns autores, encravava com alguma facilidade devido a problemas com o carregador. 

A Walther tem ainda a vantagem de funcionar por acção dupla (rapidez de disparo) ao contrário da Tokarev que funciona unicamente por acção simples.

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Notas do editior:

(*) Vd. poste de 23 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 – P5690: Armamento (2): Pistolas, Pistolas-Metralhadoras, Espingardas, Espingardas Automáticas e Metralhadoras Ligeiras (Luís Dias)

Guiné 61/74 - P25114: Os nossos seres, saberes e lazeres (611): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (139): Férias em região duriense, uma rota de aldeias vinhateiras (8) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Outubro de 2023:

Queridos amigos,
Insisto no pedido de desculpas por ter andado a revoltear imagens, depois de fotografar os belos conjuntos azulejares do Pinhão é que dei que tinha deixado para trás as imagens captadas em Santa Maria de Salzedas, cuja visita recomendo a quem quer que seja sem qualquer hesitação. Este edifício religioso é frisante, demonstrativo, de que quando entramos num espaço marcado pelo barroco ou pelo maneirismo a ninguém ocorre que já houve ali um outro edificado. Não sei por que carga de água o mosteiro cisterciense sofreu tais tratos de polé, a ponto de praticamente nada subsistir, a não ser vestígios. Depois foi vendido em hasta pública, dispersaram-se riquezas, felizmente que chegou a hora da recuperação e do restauro, permaneceram vestígios da igreja medieval, que era de planta em cruz latina, a atual fachada data dos finais do século XVIII, está marcada por duas torres laterais adiantadas, a nossa visita guiada começou pelo claustro do capítulo que leva obras de restauro vai para 13 anos, o resultado é imponente, por isso aqui se pretendeu dar uma imagem do espaço museológico, ele é bem merecedor do nosso desfrute tal a riqueza do seu património, basta pensar nos painéis atribuídos a Grão Vasco e o conjunto de obras legadas por Bento Coelho da Silveira, referência maior da pintura portuguesa do século XVII.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (139):
Férias em região duriense, uma rota de aldeias vinhateiras (8)


Mário Beja Santos

A tarde está reservada a Ucanha e ao Mosteiro de Santa Maria de Salzedas, na região de Távora-Varosa, região vitivinícola por excelência. Inicia-se a visita à casa do Paço de Dálvares, é um museu agrícola dentro de um edifício belamente reabilitado e onde se irá ouvir falar do espumante Murganheira. Fugi à lição, preferi deambular por este belo espaço e espiolhar o museu, mas não fugi à libação, muitos excursionistas não resistiram a fazer aquisições na loja de vendas.

Casa do Paço de Dálvares – Tarouca, Museu do Espumante
Um pormenor do pátio interior das instalações, este maciço de pedra é impressionante
Imagem do museu

Da Ucanha, da sua torre e ponte, já aqui se fez menção e se pediu muita desculpa por andar de trás para a frente por pura negligência de quem não sabe de manejar a câmara, e compulsar as imagens arquivadas, asseguro que a seguir à visita e este belo mosteiro vamos em definitivo navegar no rio Douro, sequência que se interrompeu quando se fez referência ao Pinhão e aos belos azulejos da sua estação ferroviária.
Bom, estamos diante deste mosteiro de Santa Maria de Salzedas Olhando a fachada, opulentíssima, ninguém acredita que tudo começou pela construção de um mosteiro cisterciense masculino, iniciado em 1168 graças ao patrocínio da segunda mulher de Egas Moniz; os monges receberam diretamente de D. Afonso Henriques o couto de Algeriz. Este domínio, mais tarde designado por Salzeda, e depois por Salzedas, abrangia as atuais freguesias de Ucanha, Granja Nova, Vila Chã da Beira e Salzedas, no concelho de Tarouca, e Cimbres, no concelho de Armamar.
A implantação do mosteiro obedeceu aos princípios da regra cisterciense, localiza-se num vale, há acesso direto a um curso de água, a ribeira de Salzedas, afluente do rio Varosa.
O passeio terminará com a visita à igreja, que já foi medieval de planta em cruz latina, tem três naves e transepto saliente, foi sagrada em 1225. Veremos pelas imagens que apesar das muitas alterações introduzidas nos séculos XVI, XVII e XVIII, ainda é possível observar da construção original alguns elementos. A fachada, evidentemente, nada guarda desses tempos da Reconquista Cristã.

Ao longo dos últimos anos, este monumento absurdamente votado ao abandono, tem vindo a ser objeto de intervenções de conservação e salvaguarda, com destaque para a consolidação do claustro de capítulo. O mosteiro está agora integrado na rede de monumentos do projeto turístico-cultural Vale do Varosa. Entre 2010 e 2011 foi levada a cabo uma profunda intervenção de recuperação e valorização que incluiu restauro do património integrado e criação de um espaço museológico que veio a ser aberto ao público, é bem merecedor de visita pelo seu destacado valor histórico e patrimonial.
Uma parte da recuperação, mas é bem visível que ainda há muito a restaurar
Uma simples imagem da bela azulejaria que se conserva, mas há para ali danos irreversíveis. Os azulejos que cobrem a sala do capítulo são azulejos de maçaroca a azul e amarelo. Este espaço monárquico, riquíssimo em arte, sofreu muitíssimo com a extinção das ordens religiosas em 1834, foi tudo vendido em hasta pública (espaço monástico e recheio) ficando para uso da paróquia a igreja, a ala Este e parte da ala Sul.
Entrámos agora na área museológica, mais propriamente na sacristia, este Cristo na cruz é de uma beleza impressionante
Imponentes painéis que tudo ganharam com o restauro
Há dois quadros no espaço museológico atribuídos a Vasco Fernandes, Grão Vasco é dado como responsável por um dos mais excecionais retábulos deste mosteiro, constituído por quatro painéis com as figuras de S. Sebastião, Santo Antão, Santa Catarina e Santa Luzia, produzidos entre 1511 e 1515. Estão aqui restaurados S. Sebastião e Sto. Antão, são uma das principais atrações deste núcleo museológico.
Nesta galeria há obras que merecem uma contemplação atenta. É o caso destes das obras de Bento Coelho da Silveira, uma delas, Imposição do hábito a S. Bernardo, possui um equilíbrio nos volumes e na segurança com que trata o grupo humano que certifica o indiscutível talento desta referência maior da pintura portuguesa do século XVII. Bento Coelho da Silveira é autor de um conjunto de pinturas realizado para este mosteiro constituído por diversas cenas da vida de S. Bento e S. Bernardo, que ele realizou entre 1667 e 1675. Faziam provavelmente parte do conjunto das oito telas do espaldar do arcaz da sacristia.
Capitel em granito talhado, séculos XII-XIII
Capitel geminado pertencente ao claustro original, também em granito talhado, séculos XII-XIII
Interior da igreja, nave principal
Quatro imagens que permitem ver elementos do templo primitivo, como foi referido, tudo foi refeito a uma escala que vai do maneirismo ao barroco, mas não se apagaram estes elucidativos vestígios da Cister no Vale de Varosa, séculos XII e XIII.

Aqui findou o passeio e regressámos a Tabuaço. O dia seguinte foi reservado ao Pinhão, de que já se falou, segue-se o esplendoroso passeio pelo Douro, à tarde houve quem quis ir visitar S. João da Pesqueira, precisei de ler e repousar. Na manhã seguinte despedimo-nos de Tabuaço, e a excursão de 5 dias deixou-nos em Sete Rios, o local dá sempre jeito, apanha-se o comboio para Roma-Areeiro, um quarto de hora depois está-se em casa.

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 20 DE JANEIRO DE 2024 > lGuiné 61/74 - P25092: Os nossos seres, saberes e lazeres (610): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (138): Férias em região duriense, uma rota de aldeias vinhateiras (7) (Mário Beja Santos)

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Guiné 61/74 - P25113: Armamento do PAIGC (7): A "patchanga", a pistola-metralhadora russa Shpagin PPSh-41 (conhecida como a "costureirinha" pelas NT)

 

Guiné > PAIGC > Novembro de 1970 > Um guerrilheiro (ou "elemento da população" ?) mpunhando uma PPSH (a irritante "costureirinha", uma arma temível sobretudo em emboscadas muito próximas das NT)...

Fonte: © Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)

1. Segundo o nosso especialista de armamento, Luís Dias, "a pistola-metralhadora PPSh-41, concebida por Georgii Shpagin, conhecida pelas nossas forças como a Costureirinha, e pelo PAIGC como a Patchanga, foi uma das PM mais fabricadas no mundo (mais 6 milhões de exemplares), e largamente utilizada pelo exército soviético na IIª Guerra Mundial. No pós-guerra foi usada nos países satélites, na China, Vietname e nos movimentos de libertação africanos".

Características técnicas da arma:

  • Tipo: Pistola-metralhadora
  • País de origem: ex-URSS
  • Calibre: 7,62 mm, Tipo P
  • Ano inicial de fabrico: 1941
  • Alcance eficaz: 200 m
  • Alcance prático: 25 a 50 m
  • Peso: 5,45 Kg com tambor de 71 munições; 4,30 Kg com carregador de 35 munições
  • Comprimento: 843 mm
  • Munição: 7,62x25 mm Tokarev
  • Velocidade de saída do projectil: 488 m/s
  • Alimentação: Tambor de 71 munições ou carregador curvo de 35 munições
  • Segurança: Através de travamento da culatra na posição recuada ou quando fechada.
  • FUNCIONAMENTO: Arma de disparo selectivo de tiro (auto ou semi-auto), funcionando por inércia da culatra, através da posição aberta
  • Cadência de tiro: 900 tpm

Ainda segundo Luís Dias: 

(...) "A célebre 'costureirinha' dava fama ao nome devido ao 'seu cantar' muito próprio (elevada cadência de disparos). Era uma arma pesada, com uma munição não muito potente e com problemas de falhas no funcionamento, quando utilizava o tambor, tornando-se incómoda no transporte, face à sua configuração e devido à sua elevada cadência, consumia muitas munições, não sendo também muito precisa." (...)

    Ver mais informação sobre esta arma, na Wikipedia.

    (...) O carregador de tambor, com capacidade para 71 cartuchos, era frágil, sofrendo deformações com facilidade, causando encravamento, sua alta cadência de tiro, e facilidade de disparo faziam com que rapidamente se gastassem as munições disponíveis, o que provocava inevitavelmente problemas logísticos aos movimentos guerrilheiros. Por conta disso foi introduzida uma versão de carregador de 35 munições, muito mais confiável que pelo design mais simples. Além disso, em florestas densas, a sua relativa pouca potência tornava-a uma arma relativamente ineficiente. (...) 

    Esta talvez uma das razões por que os guerrrilheiros do PAIGC acabaram por preferir a Kalash...



Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Setor L5 (Galomaro) > CCAÇ 3491 (1971/74) > Chegada a Galomaro da CCAÇ 3491 / BCAÇ 3872, no dia 9 de Março de 1973. No jipe podemos ver o alf mil op esp Luís Dias, atrás o fur Baptista,  do 1.º Gr Comb,  e ao lado, a sorrir, um guerrilheiro do PAIGC que, no dia anterior, se tinha entregado a uma patrulha nossa na área do Dulombi. A arma é uma Shpagin PPSh- 41, no calibre 7,62 mm Tokarev, mais conhecida por "costureirinha" e com a particularidade de ter um carregador curvo de 35 munições, em vez do habitual tambor de 71. (Foto do Luís Dias, reproduzida com a devida vénia, do seu blogue, Histórias da Guiné, 71-74:  A CCAÇ 3491, Dulombi.

Foto (e legenda) © Luís Dias (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].
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Nota do editor:

(*) Último poste da série > 18 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24766: Armamento do PAIGC (6): A mina antipessoal PDM-6 (António Alves da Cruz, ex-fur mil, 1ª C/BCAÇ 4513/72, Buba, 1973/74)

Postes anteriores:

8 de outubro de 2023 > Guiné 61/74 - P24735: Armamento do PAIGC (5): O sistema Grad, o "jacto do povo", a "mulher grande", o foguetão 122 mm: as expetativas, demasiado altas, de Amílcar Cabral

10 de maio de 2023 > Guiné 61/71 - P24305: Armamento do PAIGC (4): Morteiro pesado 120 mm M1943, de origem russa, usado nos ataques e flagelações a aquartelamentos das zonas fronteiriças, como Gandembel, Guileje, Gadamael, Guidaje, Copá ou Canquelifá

19 de abril de 2023 > Guiné 61/74 - P24234: Armamento do PAIGC (3): peça de artilharia 130 mm M-46, cedida pelo Sekou Turé para os ataques, a partir do território da Guiné-Conacri, contra Guileje e Gadamael, em maio/junho de 1973

Guiné 61/74 - P25112: Notas de leitura (1661): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (9) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Janeiro de 2024:

Queridos amigos,
Aqui se refere a crescente importância do apoio internacional ao PAIGC, nesta fase eram os países comunistas os grandes doadores, tanto de armamento, como militares e pessoal de saúde, o apoio escandinavo virá mais tarde; a chegada de sistemas de defesa antiaérea trouxe sérios desafios à FAP, e mais inquietante quando esse sistema foi posicionado na margem sul do Geba, na região de Gã Formoso; daí o relato da importante Operação Barracuda, com um dispositivo de aeronaves como nunca se vira, sincronizados os ataques aéreos com os paraquedistas no solo, os objetivos foram totalmente alcançados, capturou-se uma metralhadora e voar perto de Bissalanca deixou de ter perigos, e certamente que a Operação Barracuda afetou temporariamente o moral dos guerrilheiros do PAIGC na região Sul - afinal a defesa antiaérea era altamente vulnerável.

Um abraço do
Mário



O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974
Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (9)


Mário Beja Santos

Deste segundo volume d’O Santuário Perdido, por ora só tem edição inglesa, dá-se a referência a todos os interessados na sua aquisição: Helion & Company Limited, email: info@helion.co.uk; website: www.helion.co.uk; blogue: http://blog.helion.co.uk/.

Capítulo 3: “Eram eles ou nós”

O Governador e Comandante-chefe Arnaldo Schulz estava gradualmente a ser confrontado com maiores meios do PAIGC, decorrentes do apoio internacional que os sucessos da luta armada ajudavam a granjear. Primeiro, logo nos primeiros meses da luta, preparação militar na China, depois armas ligeiras e granadas, depois minas antipessoal, morteiros e bazucas, depois minas anticarro, e dentro deste encadeamento chegou-se ao sistema antiaéreo; além de terem aparecido os cubanos, outras nações do Bloco Leste forneceram armas, conhecimentos táticos e técnicos e armamento mais sofisticado – foi o caso da URSS, da China, RDA, Checoslováquia, Roménia, Bulgária, Coreia do Norte e Vietname do Norte. Em 1965, a URSS até mandou construir um centro de treino em Perevalnoe, na península da Crimeia, especificamente para membros do PAIGC e outros movimentos de libertação africanos, a instrução militar centrava-se no manejo de artilharia, minas e explosivos, mas também armas de defesa aérea, especialmente aquelas que estavam projetadas para atingir alvos voando baixo. Nessa altura, a OUA (Organização de Unidade Africana) já tinha decidido canalizar todo o seu apoio ao PAIGC e o Senegal, sob pressão da OUA, abriu o seu território às bases do PAIGC e rotas de abastecimento, em 1966.

A chegada de novos equipamentos e a aquisição de novas competências exigiu ao PAIGC mudanças organizacionais – e o seu corpo antiaéreo não foi exceção. Como resumiu Amílcar Cabral em abril de 1966, “Durante muito tempo lutámos contra aviões inimigos apenas com armas ligeiras, mas estamos progressivamente a equipar as nossas unidades e bases militares com armas adequadas para o combate antiaéreo e formámos combatentes especializados em lidar com essas armas.”

Em meados de 1966, os aviadores portugueses começaram a informar os comandos de que havia uma mudança de qualidade na guerrilha, tinham aparecido sistemas de defesa antiaérea, “armas dispersas aleatoriamente, envoltas em vegetação”. Em contraste, em 1967, as posições da defesa aérea de guerrilheiros adquiriram um ar mais robustecido e convencional, com armas de maior calibre implantadas em espaldões em espiral (revestimentos de terra), implantados em áreas relativamente abertas. Esta forma de atuar permitia aos guerrilheiros alguma proteção contra explosões e estilhaços, dando ao mesmo tempo aos artilheiros do PAIGC a oportunidade de concentrar rapidamente fogo em qualquer direção; em contrapartida limitavam a sua mobilidade, tornavam as suas posições muito mais fáceis de detetar. Esta transição decorria do objetivo político de reforçar as posições do PAIGC nas chamadas zonas libertadas, caso do Como e do Quitafine.

Impunha-se uma resposta da FAP. Os aviadores portugueses desenvolveram rapidamente métodos eficazes para se confrontar com essas novas armas. O ataque ideal começou com um mergulho de 45 a 60 graus a partir de 8 mil pés, então o piloto libertava 50 kg ou 200 kg de bombas de fragmentação a aproximadamente 4 mil pés, e mergulhava para se afastar. Quando transportavam napalm, os Fiat lançavam de 100 pés, estes eram ataques que surgiam a partir da direção do Sol com o intuito de atrasar a deteção visual e minimizar o fogo (ataques idealmente praticados por volta das 9h30 ou 15h00). Mas a qualquer hora do dia este sistema embrionário aéreo beneficiava do aviso prévio do ataque, havia um grande interesse da guerrilha nas operações aéreas a partir da base de Bissalanca, o seu sistema de informações procurava recolher dados que contribuíssem para que os artilheiros estivessem sobre o aviso. E ficou comprovado que estes sistemas de defesa antiaérea abriam fogo imediatamente após o início do ataque aéreo, apesar dos esforços da FAP para obter surpresa total.

O novo arsenal de aeronaves e armas da FAP foi colocado pela primeira vez à prova na região de Quínara. Um pouco depois do novo comandante da Zona Aérea, Coronel Costa Cesário, ter chegado em janeiro de 1967, estava comprovada uma atividade intensificada do PAIGC no Quínara – diretamente do outro lado do rio Geba, em frente a Bissau, e foi esse elemento que trouxe preocupação em Bissalanca. Por exemplo, um par de Fiat onde voavam o Tenente-coronel Damásio e o Tenente Egídio Lopes foi surpreendido por fogo antiaéreo num banco a Sul do Geba, isto na aproximação inicial para Bissalanca. Para eliminar esta ameaça às aeronaves que voavam perto da sua base principal, a Zona Aérea concebeu a Operação Barracuda, um dia de ofensiva aérea e de paraquedistas em fevereiro de 1967. A ordem de missão dada ao grupo operacional 1201 foi: neutralizar a ameaça antiaérea na região do Quínara; preparar um ataque terrestre a Gã Formoso; transportar paraquedistas de helicóptero para a área de operações, em conjunto com desembarques navais quase em simultâneo; interditar movimentos do inimigo em zona de ação; e fornecer logística e apoio de fogo. Uma ordem de operações suplementar orientava os paraquedistas, quando saltassem para o solo a procurar os objetivos atribuídos para desmantelamento na zona de Gã Formoso. O BCP 12 também foi especificamente encarregue de descobrir e apreender pelo menos uma das áreas antiaéreas mais valiosas do PAIGC – um feito ainda sem precedentes para as armas portuguesas na Guiné.

A Operação Barracuda começou pelas 6 horas do dia 4 de fevereiro. 25 aeronaves (6 Fiat, 11 T-6, 7 Alouette III e 1 DO-27 configurado para PCV) partiram de Bissalanca, com intervalos mínimos de descolagem, para aumentar a probabilidade de surpresa. Tendo atravessado o Geba, os Fiat descarregaram as suas bombas de 50 kg em duas posições antiaéreas na região de Gã Formoso, silenciando uma delas; seguidamente, os T-6 atingiram alvos adjacentes na floresta com bombas de 15 e 50 kg, foguetes de 37 mm e tiros de metralhadora. Pelas 6h20, o primeiro pelotão de paraquedistas saltou em terra de 6 Alouette III, vinham acompanhados de um helicanhão, uma segunda leva pousou às 6h30; entretanto, outros paraquedistas chegaram a bordo de lanchas, em Ganduá Porto, na margem sul do Geba, apoiados por 2 T-6 e um helicanhão. Pelas 9 horas, os grupos de paraquedistas uniram-se e iniciaram a sua limpeza pela floresta de Gã Formoso, pondo em debandada os guerrilheiros. Tendo alcançado os seus objetivos terrestres em capturar uma metralhadora antiaérea DShK de 12,7 mm, que era o objetivo fundamental da operação, os paraquedistas retiraram-se para Ganduá Porto sob a proteção de 2 T-6 e 1 helicanhão e um DO-27 armado com foguete. Uma análise posterior veio a descrever a Operação Barracuda como uma operação perfeitamente executada e sem baixas, nenhuma aeronave foi atingida e apreendera-se uma arma antiaérea. E também se entendia que a operação quebrara o prestígio e a arrogância do inimigo na área. As perdas de guerrilheiros não foram espetaculares, mas ficava a nu a vulnerabilidade destas armas, e restaurava-se a total liberdade de ação da força aérea em Gã Formoso. Sabia-se que se tratava de resultados transitórios, que tinham sido utilizados praticamente todas as aeronaves à sua disposição, gastaram-se 4200 kg de bombas, mas também muitos foguetes, projéteis de canhão e cartuchos. A Operação Barracuda demonstrou também o valor da fotografia de baixa altitude graças às missões de reconhecimento realizadas pelos Fiat, que revelaram informações detalhadas sobre a localização e disposição no terreno das posições antiaéreas do PAIGC.

Ação da Operação Barracuda (Matthew M. Hurley)
Posições de metralhadoras DShK próxima de um aldeamento, imagem tirada durante a Operação Barracuda (Arquivo da Defesa Nacional)
Operações helitransportadas entre maio e dezembro de 1967 (Matthew M. Hurley)
Um Alouette III numa operação contra o PAIGC (Coleção Serrano Rosa)

(continua)

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Nota do editor

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Último post da série de 22 DE JANEIRO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25100: Notas de leitura (1660): "Os três rostos da Igreja Católica na Guiné" (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25111: Memórias cruzadas: pistolas Walther P38 alegamente capturadas ao nosso exército, e distribuídas ao pessoal do PAIGC, ainda antes do início oficial da guerra... (José Macedo, ex-2º ten fuzileiro especial, RN, DFE 21, Cacheu e Bolama, 1973/74, a viver agora nos EUA)



A pistola Walther, P38, de 9 mm, de origem alemã, foi adoptada pelas nossas Forças Armadas, em 1961, como pistola 9 mm Walther m/961, vindo substituir a Parabellum.
Foi desde logo utilizada na guerra colonial em África (nova versão P1).  




Declaração: 
"Nós, abaixo assinados, declaramos que da mão do nosso camarada Pascoal recebemos duas pistolas marca Walther, números 770809 e 241113, com quatro carregadores 100 balas (sic) 
com cinquenta cada um.

Koundara, 3 de novembro de 1961
aa) Braima Solô (?) | Adbul Djaló


Declaração: 
"Nós, abaixo assinados, declaramos que da mão do nosso camarada Pascoal recebemos duas pistolas marca Walther, números 220868K e 214492K, com quatro carregadores 100 balas (sic) 
com cinquenta cada um.

Koundiara, 3 de novembro de 1961
aa) Pedro Gomes Ramos | Hilário Gapar Rodrigues



Fonte: Casa Comum | Fundação Mário Soares | Pasta: 07068.099.028 | Título: Declaração de recepção de pistolas | Assunto: Declaração assinada por Pedro Ramos, Hilário Gaspar Rodrigues, Braima Sôlô e Abdul Djalo, acusando a recepção de pistolas Walther. | Data: Sexta, 3 de Novembro de 1961 | Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral |Tipo Documental: Documentos | Página(s): 1

Citação:
(1961), "Declaração de recepção de pistolas", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41059 (2024-1-25)



Pistolas Walther, e respetivos números, alegadamente capturadas ao exército português pelo PAIGC. S/d, s/l.

Fonte: Casa Comum | Fundação Mário Soares |  Pasta: 07056.009.011 | Título: Pistolas Walther nas Zonas 4, 7 e 8 | Assunto: Números de série de pistolas Walther [capturadas ao exército português] nas Zonas 4, 7 e 8. | Data: s.d.Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Material militar (com manuscritos de Amílcar Cabral).Fundo: DAC - Documentos Amílcar CabralTipo Documental: Documentos-

Citação:
(s.d.), "Pistolas Walther nas Zonas 4, 7 e 8", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_40992 (2024-1-25)




Pistolas Walther, para a Zona 11: "P38 9mm | 346 k ac 44 | 3375 d c/ 160 b(alas) | Data: 6/10/1962.


Fonte: Casa Comum | Fundação Mário Soares ! Pasta: 07056.009.021 | Título: Pistolas Walther para a Zona 11 | Assunto: Pistolas Walther para a Zona 11.| Data: Sábado, 6 de Outubro de 1962 | Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabrall | Tipo Documental: DocumentosPágina(s): 2


Citação:
(1962), "Pistolas Walther para a Zona 11", Fundação Mário Soares / DAC - Documentos Amílcar Cabral, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_41002 (2024-1-25)


(Com a devida cénia...)


  
1. Mensagem do nosso amigo e  camarada José Macedo  (ex-2º tenente fuzileiro especial, RN, DFE 21, Cacheu e Bolama, 1973/74; nasceu na Praia, Santiago, Cabo Verde, em 1951; vive nos Estados Unidos, onde é advogado; é membro da nossa Tabanca Grande desde 13/2/2008):

Data - quinta, 23/03/2023, 21:31
Assunto - Pistolas Walther


Boas noites, camarada. Espero que lá em casa estejam todos de saúde (parece as cartas do 'Nino' ao Aristides Pereira).

Tenho passado algum tempo a ler,  na Casa Comum, o Arquivo Amilcar Cabral,  e tenho encontrado alguma correspondência em que eram enviadas pistolas Walther para as diferentes Frentes. E como cada pistolas tinha o seu número de série, fico curioso em saber se seria possível identificar as  unidades a que  pertenciam as pistolas que foram capturadas.

Um abraço,

Zeca Macedo

2. Comentário de LG:

Vai ser muito difícil, se não impossível,  a alguém (incluindo o nosso especialista em armamento, o Luís Dias) (*) dar-te uma ajuda no esclarecimento desta questão... 

Tendo em conta o ano (1961 e 1962), mas também a quantidade (nos documentos acima repriduzidos são duas dezenas), é de todo imprável que estas pistolas Walher tenham sido capturadas pelo PAIGC ao exército português... 

De facto, não consta que tenha sido assaltado por forças do PAIGC (ainda PAI)  algum depósito de armamento em Bissau ou  esquadra de polícia e, muito menos, algum aquartelamento no mato (ainda havia poucos), no início dos anos 60...

E mesmo que fossem pistolas do exército português, só eventualmente no Arquivo Histórico-Militar, e com muita sorte, se poderia encontrar uma lista dessas armas "capturadas pelo IN", com os respetivos números de série... Enfim, seria como encontrar uma agulha num palheiro...  

O mais provável é estas pistolas Walther P38 (a nossa era já a P1) terem entrado clandestinamente na Guiné-Conacri, oriundas de Marrocos ou terem sido  compradas no "mercado negro" (lembro-me de Luís Cabral ter falado nisso, nas suas memórias)... Terão equipado os primeiros comandantes e comissários politicos como nosso conhecido Pedro Ramos, irmão do Domingos Ramos, que andavam a fazer trabalho essencialmente político (propaganda, recrutanento e organização) no interior do território) e ações de sabotagem ... 

O PAIGC oficialmente começou a guerra (dos tiros)  em 23 de janeiro de 1963, com um ataque a Tite.  No meu tempo (1969/71), eles já usavam a pistola russa Tokarev (a CCAÇ 12 apanhou uma a um guerrilheiro: vd foto a seguir)...

De qualquer modo, obrigado pela tua questão. Pode ser que algum camarada tenha mais alguma informação adicional. (**)



Uma pistola de origem soviética, Tokarev, de 7,62, igual ou parecida à que que foi apreendida ao guerrilheiro Festa Na Lona, na Ponta do Inglês, no decurso da Op Safira Única ... Pelo que me recordo, esta pistola ficou à guarda do Alf Mil Abel Maria Rodrigues, comandante do 3º Grupo de Combate, que a tomou como "ronco"... Não sei se a conseguiu trazer para o Continente e legalizá-la... Ao que parece, esta arma teve a sua estreia na Guerra Civil de Espanha, em 1936, nas fileiras do exército republicano, estando distribuída a pilotos e tripulações de tanques, entre outros... (LG).

Fonte: © Kentaur, República Checa (2006)(com a devida vénia...)
 (link descontinuado:
 http://www.kentaurzbrane.cz/shop/images/sklady/tokarev.jpg )

_________________

Notas do editor:

(*) Vd. postes de:

(...) A pistola Walther P-38 é uma arma semi-automática, com origem na Alemanha (fábrica Carl Walther), datada originalmente de 1938 e foi a substituta da Luger, como a principal pistola alemã da IIª Guerra Mundial, com provas dadas em diversos teatros de guerra. Em meados dos anos 50, foi seleccionada para equipar o novo Exército da RFA e, com ligeiras alterações, passou a denominar-se P1 e é este modelo que veio para Portugal, passando a ser a pistola das guerras de África. (...)

(**) Último poste da série >  16 de janeiro de  2024 > Guiné 61/74 - P25076: Memórias cruzadas: o que o PAIGC sabia sobre Bubaque, em 1969... "O antigo governador Schulz ia lá de vez em quando, com outros militares e algumas mulheres. O atual governador nunca lá esteve morado. Foi só visitar."...