Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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sábado, 15 de novembro de 2025
Guiné 61/74 - P27426: Efemérides (473):"O T de Teixeira - com o mesmo T se escreveu tragédia", no dia em que se cumpre mais um aniversários sobre a morte do soldado PelRec Teixeira
1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo CAR da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 14 de Novembro de 2025:
Camaradas
Amanhã cumpre-se mais um aniversários sobre a morte do soldado PelRec Teixera.
A foto vai neste mail.
O poema vai no outro
Abraços
Juvenal Amado
O T de Teixeira com o mesmo T se escreveu tragédia
O seu sorriso tímido
O seu rosto de menino
O seu olhar azul
Era uma figura suave
Caminhou sem protecção
Confiante na vara que empunha
Tentava enganar o destino
Enquanto espetava à frente dos pés
Naquela madrugada
Perdeu tudo
O sangue escorreu até fazer lama
Encheu-nos de terror
O ar irrespirável
No silencio ecoaram os gritos
Semelhantes a um animal ferido
Ecoavam doutra dimensão
As suas passadas no chão
O seu corpo amputado
Suas mãos e rosto flagelado
Negro de morte
O alivio possivel foi a morte
No meio da dor, a paz
No meio do suor e sangue
A redenção
Era um homem silencioso
Discreto
Não dava nas vistas
Só a que a morte o viu?
15/11/1982
Juvenal Amado
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Nota do editor
Último post da série de 11 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27410: Efemérides (472): Fotos da Festa do Fanado que decorreu em Tite no mês de Novembro de 1969 (Aníbal José Silva, ex-Fur Mil Vagomestre)
Guiné 61/74 - P27425: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (37): o Petromax de 500 CP/Velas

1. Nunca tive um Petromax. Nem em casa nem na Guiné. Por muitas voltas que dê ao meu "arquivo", não encontro nem memórias nem referências (escritas) ao Petromax. No nosso blogue há 22 referências.
Ainda sou do tempo do candeeiro a petróleo. Fiz a quarta classe com ele. A eletricidade chegou tarde. Na Guiné, muitos dos nossos resorts turísticos, ecológicos, eram alumiados a Petromax. Sobretudo nos primeiros anos da guerra...
Por azar o meu, o nosso quarteleiro nunca me dispensou nenhum. Se é que a minha CCAÇ 12, em Bambadinca, tinha Petromaxes à carga (era assim que se dizia ?).
Os Petromaxes começaram a aparecer nos anos 50, no "Continente" (leia-se: em Portugal Continental, ainda não havia o "Continente", marca registada).
2. Pedi à minha assistente de IA, a "Sabe-Tudo", para me dar umas "luzes", uma explicação simples e prática, sobre o esquema da lanterna Petromax (modelo ~500 CP / Velas) (o topo de gama, no meu tempo de menino & moço). Aqui vão umas dicas.
2.1. Resumo dos nomes das peças (o que está apontado no desenho, acima)
- Teto: a tampinha superior que protege e ajuda a espalhar o calor.
- Camisa: a estrutura/carcaça que envolve o corpo da lâmpada (e o vidro); protege o difusor e ajuda a circulação do ar.
- Vaporizador/gerador: é onde onde o combustível líquido é aquecido e transformado em gás antes de chegar ao manto.
- Manto (a peça pontilhada dentro): a "rede" cerâmica/tecida que brilha com luz intensa quando o gás queimado incandesce.
- Bomba: o pistão manual que pressuriza o depósito (tanque); ao bombear, cria pressão para forçar o combustível através do vaporizador.
- Válvula de controlo: regula a quantidade de combustível(ou gás, nas versões mais modernas) que vai para o vaporizador/manto: controla a intensidade da luz.
- Depósito: o tanque que contém o combustível (querosene/parafina, conforme o modelo).
(i) abasteces o depósito com combustível apropriado;
(ii) pressionas (bombeias) o depósito com a bomba manual: isso cria pressão no tanque;
(iii) ao abrir a válvula de controlo, o combustível pressurizado é forçado para o vaporizador;
(iv) o vaporizador está quente (ou é pré-aquecido) e transforma o combustível líquido em vapor/gás;
(v) esse gás sobe para o manto, onde queima e faz o manto incandescente: é isso que produz a luz forte característica;
(vi) a camisa e o teto ajudam a controlar o fluxo de ar e a proteger o conjunto.
23. Dica sobre o termo “500 CP / Velas”
O “500 CP / Velas" normalmente refere-se à intensidade luminosa aproximada (CP = candlepower / velas). 500 velas, quer dizer que é uma lanterna muito brilhante.
3. Cuidados importantes (segurança):
- usa apenas o combustível recomendado pelo fabricante;
- não enchas demais o depósito;
- faz o pré-aquecimento do vaporizador conforme as instruções (muitos modelos exigem pré-aquecimento para vaporizar corretamente);
- não toques no manto enquanto estiver quente, é frágil e queima;
- manuseia a lanterna em local ventilado e mantém-na estável.
4. Conselhos de um veterano (se um dia tiveres ainda que voltar à guerra, noutra incarnação, e levar um Petromax, que pesa menos que um gerador):
- não o acendas à noite, dentro da tenda ou da tua morança (se estiveres alojado num tabanca);
- a luz atrai os mosquitos e os "snipers";
- se tiveres insónias, pesadelos e outras coisas assim, é melhor beber uma golada de aguardente Doc Lourinhã para adormeceres ou então jogar às cartas às escuras;
- aconselho a aguardente Doc Lourinhã, porque é nossa: o uísque é escocês; mas eu não sou chauvinista, nem racista, nem xenófobo, muito menos supremacista;
- sempre é melhor do que o Valum 10 ou o Xanax;
- sempre é melhor do que levar com um balázio de um RPG "made in China";
- mas bem melhor ainda é contratares uma bajuda para te catar, enquanto adormeces;
- sabes o que é "catar" ?;
- um gajo no mato apanha muitos "parasitas;
- "catar" é um ato altamente social, só próprio dos primatas;
- mas, por favor, nunca uses o Petromax;
- mando-o para longe, para iluminar o perímetro do arame farpado;
- se tiveres quatro, melhor, pões um cada canto do teu "quadrado";
- em alternativa pede á empresa do Patricio Ribeiro para te instalar uns painéis solares.
Foi assim que os nossos "mandjores" ganharam as guerras das "campanhas de pacificação"...Com a estratégia do "quadrado". O capitão Tomé Pinto ficou célebre pela aplicação desta figura geométrica na guerra da Guine. Ainda hoje é conhecido pelo capitão do quadrado.
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Nota do editor LG:
Último poste da série >14 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26918: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (37): os arraiais e as fogueiras dos santos populares
Guiné 61/74 - P27424: Os 50 anos da independência de Cabo Verde (13): Mindelo, agosto de 1935: o que mostra e o que omite o filme de San Payo, de 1936 ("1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente") - Comentários -. ParteI (Adriano Lima, cor inf ref)
Cabo Verde > São Vicente > Mindelo > c. 1943 > A cidade, a baía do Porto Grande e o Monte Cara ao fundo. Ao centro, em segundo plano, o edifício de maior volumetria é o Liceu Gil Eanes (Infante Dom Hienrique, até 1937), por onde passou a elite do Mindelo e onde estudou Amílcar Cabral (que ali completou o 7º ano do liceu, em 1944, seguindo depois para Lisboa onde se licenciou em engenharia agronómica, no Instituto Superior de Agronomia). Mas por lá passaram também os nossos camaradas Adriano Lima e Carlos Filipe Gonçalves, que agora se reencontram através do nosso blogue. E viveram na mesma rua! O Adriano Lima só voltou a sua terra 40 anos depois. E o Carlos vive ha muito na Praia (desde que regressou da Guiné -Bissau em 1975).
Cortesia de Adriano Miranda Lima / Blogue Praia de Bote (2012). Informação complementar de Adriano Miranda Lima: Foto de origem desconhecida mas que parece ser da Foto Melo ou do José Vitória. Legenda: LG.
Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Outubro de 1941 > "O belo porto de mar de São Vicente; ao centro o ilhéu que se confunde com um barco [o ilhéu dos Pássaros]"... Foto (e legenda) do álbum de Luís Henriques, ex-1º cabo at inf, 3ª Companhia do 1º Batalhão do RI5, unidade mais tarde integrada no RI 23 (São Vicente, Cabo Verde), 1941/43). Origem: provavelmente Foto Melo.

1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, documentário de San Payo (1936) > Cabo Verde > Ilha de São Vicente > Mindelo > Agosto de 1935 > A miudagem disputando as moedas deitadas para o meio da rua pelos turistas do "Moçambique"... Um espectáculo degradante, aos olhos de hoje, mas que fazia parte do "folclore" de "Soncent". A ilha, do Barlavento, a segunda mais populosa do arquipélago, continua a perder hoje o concurso dos seus melhores filhos para a Praia (a capital política) e para emigração. Apesar do desenvolmento socioeconómico da ilha e do resto do arquipélago.
Cortesia de Cinemateca Digital, documentário "I Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente", realizado em 1936 por San Payo. Disponível aqui:
http://www.cinemateca.pt/Cinemateca-Digital/Ficha.aspx?obraid=1378&type=Video
(Seleção e edição de imagens, numeração, legendagem, revisão / fixação de texto, título, negritos: LG)
1. Comentários, por email, aos postes P27409 e P27416 (*), enviados por Adriano Lima (cor inf ref, membro da Tabanca Grande nº 560, desde 2/12/2012; natural de Mindelo, Ilha de Sáo Vicente, Cabo Verde, reside em Tomar; fez comissões de serviço em Angola e Moçambique):
Data - quarta, 12/11/2025, 22:58Caro Luís.
Adriano
2. Resposta do editor LG:
Data - 13/11/2025, 09:42Adriano, é mesmo "sem som". Os documentários na época não tinham som . O som síncrono ainda era tecnicamente complicado.
Olha, divulga pela Praia do Bote. Um abraço para o Joaquim Saial e colaboradores. Ab, Luís
3. Novo comentário Adriano Lima:
Data - 13/11/2025, 17:01
Luís, boa tarde.
Sim, desconfiava que o filme não tinha som, mas precisava confirmar. Vale pelas imagens e pelo estilo narrativo, que nos retratam o Estado Novo na sua genuinidade. A visita destes excursionistas foi uma decisão simpática e compreensível, exemplo que estava longe do pensamento de Salazar, que nunca pôs os pés no Ultramar.
Os meus olhos centraram-se na miséria bem patente nos jovens e crianças com vestes esfarrapadas e descalças, com os miúdos mais novos completamente nus, em disputa para apanhar umas moedas que os visitantes lhes terão atirado junto ao Mercado Municipal.
Claro que 1935 estava ainda sob os efeitos da crise mundial de 1929, que afectou drasticamente todo o mundo, mesmo os países ricos. Mas era endémica a pobreza em Cabo Verde, pois lembro-me de ver na minha infância quadros idênticos ao observado, com crianças (rapazes) completamente nuas nos atredores de Mindelo.
Mais tarde, já na minha adolescência/juventude, o panorama melhorou um pouco, pois crianças nuas eram já raras. Em todo o caso, bem antes do meu tempo as autoridades terão proibido a ida de crianças nuas à cidade, que em crioulo se diz "morada".
No filme vêem-se também miúdos desnudados em botes, que asssediavam os navios que chegavam. Era hábito atirar moedas para o mar para eles as irem apanhar no fundo. Desde muito cedo faziam pela vida no meio da baía.
As coisas mudaram bastante e hoje, aliás desde há muito, e já não se vêem pessoas com roupas rotas ou remendadas ou descalças.
![]() |
Francisco Xavier da Criuz (B.Leza) (1905-1958) |
Voltei a mirar os músicos e não consegui reconhecer nenhum (eu só nasceria 10 anos depois deste acontecimento). Era já célebre o músico e compositor B. Leza (Francisco Xavier da Cruz), que em 1935 tinha 30 anos, mas não sei se é alguns dos músicos. À época também eram já célebres o Mochim d' Monte e o Manuel Querena, ambos violinistas. Serão alguns dos que estão no filme? O B. Leza é este da foto (à direita).Ah, no filme reconheço o que foi o fundador dos Sokols de Cabo Verde, Júlio Bento Oliveira, meu parente. Está de farda branca (a de comandante dos Sokols) e ao lado de Marcelo Caetano quando este discursa na recepção da Câmara.
Já não me lembrava desse texto, "Sentimentos Retroactivos", que escrevi em 2016. Obrigado pela tua apreciação.
Vou enviar o mail ao Joaquim Saial.
Abraço amigo
Adriano
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Nota do editor LG:
Guiné 61/74 - P27423: Os nossos seres, saberes e lazeres (709): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (230): Por casualidade, o fotógrafo interessou-se por tal momento, por ele considerado esplendente - 1 (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 3 de Outubro de 2025:
Queridos amigos,
Há pouco a explicar quanto às razões pelas quais se acumulam imagens que, pasme-se, até tinham sido tiradas para se juntarem a outros eventos de itinerâncias. É a limpar a câmara fotográfica que encontro estas recordações do amanhecer na Feira da Ladra, pois venho sempre ao princípio da feira em busca de tesouros e não escondo que às vezes sou bem sucedido. Há igualmente imagens avulsas que se prendem com a satisfação que sinto a estar a ver o arvoredo daquele local do Reguengo Grande, onde tenho casebre, estou para ali, a espairecer, ouvindo tocatas de Bach ou sonatas de Schubert, chega o lusco-fusco e ponho-me no parapeito à espera do fim do dia, o resultado aqui publiquei na semana anterior. E hoje conto-vos a história porque vos mostro uma vista da Graça tirada do Teatro Taborda, a antiga sede do Patriarcado, no Campo Santana, ou o interior da gigantesca cúpula da Basílica da Estrela.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (230):
Por casualidade, o fotógrafo interessou-se por tal momento, por ele considerado esplendente – 2
Mário Beja Santos
Devo muitíssimo à Feira da Ladra, e falando concretamente do nosso blogue, essa dívida exprime-se em papéis que eu aqui adquiro e que me são muitíssimo úteis para falar da Guiné. Ensinaram-me que se deve vir à Feira um pouco antes das sete da manhã, é por essa altura que os vendedores, pessoas que compram espólios onde tanto podem vir livros como a mais diversa quinquilharia, tiram dos sacos e põem nas bancas estes livros e papelada avidamente folheados por negociantes e bibliófilos, em que me incluo. Ganho imenso em ver o nascer do dia neste Campo de Santa Clara, por vezes venho mais cedo no frio do inverno, foi assim que captei uma imagem na rua do Vale de Santo António que me serviu de capa para o meu livro A Rua do Eclipse, espanto-me sempre de ver avermelhar o negrume, o rio incendeia-se, no entretanto há cambiantes de luz entre o amarelo e o esverdeado; e gosto de ver montar a Feira, inicialmente é todo um caos e, de repente, à luz do dia sentimos que se está a percorrer um verdadeiro mercado onde prima a fancaria, o que parece não ter préstimo, mas nós, os potenciais compradores, estamos ali confiantes de que é dia de sorte para alcançar almejados tesouros.
Os feirantes estão a chegar, cada um acampa no espaço que alugou. Será que eu vou encontrar aqui hoje algum tesouro?
Como isto aconteceu, não tenho explicação, seriam seis e meia da manhã, está tudo esborratado nestes estranhos azuis e amarelados, talvez um meteorologista me pudesse explicar porque está azul-celeste a cúpula de Santa Engrácia, o arvoredo, os toldos e o alcatrão, parece cenário de teatro, talvez mesmo uma aurora mística.
Enquanto a feira se organiza, ponho-me no fundo de Santa Clara, perto do antigo Hospital da Marinha que está a ser trans formado em hotel ou condomínio de luxo, venho bisbilhotar o Tejo, embora a melhor panorâmica seja trezentos metros acima no Mercado de Santa Clara. O que me atrai são estas cambiantes de luz amarelada a enfrentar o dia nascente: é como se fosse uma cintilação de ouro antes de que todas as cores fiquem esclarecidas.
Sim, a feira está armada, vai começar a busca, passo pelas loiças como cão por vinha vindimada, o papel é sempre o meu alvo principal, mas não desdenho das caixas de CDs, e há também espaço para as minhas ninharias, é o caso das gravatas, embora ninguém acredite é possível comprar a 1 euro gravatas Hermès ou Armani, depois mandar limpar a seco. Nos bons tempos que fiz na Feira da Ladra de Bruxelas comprei lenços para o pescoço da Chanel, Yves Saint Laurent ou Balenciaga, a minha filha herdou este pacote de relíquias.
Palácio Costa Lobo, depois sede do Patriarcado, no Campo de Santana, será transformado em residências de luxo. Passo por aqui quando me dirijo à Biblioteca do Goethe-Institut, ali bem perto. Em 15 de março de 1995, amigos ofereceram-me almoço na rua de S. José antes de eu partir para ser operado no Hospital dos Capuchos a uma hérnia na L4. Tomei o elevador do Lavra, por aqui andei a passo de tartaruga, e quando cheguei aqui à sede do Patriarcado, saiu de um carro D. António Ribeiro, o cardeal da época, com quem me relacionei em atividades da Juventude Universitária Católica. Cumprimentos para aqui e para acolá, achei um tanto desusado as perguntas que me fez não da doença, mas pelo local e o dia da operação. No dia seguinte à dita operação, apareceu-me o médico do dia com um ar um tanto embaraçado, estava lá fora o cardeal para me visitar, devia pôr ali uma cadeira ou não? Além disso, havia ali também um guineense com um cacho de bananas. Meio tonto pelas drogas que me tinham dado, disse ao médico para mandar entrar o cardeal, não queria nada de longas conversas. Acontece que na cama ao lado estava lá um senhor que sofria de hidrocefalia, com a regularidade que era internado para extrair líquido. Quando viu entrar o cardeal, o homem ficou possesso, que não queria morrer, se vinha ali um cardeal era para lhe dar uma extrema-unção… nunca vivi uma cena como esta, recordo-a sempre quando por aqui passo.
Tirei esta fotografia no Teatro Taborda. Lá caí mais uma vez na esparrela de ir ver um grande clássico adaptado, de peças de três horas ou mais reduz-se para um espetáculo de hora e meia com toda a luminotécnica a ferver, em vez de estar a ver um gigante do classicismo estou numa rave, com lasers e barulho. Mas não perdi de todo a noite. Esta imagem tendo lá em cima o Convento da Graça tirou-me a má disposição.
Já aqui dei conta de uma itinerância ao Museu Nacional de Arte Antiga. Não publiquei esta imagem, parece que a guardei com grande devoção. Lembro-me perfeitamente do tempo em que a Custódia de Belém, a obra-prima máxima da ourivesaria portuguesa era mais escura do que clara, só o ouro é que brilhava, depois um mecenas apanhou a operação de conservação e restauro, temos aqui mais um mistério de quem é o seu autor, há quem diga que foi Gil Vicente. Para mim é assunto desinteressante, ando por vezes tempo sem fim aqui à volta, estupefacto com a elegância e o poder espiritual que emana desta obra.
Venho por vezes a Arroios a uma loja de eslavos onde é possível comprar arenque fumado, que aprecio comer com puré de batata condimentado. Esta é a fachada da Igreja do Convento de Arroios, durante muitos anos não me interroguei porque é que estão ali as pedras de armas da Grã-Bretanha. Acontece que a Rainha D. Catarina de Bragança, viúva de Carlos II na Grã-Bretanha mandou aqui fazer um colégio para os Jesuítas, a igreja ficou sob a égide da Nossa Senhora da Nazaré. Depois da extinção das Ordens Religiosas deu em hospital. Todo aquele espaço está com ar desgraçado, vai seguramente acabar em condomínio de luxo, a igreja está agora sob o culto ortodoxo, penso que é frequentada pelos ucranianos. Esta fachada merecia melhor sorte.
Quando recebo visitas de amigos estrangeiros nunca me passa pela cabeça sugerir uma visita à Basílica da Estrela, quando muito, falo dela no elétrico nº 28. Mas desta feita o casal alemão pedia para visitar a Basílica, ainda pensei que vinham apaixonados pelo presépio de Machado de Castro, mas não, gostam de estudar estes matacões do barroco. A igreja estava aberta, ouvia-se os cantares na Capela da Adoração, havia gente nos bancos a aguardar missa e eu aproveitei para me pôr no centro do transepto e olhar a altíssima cúpula, reconheço que é impressionante, só peço desculpa de a imagem não aparecer devidamente equilibrada, e é difícil de imaginar a altura que nos separa do piso da igreja.
(continua)
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Nota do editor
Último post de 8 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27400: Os nossos seres, saberes e lazeres (708): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (229): Por casualidade, o fotógrafo interessou-se por tal momento, por ele considerado esplendente - 1 (Mário Beja Santos)
sexta-feira, 14 de novembro de 2025
Guiné 61/74 - P27422: Agenda cultural (908): Sessão de lançamento da biografia de Eugénia Sousa (1935-2025). "Coragem, Altruísmo eFé", da autoria de Rosalina Coelho Vaqueiro: Biblioteca Municipal de Sesimbra, sábado, 15, às 15h00
1. Morreu há pouco tempo, aos 89 anos, no passado mês de maio. Mas uma amiga (e vizinha, de Sesimbra, onde ela vivia) já lhe escrevera a sua história de vida.
Nota do editor LG:
Último poste série > 10 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27406: Agenda cultural (907): Museu Nacional de Etnologia, Belém, Lisboa: Prolongada até 30/11/2025 a Exposição: “Desconstruir o Colonialismo, Descolonizar o Imaginário. O Colonialismo Português em África: Mitos e Realidades” ... Saiu, entretanto, a 2ª edição, revista e aumentada, do livro homónimo (Lx., Colibri, 2025, 360 pp.)
Guiné 61/74 - P27421: Notas de leitura (1864): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (6) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Novembro de 2025:
Queridos amigos,
No final desta digressão, pode dizer-se sem nenhuma tibieza que este exercício coletivo de investigação sobre o Património Histórico e Cultural de Lisboa cruzado com uma vastidão de ramificações com a história colonial e imperial portuguesa foi a bom porto. Quanto a vastidão e ramificações houve bastante acerto na escolha dos espaços, dos atores, das instituições e na pluralidade de reverberações contemporâneas. Viajámos desde o Arquivo Histórico Ultramarino até à Sociedade de Geografia de Lisboa; indagaram-se nomes de ruas, entidades bancárias, estatuária, museus, palácios, tomou-se conhecimento do seu papel no passado e como podem ser cruciais para melhor entender o que a memória colonial representa na sociedade portuguesa, já que hoje não se pratica uma investigação ou uma historiografia da grandeza imperial, o que se pretende interrogar é a linha histórica de Portugal e o desempenho nevrálgico que tiveram os tempos imperiais - porque eles repercutem-se no tempo presente.
Um abraço do
Mário
Império e colonialismo: reverberações na Lisboa atual - 6
Mário Beja Santos
Ecos Coloniais resulta de um exercício coletivo de investigação sobre o património histórico e cultural, aqui se interrogam instituições, entidades, monumentos, obras de arte, palácios onde se interseccionam a história colonial e imperial portuguesa, do passado ao presente, edição ilustrada com fotografias de Pedro Medeiros e o acervo de textos tem a coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto, edição Tinta-da-China 2022. Logo na introdução, os organizadores referem que este levantamento é uma obra consciente e que há muito por investigar e por saber, importa evitar generalidades e simplismos mobilizadores para escapar aos engenheiros e empreendedores da “história” e da “memória”.
Este será o último texto que dedicaremos a esta obra, falaremos do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, do político e poeta angolano Viriato da Cruz e da Sociedade de Geografia de Lisboa. No site Lisbon Rio, escreve Cláudia Castelo a propósito da Rua Gilberto Freyre:
“A proposta de atribuição do nome Gilberto Freyre a uma rua de Lisboa foi apresentada pelo jornalista e olisipógrafo Appio Sottomayor e por José Esteves Pereira, professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e aprovada pela Comissão Municipal de Toponímia na sessão de 16 de Novembro de 2001. A rua Gilberto Freyre situa-se entre a rua Jorge Amado e a avenida Vergílio Ferreira, no Bairro do Armador (freguesia de Marvila), um bairro de habitação económica de promoção pública municipal e cooperativa, que começou a ser edificado no final dos anos de 1990 na antiga zona “M” de Chelas. Destinado a realojamento de famílias de bairros precários, acolheu pessoas de diversos grupos étnicos".
Segundo o site Toponímia Lisboa, a inscrição do nome do cientista social brasileiro no espaço urbano lisboeta deveu-se ao facto de Freyre ter criado o luso-tropicalismo. Em traços gerais, trata-se de uma doutrina assente numa leitura essencialista do carácter português, que postula que o povo português tem uma especial capacidade para se adaptar aos trópicos, por uma relação de amor e não de interesse, fruto das suas origens étnicas remotas entre a Europa e a África, e do convívio com mouros e judeus na Península Ibérica medieval. Nenhuma referência é feita à apropriação das ideias de Freyre pela ditadura do Estado Novo, a partir da década de 1950, para fazer frente ao crescente anticolonialismo internacional e ao surgimento de movimentos de libertação em Angola, Guiné e Moçambique.
A criação no espaço da cidade de um lugar de memória em torno do criador do luso-tropicalismo revela a persistência pós-colonial de um discurso sobre a suposta excecionalidade da colonização portuguesa e o suposto não-racismo inato dos portugueses, com ressonâncias num largo espectro político-partidário, mas sem bases históricas e sociológicas. A mesma autora faz uma reflexão sobre a obra de Gilberto Freyre em Ecos Coloniais. No ensino universitário, Freyre era estudado sobretudo pela sua interpretação da história e da identidade nacional brasileira, patente na sua mais aclamada obra, Casa Grande & Sanzala, que teve primeira edição no Rio de Janeiro em 1933. “Ao abordar as relações entre os senhores portugueses, os escravos negros e os povos indígenas do território durante o período colonial, celebrou a miscigenação e exaltou o contributo dos africanos e ameríndios para a formação do Brasil. Inicialmente, este livro não foi bem acolhido pelos ideólogos do Estado Novo, a preferência era para a fundação de Portugal pela reconquista cristã. Mas Freyre passou a ser visto de outra maneira face ao anticolonialismo internacional. A reflexão e a discussão da sua obra continuam a ser atuais.
Viriato da Cruz criou o Partido Comunista Angolano, envolvendo-se com vários grupos anticoloniais, antes de partir para Lisboa em 1957. É aqui que vai estabelecer contactos com Amílcar Cabral e também com outras figuras da história da política angolana recente, caso de Mário Pinto de Andrade e Lúcio Lara. Sentindo-se frustrado pelo facto de o Partido Comunista Português não ter apreciado a ousadia da criação de um partido congénere sem autorização prévia, Viriato da Cruz irá passar a sua vida no exílio. Estará presente em Tunes na II Conferência de Solidariedade dos Povos Africanos, terá sido aqui que pela primeira vez se pronunciou o nome do MPLA, à semelhança do PAI, nome que se transformará em PAIGC. Entrará em oposição à nova direção do MPLA, esta favorável à posição soviética, ele favorável à posição chinesa. “Essas divergências irão manifestar-se de forma cristalina na história de luta da libertação angolana e da guerra civil que se lhe seguiu, com a União Soviética e a China a patrocinarem diplomática e militarmente movimentos nacionalistas rivais.”
Viriato da Cruz parte para a China, será testemunha de todo o processo da Revolução Cultural, trabalhando para o bureau dos escritores afro-asiáticos. Até à sua morte, em 1973, viverá numa quase reclusão. Porquê o seu nome em Corroios, concelho do Seixal? Se o seu nome é sobejamente conhecido em determinados círculos políticos, é praticamente ignorado mesmo na colónia de imigrantes angolanos. “Viriato da Cruz deu-nos a visão de um projeto diferente de organização social e política. Participou em processos que nalguns aspetos foram libertadores, noutros, brutais. É na sua globalidade que Viriato da Cruz se torna ator de pleno direito da história portuguesa.”
Fechamos esta viagem com chave de ouro. A Sociedade de Geografia de Lisboa foi criada a 10 de dezembro de 1875. É uma das organizações mais frequentemente associadas À formulação, institucionalização e disseminação de um pensamento colonial em Portugal e no Império. Há que concordar com o autor do texto quando ele diz que a ação da Sociedade de Geografia esteve associada, direta ou indiretamente, a inúmeras atividades que contribuíram para o enraizamento de uma expressão duradoura de nacionalismo imperial em Portugal. Não se pode entender a formação do chamado Terceiro Império Português sem a atividade, ao longo de décadas, dos sócios que apresentaram aos poderes políticos argumentos e propostas de peso, promoveu-se inclusivamente na Sociedade de Geografia a Escola Colonial, havia que formar uma administração específica, pôr este funcionalismo a conhecer as línguas nativas, incluindo as do Oriente. A Sociedade promoveu e financiou expedições a África, cujas figuras mais destacadas foram Ivens, Serpa Pinto e Hermenegildo Capelo. Uma das grandes preocupações destes associados era a missão civilizadora, elaboraram-se inúmeros argumentários em defesa dos chamados “Direitos Históricos” de Portugal.
Como é evidente, a alavanca das primeiras décadas tinha como pano de fundo as exigências postas pela Conferência de Berlim de 1884-85 – para ter colónias havia que as ocupar, civilizar, desenvolver, conhecê-las aprofundadamente. E foi assim que se foram formando coleções – de arte, etnográficas, numismáticas, científicas. Criou-se uma Comissão Africana, o departamento mais ativo da Sociedade, pôs-se de pé o Boletim, tornou-se uma publicação regular em 1880, aqui se publicavam informações culturais, económicas, relatórios, o trabalho das missões religiosas, dava-se conhecimento da expansão dos caminhos-de-ferro, do conhecimento e do gráfico e cartográfico.
A vida da Sociedade de Geografia foi-se constituindo, depois do 28 de maio de 1926, paredes meias com os ideais do Estado Novo, tal como tinha aparecido irmanada com a propaganda e os desígnios da Monarquia Constitucional e a Primeira República. Direi que é extremamente difícil estudar sobretudo o Terceiro Império sem conhecer o impressionante acervo documental da Sociedade de Geografia. Com o distanciamento dado por meio século de democracia, é também necessário compreender como esta instituição moldou a história e memórias coloniais. Os seus associados podiam ser políticos do regime, funcionários da administração colonial, militares no ativo ou reformados, investigadores… vamos encontrar o que fizeram ou pretenderam fazer em artigos do Boletim, na inúmera documentação depositada nos Reservados, na caterva de obras de grandes ou pequenas edições, trazidas de todas as partes do Império e que por vezes não chegaram à Biblioteca Nacional ou não foram depositadas no Arquivo Histórico Ultramarino.
Falando por mim não me imagino a investigar a História da Guiné sem estar sentado nas amplas instalações de uma biblioteca que infelizmente não é tão silenciosa como devia ser, devido ao alarido que tem do Teatro Politeama.
Nota do editor
Vd. post de 7 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27397: Notas de leitura (1860): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (5) (Mário Beja Santos)
Último post da série de 10 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27408: Notas de leitura (1862): "Atlas Histórico do 25 de Abril", por José Matos; Guerra e Paz, 2025 (2) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P27420: (In)citações (281): Praxes assassinas... para "maçarico", "periquito" ou "checa" se começar a habituar...
1. O episódio que o Jaime Silva partilha connosco (*), é forte, tenso e revelador da dureza mas também da profunda ambiguidade moral, que marcaram muitos momentos da guerra colonial, vividos por nós. Nem todos, por outro lado, teriam coragem de o contar, em público, em livro.
Há vários aspetos que vale a pena comentar, e que são comuns às experiências por que passámos no CTIG.
Recorde-se que o Jaime Silva. de rendição individual, era comandante, "maçarico", de um pelotão da 1ª CCP/ BCP 21 (Angola, 1970/72). E que na Op Broca (c. 20-29 de maio de 1970), no norte de Angola, tem o seu "batismo de fogo". O seu pelotão já tinha experiêwncia operacional, e pôde contar com a dois bons graduados, o 1º cabo Onofre e srgt Mirra.
(i) O choque do “batismo de fogo”
O Jaime Silva descreve algo comum entre jovens oficiais enviados para cenários de guerra: a passagem abrupta da formação teórica (neste caso, recebida na EPI, em Mafra, e depois em Tancos, no RCP) para a realidade pura e dura da guerra de guerrilha e contraguerrilha (fosse em Angola, na Guiné ou em Moçambique),
O “maçarico” (em Angola), o " periquito" (na Guiné) ou o "checa" (em Moçambique) era confrontado de imediato com a imprevisibilidade do IN, e a brutalidade do combate num terreno que lhe era desfavorável. E isso marcava-o para sempre. O dia e o local do batismo de fogo.
(ii) O contraste entre comportamentos
A narrativa mostra três tipos de comportamento operacional num momento de grande tensão:
-
a serenidade, a coragem e a experiência do 1º cabo Onofre, que representa o militar que já tem traquejo e sabe agir com sangue-frio:
a lucidez e a maturidade do sargento Mirra, que confirma o papel fundamental dos graduados na estabilidade dos pelotões:
-
e, por fim, a conduta chocante do tenente miliciano, comandante de outro pelotão da 1ª CCP, cuja atitude ultrapassa qualquer ética militar, revelando como, em cenários de guerra, alguns indivíduos cruzavam fronteiras morais sob o pretexto da “praxia” ou da necessidade de endurecer os mais novos, os "maçaricos", liquidando crua e friamente um prisioneiro indefeso:
"(...) Face ao guerrilheiro sentado à nossa frente, rapa de um sabre de uma espingarda Simonov e, sem que nenhum dos três militares presentes (eu, o comandante de companhia e um soldado) esperássemos, num ápice, dá uma “saibrada” no coração do guerrilheiro e, depois, outra nos temporais, matando-o a sangue frio. Estupefacto, o comandante de companhia repreende-o daquele ato ignóbil e cobarde. Como se tudo aquilo fosse o mais natural, ele respondeu: – É para praxar, aqui, o alferes maçarico. É para ele aprender. Tem de se habituar." (...)
(iii) “Habituação": uma lógica perversa
A ideia de que um ato de extrema violência como aquele serviria como “lição” para um oficial recém-chegado, "maçraico", e logo ali "praxado". mostra bem como a guerra pode distorcer valores, normalizar atrocidades e criar um ambiente em que o desprezo pela vida humana se disfarça do mais miserável militarismo.
(iv) A importância do testemunho
Ao relatar o episódio, o Jaime Silva não só expõe uma realidade dura da época, como também reafirma a importância de não "romantizar" a guerra dos paraquedistas, tropa de elite. Como ele diz, "na guerra não vale tudo".
O facto de ainda recordar esse momento (traumático), demonstra que, para muitos de nós, a guerra colonial foi menos uma aventura turistico-militar e mais um conjunto de situações -limite (que deixaram cicatrizes, nalguns casos, físicas, mas sobretudo morais, psicológicas e humanas).
É um relato que merece ser preservado e discutido, aqui no blogue, mas também nas academias militares, porque ajuda a compreender o que significou, realmente, para milhares de nós, jovens portugueses, sermos enviados para África como "maçaricos", "periquitos" ou "checas"(**)
(*) Vd. poste de 13 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27417: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (4): o meu batismo de fogo e a praxe ao alferes “maçarico”
Guiné 61/74 - P27419: Parabéns a você (2433): César Dias, ex-Fur Mil Sapador Inf da CCS/BCAÇ 2885 (Mansoa e Mansabá, 1969/71); Jacinto Cristina, ex-Sold At Inf da CCAÇ 3546/BCAÇ 3883 (Piche e Camajabá, 1972/74) e Maria Arminda Santos, ex-Ten Enfermeira Paraquedista (Angola, Guiné e Moçambique, 1961/1970)
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Nota do editor
Último post da série de 13 de Novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27415: Parabéns a você (2432): José Manuel Lopes, ex-Fur Mil da CART 6250/72 (Mampatá e Colibuia, 1972/74)
quinta-feira, 13 de novembro de 2025
Guiné 61/74 - P27418: Em memória de Sissau Sissé, que me acompanhou durante muitos anos no meu trabalho de terreno em Contuboel (Eduardo Costa Dias)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de hoje, 13 de Novembro de 2025:
Queridos amigos,
Em 12 de novembro almocei no restaurante da Sociedade de Geografia de Lisboa com o meu amigo Eduardo Costa Dias, professor universitário aposentado, com tese de doutoramento baseada na agricultura Mandinga de Contuboel, onde fez trabalho de campo. Falámos de amizades inextinguíveis e sempre, sempre, dessa Guiné que gostaríamos de ver em trilhos de democracia, equidade, desenvolvimento, sempre em compasso de espera, para não dizer em regressão. À tarde, deixou-me no mail esta recordação tão terna, que tanto me surpreendeu. Perguntei-lhe seguidamente se permitia a sua publicação no blogue, prontamente disse que sim. Se procurarem no Google, terão provas dos trabalhos académicos guineenses, ali se expõem as suas colaborações nacionais e internacionais.
Sinto muito orgulho em ver o meu amigo Eduardo Costa Dias a participar no blogue.
Abraço do
Mário
Eduardo Costa Dias
Sissau Sissé acompanhou-me durante muitos anos no meu trabalho de terreno em Contuboel. Mestre, tradutor e, mais do que tudo, amigo. Sissau era fluente - falava, lia, escrevia em português, crioulo, fula e mandinga e em mais duas ou três línguas do grupo linguístico malinké. “Desenrascava-se bem” ainda em francês e árabe.
Membro de uma importante família de mouros com ramificações no Senegal, no Mali e na Guiné-Conacri, frequentou em simultâneo a “escola de branco” (anos 1960) e, durante longos anos, a madraça onde o avô, o pai, os tios e, a partir de certa altura, primos ensinavam. Durante dois anos frequentou intermitentemente uma madraça no outro lado do Geba, em Djabicunda. Muito religioso, Sissau Sissé não era exatamente um expert em textos corânicos. Era, sim, um excelente conhecedor dos, escrevendo à antiga, usos e costumes dos Mandingas e, sobretudo, um grande genealogista. Conhecia a história toda das grandes famílias Mandingas e, como ninguém, “lia” as ligações.
Os meus primeiros (e decisivos) contactos com a “floresta” da “genealogia religiosa muçulmana” foram por ele guiados. Devo-lhe, por exemplo, ter aprendido depressa o significado de palavras como baraka, distribuição de baraka, herança de baraka e o conteúdo de silsila: fulano aprendeu com o seu mestre X que por sua vez já tinha aprendido como seu mestre Y, que por sua vez já tinha aprendido do seu mestre W.
Tirei hoje esta fotografia - uma tábua escrita por alunos de uma escola corânica em Galugada Mandinga, no dia da festa Eid-al-Adha que o Sissau Sissé considerava o centro do ano muçulmano e no mês em que fez 30 anos que morreu.
Acometido de uma apendicite aguda em Contuboel foi trazido por um jeep do DEPA para o hospital Simão Mendes em Bissau. Morreu durante a operação… tendo precisado de oxigénio… o hospital não tinha, sendo mais preciso: não havia oxigénio porque tinha sido desviado e possivelmente, como na época acontecia bastante, vendido no Senegal ou na Gâmbia.
Sissau, Saudades tuas
Guiné 61/74 - P27417: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (4): o meu batismo de fogo e a praxe ao alferes “maçarico”
Espingarda semiautomática Simonov SKS-45, calibre 7,62 x 39mm M43, 1945 (Origem: ex-URSS). Uma das caracte5rístcias distintivas é incluir uma baioneta, em forma de faca, dobrável permanentemente anexada e um carregador fixo articulado. Como a SKS não tinha capacidade de tiro seletivo e seu carregador era limitado a dez tiros, tornou-se obsoleta nas Forças Armadas Soviéticas com a introdução da AK-47 na década de 1950. Na Guiné, era usada sobretudo pelas milícias do PAIGC.
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| Monumento aos combatentes do Ultramar. Lourinhã. Pormenor. Foto: LG (2025) |
Participaram nessa operação, em que esteve presente o general Luz Cunha, comandante da Região Militar Norte, várias companhias:
- uma companhia do exército, sediada em Zalala,
- a 19ª companhia de comandos
- e 1ª e 2ª companhias de paraquedistas, sediadas em Luanda.
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Jaime Silva, em 2013. Foto LG |
No contexto dessa operação, fomos transportados pelos helicópteros, Alouette III. Após o assalto à base, sem oposição, ficámos na zona.
E “vejo”, ainda hoje, o local e o momento em que um guerrilheiro armado progride na nossa direção e faço sinal ao cabo Onofre, que se encontrava à minha frente, para estar atento. Este correu na direção… do combatente e capturou-o, à mão!
O paiol encontrava-se dissimulado numa caverna no alto de um morro e, ainda, no sopé do mesmo. Seguimos um trilho indicado pelo guerrilheiro, mas fomos atacados com um forte poder de fogo de metralhadoras, armas ligeiras e morteiro 60.
Nesse momento, pondo em prática os “ensinamentos” sobre “a arte de bem fazer a guerra” (que tinha recebido e treinado exaustivamente, primeiro em Mafra, na EPI, durante o COM e, depois, no RCP, em Tancos, durante o tirocínio após o curso de paraquedismo), dou ordens ao sargento Mirra, que já tinha experiência de cumprimento de uma comissão em Moçambique:
– Mirra, envolva pela direita com a sua seção. Eu vou pelo centro com a segunda e vamos desalojá-los.
Com efeito, os dois pelotões conseguiram desalojar os guerrilheiros e chegar ao paiol. Nunca vi tanto material durante a minha comissão em Angola: armas, granadas, outro material de guerra, medicamentos, material de apoio escolar, etc.!
Nunca mais esqueci estes factos da minha primeira operação: primeiro, a lição de serenidade e coragem do Cabo Onofre, a sua lucidez e experiência naquela contexto; depois, a do sargento Mirra; por último, e inversamente, a atitude “sacana” do meu camarada, tenente miliciano, comandante do outro pelotão, que, face ao guerrilheiro sentado à nossa frente, rapa de um sabre de uma espingarda Simonov e, sem que nenhum dos três militares presentes (eu, o comandante de companhia e um soldado) esperássemos, num ápice, dá uma “saibrada” [## ] no coração do guerrilheiro e, depois, outra nos temporais, matando-o a sangue frio.
Estupefacto, o comandante de companhia repreende-o daquele ato ignóbil e cobarde. Como se tudo aquilo fosse o mais natural, ele respondeu:
– É para praxar, aqui, o alferes maçarico. É para ele aprender. Tem de se habituar.
O alferes maçarico era eu!
Foi assim! Um mundo surreal!
Notas de JS / LG:
[#] Puto, era a designação comum para referir Portugal (Continente), dada a sua dimensão reduzida em relação ao tamanho de Angola (e Moçambique).
[##] Saibrada, termo usado na gíria oral da guerra quando se uso o sabre (arma branca perfurante) para matar ou ferir o inimigo; o termo correto e que está grafado nos dicionários é "sabrada":
O uso do terno "saibrad"pode ser explicado por "contaminação (ou cruzamento Lexical)". Isto não é uma regra fonética, mas sim um lapsus linguae (lapso de língua) ou um ato falho. A contaminação ocorre quando o falante, ao tentar dizer uma palavra, a "contamina" inconscientemente com outra palavra que está semanticamente ou foneticamente próxima no seu cérebro. Neste caso, o falante queria dizer: "Sabrada" (o golpe de sabre). Mas o cérebro misturou com a palavra "Saibro" (o tipo de terra/cascalho, muito comum em campos de treino militar, "pistas de saibro", etc.).
A proximidade sonora (ambas começam com "Sa-") e a possível proximidade contextual (ambas as palavras existem no ambiente militar) levam o cérebro a fundir as duas, resultando em "Saibrada"
1. Com a devida vénia e autorização do autor, Jaime Bonifácio Marques da Silva (antigo alf mil pqdt, 1º CCP / BCP 21, Angola, 1970/72, conterrâneo do nosso editor LG; membro da Tabanca Tabanca desde 21/1/2024, com c. 120 referências no nosso blogue), passámos a criar uma nova série "Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci..."
É natural de Seixal, Lourinhã. Foi condecorado com a medalha de Cruz de Guerra de 3* Classe. Foi professor de educação física e autarca em Fafe. Está reformado. É sócio de várias associações de antigos combatentes, incluindo a AVECO - Associação de Veteranos Combatentes do Oeste, com sede na Lourinhá, e a Associação de Pára-Quedistas da Ordem dos Grifos63,com sede em Vila Nova da Barquinha.
Este é o quarto poste da série (que terá 15 postes, correspondentes a excertos das pp. 75-98 do seu livro, Capítulo Dois):
Nota do editor LG:
Último poste da série > 6 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27390: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21, Angola, 1970/72) (3): estive sempre no "gastalho", em guerra comigo e contra o IN






































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