segunda-feira, 16 de maio de 2022

Guiné 61/74 - P23266: Notas de leitura (1446): “Cartas à Guiné-Bissau, Registos de uma Experiência em Processo”, por Paulo Freire; Moraes Editores, 1977 (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Dizia Paulo Freire que a cultura africana é auditiva, é oral e não escrita. O eminente pedagogo contatou a Guiné-Bissau, apercebeu-se da realidade socioeconómica e cultural do país, defendeu que se devia ensinar crioulo com base na cultura oral e elaborar uma escrita. Profundo admirador de Amílcar Cabral, esqueceu-se que este era adepto incondicional do uso da língua portuguesa para o país independente. Cabral nunca disse publicamente as razões de fundo, mas ele sabia que era indispensável uma comunicação que dificultasse o caminho à francofonia, naquele tempo o apetite de Sékou Touré sob a Guiné-Bissau era grande, ele sonhava com a grande Guiné, Cabral promoveu a barreira linguística, depois da sua morte, a liderança do PAIGC seguiu o seu pensamento sem titubear. Mário Cabral é nestas obras um protagonista maior, fala de grandes sonhos e da escassez de recursos. O conflito político-militar de 1998-1999 caiu como uma bomba em todo o sistema educativo. Até hoje.

Um abraço do
Mário



A Guiné-Bissau e Paulo Freire

Beja Santos

Cartas à Guiné-Bissau, Registos de uma Experiência em Processo
 foi publicado pela Moraes Editores em 1977. A ressonância foi mínima, ver-se-á adiante que todas as propostas para a remodelação do sistema educativo sugeridas pelo eminente pedagogo brasileiro não avançaram, Mário Cabral explicará como e porquê. Há expressões de Paulo Freire que têm conteúdo duradouro, exemplo: “A fascinante experiência de aprender primeiro, ensinar depois e continuar a aprender ensinando”. Todos os documentos de Paulo Freire para as autoridades guineenses são um verdadeiro ensaio sobre a alfabetização, nunca descuram o facto de mais de 90% da população ser camponesa. Freire tivera uma experiência feliz na América Latina com os Círculos de Cultura e Círculos de Cultura Popular: a leitura da realidade através da descodificação de fotos e de desenhos, seguindo-se a leitura da realidade através de textos. Além de cientista empenhado, Freire era profundo conhecedor de todo o processo da luta armada e conhecia com fluência o pensamento de Amílcar Cabral. Enquanto fala nas palavras geradoras e a sua codificação para o arranque da literacia, não deixa de mencionar a preocupação de Cabral com aquilo que ele advertia sobre “o suicídio da pequena burguesia”. Insiste na correspondência com Mário Cabral que deve haver uma unidade territorial com que o aprendiz das letras se sinta familiarizado, a realidade da geografia, da produção, da política, da história, as etapas da política de saúde e até da cultura do arroz.

Bastante tempo depois, em 2003, a editora brasileira Paz e Terra editava “A África Ensinando a Gente”, conversas entre Paulo Freire e Sérgio Guimarães, sente-se que a experiência guineense permanece no coração desse grande mestre da alfabetização, vemos aqui afloradas questões muito polémicas como o português, o crioulo e as línguas étnicas. Apegado às convicções de Cabral, Freire considerava que a luta da reconstrução nacional era a continuidade da luta de libertação, em que se inclui o problema da identidade cultural, e recorda ao seu interlocutor uma frase de Cabral: “A luta de libertação é um facto cultural e um fator de cultura”. Na questão polémica da língua oficial, Freire dizia que o crioulo guineense não tinha condições para ser a língua oficial porque lhe faltava a escrita. Não se podia ensinar em crioulo a não ser pelo recurso oral, já que não havia um texto sequer escrito em língua crioula, era manifestamente insuficiente a boa vontade de alguns intelectuais que publicavam em crioulo, faltavam quadros no período posterior à independência, era praticamente impossível também ensinar a língua portuguesa nas zonas rurais do país. Freire sentiu-se enternecido quando viu camponeses criando palavras a partir da palavra portuguesa.
Retenha-se a seguinte observação de Freire: “Creio que a questão que se coloca no caso da Guiné, no momento, não é tanto mais a de pretender alfabetizar as grandes massas populares em português, mas, pelo contrário, de disciplinar estritamente a língua crioula, ao mesmo tempo que enfatizando, respeitando e desenvolvendo as demais línguas nacionais, para que, num futuro próximo, se ponha a língua portuguesa no seu devido lugar”. Mas ele pressentia que não era essa a vontade da liderança do PAIGC, esta sentia-se profundamente irmanada com o pensamento de Cabral quanto ao uso do português. Havia o entendimento (creio que permanece) que o crioulo era a língua nacional veicular e o português era a língua oficial, se é esta a catapulta no futuro para a comunicação entre os guineenses.

As conversas que vão saltitando por outros países como Angola e São Tomé, ouvem-se queixumes de gente autorizada como Lúcio Lara, Pepetela e Alda do Espírito Santo, Angola com a guerra civil e a despender minimamente na educação e São Tomé sem recursos, contando exclusivamente com a ajuda internacional. A entrevista com Mário Cabral é ainda hoje uma peça relevante, ele foi o destinatário da maior parte das cartas escritas por Paulo Freire. Começa o seu testemunho deste modo:
“Tínhamos uma pequena equipa que foi trabalhando, mas os primeiros embates começaram por ser pela língua. Porque nós, a alfabetização, estávamos a fazer em português. Lembro-me, uma vez disseram: ‘Mas, afinal, os colonialistas estiveram cá quinhentos anos e não nos fizeram aprender a língua deles. Como é que agora o PAIGC, que lutou contra o colonialismo, vai-nos ensinar o português?’. Eu disse: ‘Olha, é tão simples como isso: eu sou agrónomo. Estamos a tentar melhorar a nossa agricultura. Nós temos que recorrer a instrumentos, sementes melhoradas, adubos, etc., mas também vamos recorrer a tratores. Não fomos nós que inventámos o trator. Ora, a alfabetização é isso mesmo. As nossas línguas são muitas e não temos capacidade de fazer a alfabetização em todas as línguas. Vamos utilizar o português”.

Mário Cabral rememora a participação marcante de Paulo Freire naqueles primeiros anos da independência da Guiné-Bissau, o ideal de um processo educativo para todos, não atingido, não se ultrapassaram os 50% da alfabetização das crianças em idade escolar. Não podia iludir que o orçamento da Educação era reduzido, se alterara o quadro político com o multipartidarismo, que houvera um número impressionante de ministros da Educação. Embora a educação não fosse muito privilegiada do ponto de vista orçamental tinha havido um grande apoio da parte dos doadores, com a Suécia à cabeça. Mas a instabilidade levou a um quadro regressivo. “Acaba-se por dar mais dinheiro à Segurança ou às Forças Armadas do que à Educação. Bom, quando realmente a situação política é de instabilidade, a ponto de ter que se reforçar o controlo do cidadão para evitar o pior, há aí qualquer coisa de errado. Ora o desenvolvimento, a paz social existem quando há um mínimo de capacidade de gestão. Quando você não tem, numa perspetiva de futuro, coisas que o estimulem, a tendência é recorrer a um passado glorioso que você teve. E acho que este país está muito a sonhar com o passado, não está efetivamente a afrontar o presente e sobretudo, fazendo uma perspetiva para o futuro”.

Recorde-se que a entrevista de Mário Cabral a Sérgio Guimarães foi dada em 2002, o conflito político-militar de 1998-1999 devastara o país, restava a esperança, e Mário Cabral depositava esperança no profissionalismo da classe política, esperança numa perspetiva democrática de acesso ao desenvolvimento.

Aqui se deixa a recensão sobre as etapas cruciais do processo educativo da Guiné-Bissau, um quarto de século de sonhos e profundas deceções.



Uma imagem da fascinante arte bijagó.
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de Maio de 2022 > Guiné 61/74 - P23259: Notas de leitura (1445): “Guiné-Bissau, aspetos da vida de um povo” por Eva Kipp; Editorial Inquérito, 1994 (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Às vezes parece que quase há entendimentos entre os PALOP e o Brasil, mas nota-se que há muitos desentendimentos "subentendidos".
É uma pena, é que o Brasil é muito complicado.
E os nossos governos nem sempre sabem fazer a ponte.