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sábado, 2 de novembro de 2024

Guiné 61/74 - P26108: In Memoriam (516): Regina Gouveia (1945-†2024), Amiga Grã Tabanqueira, esposa do nosso camarada Fernando Gouveia

IN MEMORIAM

Regina Gouveia (1945 - †2024)

A notícia do falecimento da nossa amiga Regina Gouveia, esposa do nosso camarada Fernando Gouveia (ex-Alf Mil Rec Inf do CMD AGR 2957 - Bafatá, 1968/1970), ocorrida há cerca de três semanas, apanhou de surpresa os editores do blogue. A infausta notícia foi confirmada pelo José Teixeira e pelo António Pimentel, amigos próximos do casal Gouveia. 

Regina Gouveia, formada em Fisico-Químicas e Mestre em Supervisão, era professora aposentada do ensino secundário e autora de diversas obras literárias, algumas delas dedicadas aos mais pequenos.

Tem 15 referências no nosso blogue onde começou a colaborar no já longínquo ano de 2009. Acompanhando o seu marido, esteve presente nesse mesmo ano no IV Encontro Nacional da Tertúlia em Ortigosa.

Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real > 20 de Junho de 2009 > IV Encontro Nacional do nosso blogue > Regina e Fernando Gouveia. 

O nosso editor Luís Graça publicou no P4615 um pequeno resumo sobre Regina Gouveia que abaixo se reproduz:

(i) Nasceu em 1945 (em Santo André, Estado de S. Paulo, Brasil, onde vivei até aos dois anos de idade);

(ii) Passou a sua infância e adolescência no Nordeste Transmontano, em Portugal, de onde tem raízes pelo lado paterno;

(iii) casada com Fernando Gouveia, arquitecto, aposentado da CM Porto; acompanhou o marido, em Bafatá, durante a sua comissão militar (1968/70);

(iv) É Licenciada em Físico-Químicas (Universidade do Porto) e Mestre em Supervisão (Universidade de Aveiro).

(v) Professora do Ensino Secundário, aposentada, dedicou muito do seu tempo à formação de professores (foi orientadora de estágios durante 22 anos);

(vi) Colaborou com o Ensino Superior, nomeadamente com o Departamento de Física da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto.

(vii) Actualmente lecciona na Universidade Popular do Porto e colabora, a título voluntário, com a Biblioteca Almeida Garrett no Porto, divulgando a ciência e a poesia, junto dos mais pequenos.

(viii) Em 2005, no âmbito do Ano Internacional da Física, foi agraciada com a comenda da Ordem da Instrução Pública e premiada com o prémio Rómulo de Carvalho.

(ix) É autora do livro de didáctica Se eu não fosse professora de Física. Algumas reflexões sobre práticas lectivas e do livro de ficção Estórias com sabor a Nordeste.

(x) No âmbito da poesia, tem poemas dispersos em algumas publicações,além de prémios; é autora de dois livros de poesia Reflexões e Interferências e Magnetismo Terrestre;

(xi) António Gedeão (pseudónimo lietrário de Rómulo de Carvalho) é um dos seus poetas favoritos. Recorde-se que é o autor do célebre poema Pedra Filosofial (Eles não sabem que o sonho /é uma constante da vida...), transformado em canção de contestação, na voz de Manuel Freire, e nas vozes de alguns de nós,em Bambadinca (1969/71)...

(xii) Em 2006, publicou o seu primeiro livro para crianças: Era uma vez… ciência e poesia no reino da fantasia...

Duas fotos da jovem Regina Gouveia em Bafatá durante a sua permanência naquela localidade guineense onde o marido cumpria a sua comissão de serviço.


Em jeito de homenagem, aqui deixamos três poemas, ao acaso, de Regina Gouveia, o primeiro, uma memória da Guiné e das pessoas de quem ainda se lembrava; o segundo, talvez um grito de protesto pelas desigualdades de uma sociedade de consumo onde alguns têm tudo e outros não têm nada; o terceiro, dedicado ao cais, aquele muro que desde tempos imemoriais viu partir portugueses para a guerra e para a emigração. Todo o cais é uma saudade de pedra, na palavra de Fernando Pessoa.


Telejornal

Vejo o Telejornal no canal dois.
A apresentadora fala da BSE, de clonagem, do Kosovo
e, logo depois, de um acidente no Cais do Sodré e da instabilidade na Guiné.
E eu empreendo no tempo uma viagem...
O Braima, a Binta, o Adrião, onde andarão neste momento?
Conheci-os em Bafatá, há muito tempo, iam buscar o cume no fim da refeição.
Recordo os seus olhos vivos de crianças, pele negra, dentes alvos, sem igual,
os passos apressados quando o vento anunciava em breve um temporal.
Eu era aluna e eles mestres do crioulo de que mal guardo lembranças.
Das mulheres, recordo as suas vestes, fossem mulheres grandes ou bajudas
no tronco, eram em geral desnudas,
presos na cinta panos coloridos que, de compridos, chegavam quase ao chão.
Algumas eram de tal modo belas que pareciam extraídas de telas.
Recordo, servindo-me o café, o Infali com aquele seu olhar tão doce e triste,
talvez o ar mais triste que eu já vi. Será que o café ainda existe?
Recordo aquele condutor, o Mamadu, mostrando com orgulho o seu menino.
Que terá feito deles o destino?
Recordo os passeios na estrada do Gabu, os mangueiros, os troncos de poilão,
a mesquita, o mercado, a sensação de paz que tudo irradiava,
apesar do obus de Piche que atroava, apesar da maldição da guerra
cujo espectro por cima pairava.
Recordo ainda o cheiro e a cor da terra,
o Colufe e o Geba sinuosos onde canoas esguias deslizavam,
recordo macaquitos numerosos que entre os ramos das árvores saltavam
enquanto que lagartos, preguiçosos, ao sol, pelos caminhos se espraiavam
e uma miríade de insectos buliçosos ao nosso redor sempre volteavam.
Recordo o batuque daquele casamento.
Na foto ficou bem impresso o momento em que o dançarino fazia um mortal
numa fantástica expressão corporal.
Foi lá na Ponte Nova, naquela tabanca onde de azul se coloriam panos
que as mulheres usavam em volta da anca e que desciam quase até ao chão.
Tudo isto se passou há muitos anos.
A apresentadora fala agora em danos causados por uma longa estiagem
e mostra uma desértica paisagem.
Eu regresso da minha viagem e tento organizar o pensamento.
O telejornal está quase no final. Deve seguir-se a previsão do tempo.




Pai Natal

Pai Natal, acabo de perceber que não és imparcial
A alguns meninos deste tudo e a outros não deste nada
Será que perdeste a morada, não estava a tundra gelada,
ou estava a rena cansada?
No Natal que logo vem, pensa bem pois não pode ser assim.
Ou dás presentes a todos ou não os dás a ninguém. Nem a mim.


Regina Gouveia em Ciência para meninos em poemas pequeninos



Cais

Na janela, a cortina rendada.
Através dela, navios que demandam o cais,
outros que partem.
Lenços brancos acenam da amurada
outros respondem acenando de terra.
Entre uns e outros, oceano e guerra.
Navego no navio da memória
delida pelo tempo, esse cavalo alado.
Na janela, cada dia mais puída a cortina rendada.
Através dela já não vislumbro
o inexistente cais, outrora imaginado.

Do livro “Entre margens", editado em 2013


********************

E assim nos despedimos da nossa amiga Regina Gouveia.

Ao Fernando Gouveia, seus filhos, netos e demais família, deixamos o nosso mais profundo pesar.

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Nota do editor

Último post da série de 24 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26075: In Memoriam (515): Marco Paulo (1945-2024): "Nosso cabo, não, meu Alferes, sou o Marco Paulo" (.... nome artístico de João Simão da Silva, nascido em Mourão, ex-1º cabo escriturário, QG/CCFAG, Amura, Bissau, 1967/69)

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26094: Estórias do Zé Teixeira (65): Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará - O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (2) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem de 28 de Outubro de 2028, o nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos o relato da aventura do seu amigo Sáculo que ambicionava a qualquer custo vir fazer a sua vida em Portugal. Hoje publicamos a segunda e última parte


Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará
O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (2)



– Pois é! Talvez não soubesses que quando se caminha sem orientação, sobretudo no deserto, temos tendência a andar em círculo  
–  disse-lhe eu.

– Andar em círculo porquê? Nós seguimos em frente, sempre em frente 
– esclareceu o Sáculo.

– Só consegues andar em linha reta, quando te orientas pelo sol, ou pela lua. As pessoas, normalmente, têm uma perna mais comprida que a outra e por consequência o tamanho do seu passo, não é igual, ou seja, a perna mais comprida dá um passa mais largo, o que leva a pessoa a fazer um desvio sistemático nessa direção. Este andar em círculo, que pode ser maior ou menor, em função da diferença na altura da perna. Eu, por exemplo, tenho uma diferença de cerca de meio centímetro. Talvez o meu círculo seja grande, e também temos de considerar a possibilidade de termos uma perna mais forte que a outra, o que também pode afetar a direção, quando não temos referências, porquanto a perna mais forte tem tendência a ser mais rápida.

– Desconhecia esses fenómenos. O certo, é que, sem querer, estávamos de regresso ao Senegal. Talvez tenha sido a nossa salvação. A polícia de fronteira prendeu-nos de imediato. Ali ficámos dois dias, mas como não tínhamos nem dinheiro nem comida, éramos um problema para a polícia. Quando passou o primeiro camião, o comandante mandou-nos subir e ordenou ao motorista que nos levasse para Linguère e nós lá fomos.

E prosseguindo:

–  Só que o camião não ia para esta cidade e o motorista deixou-nos num cruzamento, a meio do caminho. Tentámos arranjar trabalho, mas fomos apanhados pela polícia que nos voltou a prender. Eram muitas bocas a pedir pão e a polícia não tinha dinheiro, nem soluções. Eu era o único que sabia falar francês e ia-me desenrascando. Ao fim de dois dias, por ordem da polícia, voltamos a subir para outro camião que passava, que nos levou até Dacar. Procurei o meu primo que era pescador, fomos à Embaixada da Guiné-Bissau regularizar a minha situação e fui para pescador com o meu primo.

– Regressado à tua terra acabou-se a aventura, e que grande aventura!

– Já tinha outro plano em mente. Eu continuava a sonhar com Lisboa. Se não podia ir por terra, tinha de ir por mar. Fiquei em Dacar e fui à pesca na canoa do meu primo, para ganhar algum dinheiro e para me habituar a andar de barco. Nos primeiros dias não pesquei nada. Passei o tempo a vomitar estendido no fundo da canoa. Com o tempo fui-me habituando e até cheguei a apanhar um susto. Valeu-me a forma como os pescadores estavam organizados para sua segurança, ou seja, cada canoa tinha quatro horas para andar no mar, e só podia ir para determinada área. Se ao fim de quatro horas não regressasse, os pescadores que estavam em terra iam à sua procura.

Continuando, diz o Sáculo:

– Eu fui pescar com dois amigos para uma área que já conhecia. Num momento, sem contar, a canoa virou-se e foi ao fundo. Conseguimos ficar agarrados a umas tábuas e ficamos a boiar. Aguentamos, uma hora ou mais, até vermos ao longe duas canoas que vinham em nosso socorro. Safamo-nos.... Eu tinha um tio em Lisboa que tu deves ter conhecido, mas já morreu. Era filho do Samba e estava na milícia no tempo da guerra. Soube que ele estava em Bissau, fui ao encontro dele e pedi para me trazer para Lisboa. Ele era embarcadiço num barco de carga, era o que eu precisava, mas ele esqueceu-se. Escrevi-lhe várias vezes para Lisboa, pedi à minha mãe para o chatear. Eu até já estava zangado com ele, quando recebo uma mensagem para ir falar com um sujeito que estava num cargueiro ao largo de Bissau. Escondi-me no cargueiro e vim parar a Tanger. Já estava perto de Lisboa. Depois foi fácil. E já lá vão trinta anos.

– Entraste em Portugal no ano de… deixa-me fazer as contas…

– Ano de 1994, quando cá cheguei. Ainda me lembro que estava muito frio e eu andei uns dias à procura da casa do meu tio. Depois fui para as obras e nunca mais parei.

– Bateste o recorde. Dez anos para chegar de Bissau a Lisboa. Foste um homem corajoso. Parabéns!

– Era um sonho que nasceu em mim, quando os militares vieram embora, em 1974. Agora é tempo de me reformar, mas não quero voltar para a Guiné. Gosto muito de Lisboa. Tenho cá a minha família, a mulher e os filhos, imãs e sobrinhos. Toda a gente está cá, está na Suíça, está na Alemanha… e sabes quem está nos Estados Unidos a trabalhar numa empresa de segurança privada? O Iero, o meu primo, que casou com a minha sobrinha, a Djuvae, filha da Auá, a minha irmã, tua amiga.

– O quê? O sacaninha do Iero está na América?

… … … ... ... ...

A conversa não ficou por aqui. Quis que eu e minha mulher, mais a Auá e a Djubae entrássemos para o seu carro, creio que um Fiat Punto, e fossemos dar uma volta por Lisboa. Foi tempo para eu e ele voltarmos à Guiné, aos meus tempos de enfermeiro militar e ele uma criança de seis anos que todos os dias me vinha dar os bons dias e ficava à espera de um naco de casqueiro.

A Auá teria uns vinte anos e estava casada com um soldado da milícia.

Nas minhas idas à Guiné reconheceu-me, chamou-me pelo nome, reavivamos bons momentos e reativamos a amizade. O Bemba, seu marido está na Guiné. Foi ferido em combate e conseguiu, muito mais tarde, com ajuda do seu antigo comandante, a cidadania portuguesa. Ela veio a Lisboa visitar a irmã e tratar a saúde.

Sempre que eu vou à Guiné, vou a casa deles comer cabrito. O Bemba já ca esteve e fui visitá-lo a Lisboa. Agora veio a Auá e fui almoçar a casa dela, um petisco à moda da Guiné.

Ela está de regresso à sua terra. O Sáculo fica por cá. Um dia vou trazê-lo a minha casa para fazermos umas contas. Quero saber quem se apossou da minha marmita com um saboroso naco de vitela assada na brasa, naquele dia 14 de novembro de 1968 em que fomos atacados à hora do almoço. Eu pousei a marmita para me proteger e fiquei sem almoço, eu e os meus colegas, que foram a correr defender as suas posições e afastar os intrusos que queriam almoçar connosco, o rancho melhorado ganho através de um tiro de G3 perdido na noite anterior que matou uma vaca do Régulo.

José Teixeira
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Nota do editor

Vd. post de 29 de Outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26091: Estórias do Zé Teixeira (64): Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará - O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (1) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26091: Estórias do Zé Teixeira (64): Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará - O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (1) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

1. Em mensagem de 28 de Outubro de 2028, o nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70) enviou-nos o relato da aventura do seu amigo Sáculo que ambicionava a qualquer custo vir fazer a sua vida em Portugal.


Da Guiné a Lisboa a pé pelo Saará
O sonho que durou vinte anos a concretizar-se (1)


Eram dois “putos reguilas”, o Sáculo e o Iero, que todas as manhãs, mal sentiam a minha chegada ao barraco da cozinha para “matar o bicho”, corriam alegremente ao meu encontro, e me saudavam de mão estendida e sorriso aberto: “ocurame casqueiro”! Era o mesmo que dizer, numa mistura linguista de dialeto étnico Fula e Português de quartel 

– Dá- me um bocadinho do teu pão!

Já passaram cinquenta e seis anos.

Teriam uns cinco, seis anos, quando nos despedimos, numa manhã de sol bem quente, no mês de fevereiro de 1969. Continua a bailar-me na mente essa manhã em que chorei de alegria e tristeza, enquanto recebia os abraços de despedida daquela gente, humilde, alegre, comunicativa e sobretudo sedenta de paz, e que me ensinou tanta coisa para a vida.

Continua no meu coração a imagem daquela mãe, cujo nome jaz debaixo do pó, que com o tempo sombreou a minha mente. Naquela manhã, da minha partida, depositou a criança nos meus braços, e com os olhos rasos de lágrimas disse num tom suave e firme: 

–  A tua mulher quer ir contigo!

Trouxera-me, uns tempos antes, a bebé, uma menina linda como o sol, ferida pelo paludismo que a minara em tão grande profundidade que a temperatura corporal rondava os 42º C. Já nem força tinha para gemer. Ao fim de dois dias de luta e as dores da incerteza, consegui voltar a ver o seu sorriso. O seu palrar de bebé feliz encheu de novo a casa de sua mãe, e eu tive de a receber como minha mulher. Tão pequenina e tão linda!

Pensava eu que a minha despedida seria para sempre, mas não foi.
Mampatá 2008 > A mãe da Maimuna, a minha bebé
Foto: © José Teixeira

Podia escrever sobre os acontecimentos, que pela vida fora, nos foram aproximando, mas vou apenas escrever sobre a aventura do Sáculo.

Era um dos muitos filhos do Régulo local. Ainda criança foi para a escola corânica. Segundo me disse, há dias, quando nos reencontrámos, passados cinquenta e seis anos. O pai enviava os filhos machos alternadamente para a escola portuguesa e para a escola corânica. A ele tocou-lhe a escola corânica. Com a morte do pai e pouco depois, a independência da Guiné, muita coisa mudou, e o Sáculo partiu à aventura para Bissau, sempre a alimentar o sonho que lhe enchia a alma – vir para Lisboa.

Dias duros e difíceis se seguiram, mas o sonho perseguia-o.

Estávamos em meados dos anos oitenta. Na sequência da mudança política que se operara na Guiné, com o golpe do Nino Vieira para afastar do poder os líderes do PAIGC de origem cabo-verdiana, a vida tornou-se ainda mais difícil. Era tempo de tentar a sua sorte. Era tempo de dar vida ao sonho que o perseguia há dez anos – vir para Lisboa à procura de uma vida melhor. Junta-se a um grupo de jovens quem como ele, alimentavam o mesmo sonho, sabe-se lá porquê.

Paga 2.500 USD a um engajador que lhe garantia a chegada por terra a Portugal, faz uma trouxa e parte à aventura.

Logo se apercebe que o cansaço, mais a fome, a sede e o calor iriam ser os grandes inimigos. O frio à noite também era insuportável, mas nada o fazia desanimar. Lisboa estava a dois passos, para quem tinha tanta vontade de lá chegar. Talvez desconhecesse que havia mais de seis mil quilómetros de terra para palmilhar, um mortífero deserto para atravessar, muitas matreirices dos engajadores para combater.

– Até à fronteira com o Senegal, foi fácil. Estava na minha terra. O grupo estava animado e cheio de coragem. Os pés voavam, tal era a ansiedade e a vontade de chegar ao fim da viagem. Quando entrei em Dakar no Senegal, olhei para trás e senti que não havia retorno.

Seguimos, até à fronteira com o Mali. Ao chegar à fronteira, o guia a quem tinha pagado 2.500 USD,  entregou-nos a outro guia e desapareceu. O novo guia exigiu mais 2.500 USD para nos acompanhar e indicar o melhor caminho. A primeira grande surpresa foi a traição do guia, que nos abandonou. Outras se seguiram, mas, uma coisa era certa, chegar a Lisboa não seria assim tão fácil como sonhara.

Talvez os engajadores, na sua ânsia de “ganhar dinheiro”,  me tivessem induzido em erro.

Até chegarmos à fronteira tudo nos parecera fácil. Conseguimos trabalho pelo caminho para arranjarmos dinheiro ou comida. Agora, sentíamo-nos inseguros pelo abandono do guia e só víamos areia à nossa frente. Era o deserto maliano, arenoso e seco, com um calor insuportável durante o dia, e um frio noturno de bradar aos céus, que tínhamos de atravessar. Os que tinham dinheiro continuaram em frente, os outros desejaram-nos boa viagem e voltaram para trás. Talvez se tenham perdido no caminho. Nunca mais os vi, e já lã vão cerca de quarenta anos.

O tempo passava a correr. Dia após dia, a andar sem descanso. Semanas terríveis, em que o cansaço físico que se apossou de mim. A sede atormentava-me, e a comida escasseava, mas a força anímica tudo superava.

Seguiram-se muitos dias de caminhada até à fronteira com a Argélia em pleno deserto do Saará.
Um aspecto do deserto do Saara
Foto com a devida vénia a BBC News Brasil

– Não entendo porque tiveste de atravessar o Mali e a Argélia se o caminho pela Mauritânia era mais direto 
– disse-lhe eu. –   Já fiz esse caminho duas vezes, por ser o mais curto. É um caminho seguro, em estrada com grandes retas. Já devia existir nesse tempo, com ligação entre a fronteira de Marrocos com a fronteira do Senegal. Nesse tempo o povo saarauí, liderado pela Frente Polisário estava em luta aberta com Marrocos pela sua independência do Saara Ocidental e talvez o percurso não fosse seguro...

– Não te sei responder. Eu estava a pisar terreno desconhecido. Para mim tudo era novo. O deserto, os oásis onde nos recolhíamos, as aldeias no meio do deserto, as cáfilas de camelos a “pastar”, tudo era novidade.

E o Sáculo prosseguiu a sua narrativa;

–  Chegados a um local desértico que o “passador” disse ser a fronteira argelina, apontou-nos a direção em que devíamos seguir, até encontrar uma cidade e desapareceu como por encanto. Ali ficamos cinco jovens com uma vontade danada de chegar a Portugal, perdidos no deserto, com poucos alimentos, alguma água e muita areia para pisar, sem um caminho, uma pista a seguir.
Fomos deixando pelo caminho tudo o que era empecilho, menos o garrafão de água que cada um tinha consigo e a parca comida ressequida. Seguimos na direção que nos fora indicada pelo bandido que nos traiu. Pensamos em voltar para trás, mas não sabíamos como encontrar o caminho de regresso. Era seguir em frente ou morrer. O que mais víamos eram ossos de pessoas, crânios, braços pernas… Eu pensava: 'Não me vai acontecer a mim o que aconteceu a esta gente. Eu vou seguir em frente!'... Mas quanto mais andávamos mais o desânimo se apoderava de nós.

E confessa o meu amigo:

–  Imagina a alegria que sentimos, quando ao longe surge uma bandeira no cimo de mastro, que nos fez apressarmos o passo. Não tínhamos forças para correr.

Quando lá cheguei fiquei abismado, estava na fronteira com o Senegal.

(Continua)

José Teixeira

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Nota do editor

Último post da série de 8 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25494: Estórias do Zé Teixeira (63): O “Diário” do José Cuidado da Silva (Conclusão) (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enfermeiro da CCAÇ 2381)

sábado, 12 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26039: Agenda cultural (861): Convite para o lançamento do livro "CRÓNICAS DE PAZ E DE GUERRA, de Joaquim Costa, a ter lugar no próximo dia 9 de Novembro, pelas 16h00, na Bibliotaca Municipal de Gondomar, Av. 25 de Abril. Apresentação do livro a cargo do Dr. Manuel Maria

C O N V I T E



Este livro não é mais do que pequenas histórias (ou estórias), de uma viagem que se inicia nos anos cinquenta e termina em 2015. Não é o fim de nada, pois aqui se inicia uma nova caminhada, já carregada de estórias para um novo livro.

Reduzido à sua dimensão, pedindo desculpa aos leitores pela presunção, nestas 221 páginas se conta a história de Portugal dos últimos 70 anos, particularmente a da guerra colonial.

Citando Mário Beja Santos:

“… um encanto de memórias avulsas, mas aonde a questão central foi o que se viveu e como se fez homem naqueles pontos do Tombali, no aceso de uma temível guerra de guerrilhas, onde aquele jovem vindo de uma aldeia entre o Minho e o Douro aprendeu que há uma camaradagem que ficará para toda a vida.”

A sua apresentação pública mais não é do que o pretexto para reunir velhas e novas amizades.

A todos convoco para esta jornada de afetos.

Conto convosco.
Joaquim Costa.

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Nota do editor

Último post da série de 22 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25968: Agenda cultural (860): Convite para o lançamento do livro "Poemas de Han San", organizado e traduzido por António Graça de Abreu, dia 26 de Setembro de 2024, pelas 18h30, no Auditório CCCM, Rua Guerra Junqueira, 30 - Lisboa

sábado, 5 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26013: Em busca de... (328): Rastrear o percurso do meu avô Joaquim Martins Beirão (1931 - † 1991), 1.º Sargento, enquanto militar na guerra do Ultramar (Osvaldo Beirão Germano)

1. Mensagem de Osvaldo Beirão Germano, neto do 1.º Sargento Inf Joaquim Martins Beirão, com data de 1 de Outubro de 2024:

Boa tarde,
Eu sou neto de Joaquim Martins Beirão, 1.º Sargento de Infantaria, e queria saber se têm algo sobre a Companhia 115 - Angola, 1961/1963; Companhia de Caçadores 1546 / Batalhão de Caçadores 1887 - Guiné, 1967/1969; Pel Mort 81 2247 - Angola, 1970/1972 e 1.ª Companhia de Caçadores / Batalhão de Caçadores 4813/73 - Moçambique, 1974/1975.

Estou a tentar rastrear os passos do meu falecido avô quando serviu no Ultramar, infelizmente ele faleceu eu ainda tinha 2 anos de idade e não tive a oportunidade de o conhecer melhor, e esta foi a maneira que arranjei de o conhecer.

O pouco que sei é que ele gostava de futebol, ele até jogou enquanto militar, mas não sei onde, não sei se é possível identificar pela foto abaixo pelo uniforme que tem vestido.

Sei que era uma pessoa que gostava muito de ler, era uma pessoa simples, de estatura pequena de aproximadamente 1.57m de altura e é o pouco que sei.


1.º Sarg Inf Joaquim Martins Beirão
Portalegre, 14 de Março de 1931 - † Mafra, 31 de Dezembro de 1991

********************
2. Comentário do editor:

Caro Osvaldo Germano,
Estão publicados os dados militares do seu avô.

Como somos um blogue especialmente dedicado à Guiné e aos seus antigos combatentes, dos outros Teatros de Operações nada lhe podemos dizer.

Quanto à Guiné, proponho este marcador da CCAÇ 1546 (e também o marcador BCAÇ 1887) que o levará a acontecimentos e estórias também vividos pelo seu avô em Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta. O nosso melhor contribuidor foi o ex-alferes miliciano Domingos Gonçalves (é também um marcador) da 1546, de quem não temos notícias há tempos, que se lembrará certamento do Sargento Beirão. Ele é também o autor de uma série intitulada Memórias da CCAÇ 1546. Não falta aqui matéria para explorar.

A todo o tempo, e sempre que surjam novidades, entraremos em contacto consigo.

Em relação a Angola e a Moçambique, esperamos que consiga bons resultados para refazer a maior parte do trajecto militar de seu avô.

Ficamos ao seu dispor.
Carlos Vinhal

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Nota do editor

Último post da série de 15 de agosto de 2024 > Guiné 61/74 - P25845: Em busca de... (327): Esclarecimentos sobre a morte do meu amigo Ilídio Fidalgo Rodrigues de Jesus, Soldado Básico da CCAÇ 2382 (Juvenal José Danado, ex-Fur Mil Sap Inf)

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25987: O nosso álbum de memórias de... Taviráfrica - Parte I: quase todos nós, "tavirenses", temos uma relação de amor-ódio em relação àquela terra e àquele quartel...


Foto nº 1 > Tavira > CISMI > Julho de 1968 > A chegada ao quartel da Atalaia dos novos instruendos do 1º Ciclo do CSM, vindos de todo o país, num comboio ronceiro. Fila do pessoal para receber fardamento. Foto do Fernando Hipólito, gentilmente cedida ao César Dias e ao nosso blogue.

Esta cena podia passar-se também à porta do RI 5, nas Caldas da Rainha. Esta rapaziada, chamada pela Pátria para cumprir o serviço militar obrigatório (em tempo de guerra...), em finais da década de 1960 já tem um outro "look", a começar pelo vestuário... Tem outras habilitações literárias, outra  postura...

Presume-se que as belas cabeleiras, à moda dos "Beatles", já tinham ficado ingloriamente no chão do barbearia lá da terra ou, "in extremis",  de Tavira... Muitos fotam tosquiados à máquina zero, suprema humilhação para um jovem da época!... Não, já não é a mesma malta que parte, de caqui amarelo e mauser, para defender as Índias & as Angolas, uns anos antes ... O velho Portugal onde tínhamos nascido, estava a mudar, lenta mas inexoravelmente. E a nova geração, a nossa geração, nascida no pós-II Guerra Mundial,  já não estava disposta a suportar os mesmos sacrifícios dos seus pais e irmãos mais velhos.


Foto (e legenda). © Fernando Hipólito (2014). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem complementar: logue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Foto nº 2 > Tavira > Quartel da Atalaia > CISMI > Parada > Outubro de 1968 >"Os 'galardoados' com a especialidade de atirador de infantaria que tinham acabado a recruta integrados no 6º Pelotão da 3ª Companhia" > Da esquerda para a direita, de pé:

(i) Estrela (1), Fonseca (2), Pereira (3), João (4), Torres (5), Chichorro (6) e Joaquim Fernandes (7) (futuro fur mil, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, 1969/71);

(ii) Santos (1a), Chora (2a), Salas (3a), Paulo (4a), Loureiro (5a), Saramago (6a)

Foto (e legenda): © Eduardo Francisco Estrela (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Foto nº 3 > Bilhete de identidade militar do César Vieira Dias, sold do CSM nº 197356/68, emitido em 16/7/1968. Ao alto do lado esquerdo,  há um nº, o 847,  escrito a lápis, que deveria  corresponder ao  número interno do CISMI, atribuído ao César Dias na recruta...

Foto (e legenda): © César Dias (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Foto nº 4 > Tavira >  CISMI >  1972 >  António Alves da Cruz,  em farda nº 3, junto às salinas, tendo o antigo Convento das Berrnardas ao fundo....


Foto nº 5 > Tavira > CISMI >  4ª Companhia >  3º Pelotão >  16/6/1972 >  Salinas... O antigo Convento das Bernardas ao fundo... O António Alves Cruz, atirador de infantaria, em farda nº 2


Foto nº 6 > Tavira > CISMI > 4ª Companhia > 3º Pelotão > 16/6/1972 > Salinas... O antigo Convento das Bernardas ao fundo... Um pelotão com 38 elementos...


Fotos (e legendas): © António Alves da Cruz  (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Foto nº 7 > Tavira > CISMI > 1968 > O César Dias, natural de Torres Novas (á esquerda) e o António Branquinho, filho de Évora (à direita)... Ambos foram parar à Guiné... O Branquinho à CCAÇ 2590 (mais tarde, em 18/1/1970, CCAÇ 12) (Contuboel e Bambadinca, 1969/71).

Foto: © César Dias (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 8 > Tavira >  CISMI > 1968 > 3ª companhia (instrução de especialiade: Atirador de infantaria) > O Branquinho é o 3º da primeira fila a contar da direita... O Levezinho é o 3º da 2ª segunda, a contar também da direita. Não consigo identificar o Fernando Hipólito.



Foto nº 8A > Tavira >  CISMI> 1968 > 3ª companhia (instrução de especialidade: Atirador de infantaria) > Lado esquerdo do grupo


Foto nº 8B >Tavira > CISMI> 1968 > 3ª companhia (instrução de especialidade: Atirador de infantaria) > Lado direito do grupo > O Branquinho é o 3º da primeira fila a contar da direita... O Levezinho é o 3º da segunda fila, a contar também da direita. "Na foto 8B quase identifico todos, foram meus camaradas na recruta no 7º. Começando á direita o aspirante Coelho que tinha sido nosso também na recruta, depois um desconhecido, depois o Levezinho, depois o Hipólito e mais um desconhecido. Em baixo:à direita o Simões Santos (já falecido), depois o Freitas, depois o Branquinho, e o Quarteira. Estes que identifiquei foram do 7º pelotão da 3a companhia incluindo o Aspirante Coelho que conseguiu granjear a simpatia de todos." (César Dias).

Fotos: © Fernando Hipólito (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 9 > Tavira > CISMI > 1968 > Pormenor do jantar do dia  do juramento de bandeira. (1)... O Tony Levezinho, visto de perfil, tendo em frente (lado direito da foto, a olhar para a máquina) o César Dias, que por sua vez tem à sua direita o Fernando Hipólito... Os três tiveram destinos diferentes: o Hipólito foi para Angola, o Levezinho e o Dias para a Guiné, um para Bambadinca e outro para Mansoa


Foto nº 9A >Tavira > CISMI > 1968 > Pormenor do jantar do dia  do juramento de bandeira... (2)
 


Foto nº 10 >Tavira > CISMI > 1968 > 3º Turno > Desfile do juramento de bandeira...  3ª Co,mpanhia (identificou o Humberto Reis)



Foto nº 10A >Tavira > CISMI > 1968 > Desfile do juramento de bandeira... "2º Pelotão da 3ª Companhia do 3º turno de 1968.Eu estou na 3ª fila, em 1º plano, com óculos escuros que usava desde 1965. Alguém consegue identificar mais algum elemento? Agradeço a ajuda" (Comentário de Humberto Reis)


Foto nº 10B >Tavira > CISMI > 1968 > Desfile do juramento de bandeira > "Humberto Reis, deves estar a fazer confusão, na foto nº 10 assinalado a amarelo é o Filipe pois o pelotão que está a desfilar é o 7º, ele também usava óculos." (César Dias)

Fotos (e legendas): © César Dias (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 11> Tavira > CISMI > Quartel da Atalaia > 1968 >  "Há 49 anos dava entrada no CISMI - 4.ª companhia. Deixo de lado as coisas menos boas para olhar com ternura o tempo de juventude. Foto: regresso da Semana de Campo. À excepção do cabo miliciano (...) todos os recrutas são naturais de S. Miguel - Açores. 

Da esquerda para a direita: Carlos Alberto Pereira Rangel; José Luís Vasconcelos Botelho; cabo miliciano; Domingues e eu, Carlos Cordeiro [saudoso membro da nossa Tabanca Grande, 1946-2018; fez a sua comissão em Angola, como fur mil at inmf, no Centro de Instrução de Comandos, 1969/71 ].

Fonte: Facebook > Grupo dos Antigos Militares do CIQ-CISMI, Tavira e QG Évora > Carlos Cordeiro > 17 de janeiro de 2017 (com a devida vénia..:)






Foto nº 12 > Guiné > Zona Leste > Setor L1 > CCAÇ 12 (1969/71> c. 1970 > 2º Grupo de Combate > Estrada Bambadinca-Xime > Destacamento da Ponte do Rio Udunduma > Da esquerdapara a direita: oTony (Levezinho) e o Humberto (Reis) sentados na "manjedoura"... Era ali, protegidos da canícula, por uma chapa de zinco, à volta de uma tosca mesa de madeira, entre duas árvores, com vista sobre o espelho de água do rio Udunduma, afluente do Geba..., era ali que tomavámos em conjunto as nossas refeições, escrevíamos as nossas cartas e aerogramas, jogávamos à lerpa, bebíamos um copo, matávamos o tédio e os mosquitos... Já ninguém se lembrava que tudo começara, para os "infantes",  em Tavira ou Caldas da Rainha..

Na imagem, o Tony (Levezinho), à esquerda, segurando uma granada de LGFog de 3.7. À direita, o Humberto Reis, o nosso "ranger"... e fotógrafo. O 2º Gr Comb ficou, cedo, entregue aos dois furriéis, Levezinho e Reis... O alf mil António Carlão, oriundo do CSM, foi destacado... para a equipa de reordenamento de Nhabijões ( a gigantesca tabanca, ou aglomerado de tabancas, de maioria balanta, onde a rapaziada do PAIGC se dava ao luxo de entrar e sair quando lhe apetecia...).

Foto: © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]-



1. Pediu-me o Humberto Reis algumas fotos de Tavira, e nomeadamente do CISMI, onde ele fez recruta (a especialidade foi tirada em Lamego). O meu vizinho de Alfragide e antigo camarada da CCAÇ 2590 / CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71), e colaborador permanente do nosso blogue (mais: um dos históricos do nosso blogue), passa agora uma boa parte do ano no Algarve. E há dias calhou passar por Tavira e vieram-lhe... as "saudades".


Fiz-lhe uma primeira seleção de fotos (e de postes) sobre Tavira, com destaque para o CISMI (Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria) que funcionava no Quartel de Atalaia. (O CISMI foi criado em 1939 e extinto em 1989.)

Ninguém sabe ao certo quanto sargentos milicianos formou aquele centro de instrução durante a guerra do ultramar / guerra colonial. Muitos e muitos milhares, a maior parte atiradores de infantaria.  Muitos de nós passámos por lá. E quase todos temos uma relação de amor-ódio em relação àquela terra e àquele quartel.

Como em tudo na nossa vida, houve coisas boas e más...Cada um de nós fará o balanço, o deve e o haver... A verdade é que alguns de nós já voltaram lá, em "romagem de saudade", ao "local do crime"... Masoquistas ? Nem por isso,  a Taviráfrica também foi uma aventura... (Por analogia com a "Máfrica", Mafra, EPI, a grande fábrica de oficiais milicianos de infantaria, chamo Taviráfrica a Tavira...).

Para o Humberto (e os demais leitores) fizemos uma primeira seleção dos inúmeros postes que temos no blogue sobre Tavira (n=77) e o CISMI (n=58)...  

Temos muitos "tavirenses" na Tabanca Grande, o quer dizer que Tavira (ou a Taviráfrica) era uma boa porta de entrada para a Guiné.... O nosso convite para revisitar Tavira, o CISMI, o quartel da Atalaia, a carreira de tiro, e os arredores,  é também uma forma de avivar memórias, coisa que só faz bem aos nossos neurónios. 

Todos os comentários serão bem vindos, Será uma pena a malta levar para o outro mundo as lembranças desse tempo e lugar...


Lembranças de Taviráfica, do CISMI e do quartel da Atalaia  -  
Parte I


Listagem de postes: data, númeiro, título, autor(es), link

15 de julho de 2024 > Guiné 61/74 - P25746: (De)Caras (301): Quem seria o instruendo nº 821, do 3º turno de 1968, 3ª Companhia de Instrução, Centro de Instrução de Sargentos Milicianos (CISMI), Tavira ? Pergunta ao César Dias, que era o nº 847/3ª, desse turno (Eduardo Estrela, ex-fur mil, CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2024/07/guine-6174-p25746-decaras-301-quem.html


28 de agosto de 2023 > Guiné 61/74 - P24595: Álbum fotográfico do António Alves da Cruz, ex-fur mil at inf, 1ª C/BCAÇ 4513/72 (Buba, 1973/74) (1): Das salinas de Tavira ao CTIG


https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2023/08/guine-6174-p24595-album-fotografico-do.html

27 de abril de 2021 > Guiné 63/74 – P22145: Estórias avulsas (105): Pequeno almoço às 2 horas da manhã (Joaquim Ascenção, ex-Fur Mil Arm Pes Inf, CCAÇ 3460, Cacheu, 1971/73)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2021/04/guine-6374-p22145-estorias-avulsas-105.html

31 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21719: (Ex)citações (382): Tavira, CISMI, por quem nenhum de nós morreu de amores... (João Candeias da Silva / Carlos Silva / Luís Graça)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2020/12/guine-6174-p21719-excitacoes-382-tavira.html


28 de dezembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21702: (De)Caras (167): o ten inf Esteves Pinto (1934-2020), que foi instrutor de alguns de nós no CISMI, em Tavira, e que morreu no passado dia 18, com o posto de cor inf ref



14 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20732: Memória dos lugares (402): Tavira, o CISMI, e Cacela A Velha... (Eduardo Estrela, ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima, 1969/71)


13 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20728: Em busca de... (302): instruendos do CISMI, Tavira, a tirar a especialidade de atiradores de infantaria, 6º Pelotão / 3ª Companhia, outubro de 1968: "Eu, o Torres, o Joaquim Fernandes, o Loureiro e o Saramago fomos todos para o CTIG...mas dos outros gostava de saber do paradeiro"... (Eduardo Francisco Estrela, ex-fur mil at inf, CCAÇ 14, Cuntima, 1969/71; vive em Cacela)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2020/03/guine-6174-p20724-em-busca-de-302.html

2 de maio de 2019 > Guiné 61/74 - P19736: (Ex)citações (352): In illo tempore, o Alferes José Cravidão, no CISMI de Tavira (Manuel Luís Lomba, ex-Fur Mil da CCAV 703 / BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2019/05/guine-6374-p19736-excitacoes-352-in.html

1 de julho de 2017 > Guiné 61/74 - P17532: O nosso livro de visitas (191): Américo Santos, ex-Fur Mil TRMS, retratado, enquanto recruta do CSM, em foto publicada no nosso Blogue (Américo Santos, Fur Mil TRMS / César Dias, Fur Mil Sap Inf)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2017/07/guine-6174-p17532-o-nosso-livro-de.html

25 de junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13330: In Memoriam (191): António Manuel Martins Branquinho, natural de Évora (1947-2013), ex-fur mil at inf, CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71)... Para que a sua memória não fique na "vala comum do esquecimento"


3 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12673: Manuscrito(s) (Luís Graça) (18): Gostei de voltar a Tavira (Parte I): A estação da CP

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2014/02/guine-6374-p12673-manuscritos-luis.html


24 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12770: CISMI - Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria, Tavira, 1968: Guia do Instruendo (documento, de 21 pp., inumeradas, recolhido por Fernando Hipólito e digitalizado por César Dias) (5) : Quinta e última parte (pp. 19-21): O jornal "Atalaia" , a rádio "CISMI"... e as 29 capelas e igrejas de Tavira

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2014/02/guine-6374-p12770-cismi-centro-de.html


5 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12678: Manuscrito(s) (Luís Graça) (19): Gostei de voltar a Tavira (Parte II): O quartel da Atalaia (ex-CISMI -Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria)


https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2014/02/guine-6374-p12678-manuscritos-luis.html


5 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12678: Manuscrito(s) (Luís Graça) (19): Gostei de voltar a Tavira (Parte II): O quartel da Atalaia (ex-CISMI -Centro de Instrução de Sargentos Milicianos de Infantaria)

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2014/02/guine-6374-p12698-manuscritos-luis.html



Tavira > Quartel da Atalaia > Antigo CISMI, hoje RI 1 > 1 de fevereiro de 2014 > Belo exemplar da nossa arquitetura militar, fica situado na Rua Isidoro Pais. Imóvel classificado como de interesse público, segundo o excelente síio da Câmara Municipald e Tavira

 O Quartel da Atalaia, um dos mais antigos do país, foi começado a construir em 1795, sob o reinado de D. Maria I. Mas a sua construção foi entretanto interrompia e só retomada em 1856 devido á conjuntura nacional desfavorável (ida da corte para o Brasil, invasões napoleónicas, revolução liberal de 1820, guerra civuil de 1828-1834, etc.). 

"Com a extinção das Ordens Religiosas, é entregue ao exército o antigo Convento de Nossa Senhora da Graça, que alguns de nós também conheceram. O Quartel da Atalaia, ainda por concluir, serviu ainda de hospital das vítimas de peste de cólera que se abateu sobre a cidade (e grande parte do país, a começar pela capital) em 1833, em plena guerra civil. 

Em boa verdade o edifício só ficará concluído  nos primeiros anos do século XX, sendo  então para lá transferida a guarnição de Tavira. Sofreu alguns alterações funcionais em 1950, 1954 e 1970.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2014). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Alguns comentários 

(i) Eduardo Estrela:

Sobre Tavira, e o sítio onde fizemos os fogos, no último trimestre de 1968, escreveu o Eduardo Estrela o seguinte comentário ao poste P20732:

(...) "Bom dia Luís! É uma alegria enorme ouvir falar da nossa terra com tanto carinho e amor. Obrigado pelas tuas palavras elogiosas. Façamos votos que haja coragem de preservar a autenticidade desta parte do Algarve denominada Sotavento.

Seguindo o percurso da EN 125, no sentido Tavira-Vila Real Sto. António, passamos Conceição de Tavira e, cerca de 3 km mais á frente, há uma estrada à direita que vai ter ao sítio do Lacem. Foi neste sítio, local de confluência dos concelhos de Tavira e Vila Real, que fizemos os fogos reais, numa arriba sobranceira á ria e ao mar. Dista de Cacela Velha em linha recta, mais ou menos 1 km.

O fabuloso tasco da Fábrica era do Costa, onde se comiam todas as iguarias da Ria, com a particularidade de saberem divinalmente. O Costa era compadre do meu sogro, pois era padrinho de baptismo duma das minhas cunhadas. 'O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande.' (...)

14 de março de 2020 às 13:13


(ii) Manuel Carvalho:

Também andei por Tavira no verão de 67,  3º turno  de Armas Pesadas de Infantaria. Tenho algumas memórias do dia em que fizemos fogo para a ilha de Tavira a partir da costa.O comandante de companhia  era o capitão Madeira, natural de Cabo Verde,  e de Pelotão era o alferes Chumbinho,  exigente mas que nos tratava, com respeito, por "senhor instruendo".

Quando íamos iniciar o fogo de canhão sem recuo 10,6 vimos que estavam na zona dois barcos pequenos com um pescador cada. o Chumbinho disse que resolvia o problema com uma canhoada e resolveu embora um oficial superior que lá estava tivesse dito "não me arranje problemas",

Ainda hoje me rio com a cena dos dois homens a remar cada um para seu lado e nem a recolha do material fizeram. 

Na ilha havia um silvado que foi incendiado com uma granada de fósforo e depois apagado com uma normal que atirou areia para cima do lume.Alguém pôs um burnal velho atrás do canhão para vermos o efeito e vimos que não é lugar para se estar.

Também fui dos que escolheram Armas Pesadas a pensar que ficaria mais resguardado mas tinha uma secção distribuída como qualquer Atirador e muitas vezes o Pelotão todo, é a vida.


(iii) Henrique Cerqueira

Tavira... Já aqui comentei que foi a minha pior experiència de vida militar.

Conto assim um pequeno episódio logo na minha receção a Tavira.

Viemos em 1971 os recentes recrutas das Caldas da Rainha para Tavira tirar a especialidade. Como chegamos a Tavira por volta das 21:00 horas já não havia jantar para a malta e então muito "convenientemente" para o exército foi-nos excecionalmente permitido licença de sair até á meia-noite.

Lá formamos uns grupinhos e fomos aos cafés tentar aconchegar o estômago. Num dos cafés alguém da malta tinha no saco uma lata de salsichas e toca a perguntar ao dono do café se nos podia aquecer a lata e nos fornecer pão para acompanhar.

O dono (que por acaso era um Sargento como em quase todo o comércio da altura estava nas mãos de sargentos ou oficiais do Q.P.)então ele logo disse muito solicitamente que sim senhor e que entendia a nossa causa (falta de dinheiro).

Lá comemos as salsichas e torradas de pão de forma e uns sumitos. No final o tal "simpático dono" debita-nos doze cachorros quentes. Nós reclamamos... e a seguir fomos passar o resto da noite á prisão do quartel e fomos obrigados a pagar os tais cachorros.

O Sargento até era do quartel e por mero acaso também tinha uma tasca quase em frente ao quartel que mais tarde vim a descobrir que alguma comida do refeitório era estrategicamente desviada para os petiscos que lá vendiam aos instruendos ...logo se vê.

Enfim naquela altura a maioria dos civis comerciantes ou não viviam as custas dos instruendos e não tinha pejo nenhum em explorar a malta. Em alguns casos até os pais com filhas casadoiras as enfiavam pelos olhos dentro da malta . Não sei se lembram dos "Casamentos de Parada" tão famosos em Tavira.

Pra juntar á "Festa" a grande maioria dos oficiais e sargentos de instrução em Tavira eram desumanos e desrespeitadores (isto para ser brando nos adjetivos ). Creio que hoje em dia será diferente, mas para mim Tavira nunca mais em termos pessoais.

4 de fevereiro de 2014 às 12:29


(iv) José Marcelino Martins


Saudades de Tavira e do Rio Séqua.

4 de fevereiro de 2014 às 14:41


(v) Luís Graça

Henrique: Obrigado pelo teu comentário... Dois meses e meio, em Tavira, na tropa, em finais de 1968, não dão para viver e guardar na memória grandes peripécias, paixões, amizades, acontecimentos galvanizantes, figuras marcantes, lugares...

A instrução era puxada, e o corpinho ressentia-se...

Lembro-me do meu comandante, o tenente Esteves, um típico militar da época.. lembro-me de ouvir falar do Robles e do Trotil, mas não sei se ainda lá estavam nessa altura...

Lembro-me isso, sim, de um filho da puta de um alferes instrutor, dos vellhinhos, algarvio, que nos humilhava, obrigando-nos a chafurdar na merda da feira do gado, enquanto namorava, à janela,, uma gaja da terra...

Lembro-me do idiota do comandante do RI1 (coronel do tempo da guerra do Solnado...) que nos proibiu a inauguração de uma exposição (documental) sobre a a II Guerra Mundial com o argumento, tonto, de que para guerra já bastava a nossa, lá no ultramar...

Lembro-me da velha e anafada prostituta, andaluza, de olho azul, que morava perto do quartel da Atalaia, e que tirava os três aos infantes...

Lembro-me da amázia (?) de um sorja ou de um tenente qualquer que nos acompanhava nos exercícios de campo, vendendo-nos sandochas e bebibas... Acho que tinha uma carroça... 

Tavira era triste como era triste o meu/nosso país em 1968... Não sei se lá chorei, mas devo ter rangido os dentes, algumas vezes. De raiva...

Dos "casamentos na parada" ouvi falar, mas não sei se era lenda... Nunca assisti a nenhum, ou então nunca liguei... A verdade é que aquelas miúdas, de sangue fenício, romano e bérbere, eram verdadeiros "lança-chamas"...

Concordo com o teu juízo: os nossos instrutores, na tropa, na época, estavam longe de ser as melhores pessoas do mundo... Acho que merecíamos muito mais e melhor, aqueles de nós a quem calhou, na rifa, a fava da Guiné... Alguns eram mesmo uns pobres diabos, sádicos, prepotentes, mesquinhos, fanfarrões, boçais, incultos... que nem para soldados básicos eu os queria na Guiné...

4 de fevereiro de 2014 às 21:44

(vi) Henrique Cerqueira


Camarada Luís Graça: retratas na perfeição tudo aquilo que se passava na altura. E olha que não me queixo da dureza da verdadeira (?) instrução, mas tão somente de pessoas e te digo mais que houve mais cenas de desumanidade praticadas por instrutores nossos.

Uma das muitas que me aconteceu foi por exemplo em plena serra do Caldeirão eu estar com tanta fome que de noite arrisquei uma sortida junto da cozinha de campanha e apanhei uma terrina com patas de galinha e pescoços (penso que aí no sul lhe chamam de pipis?) que eram para as petiscadas dos tipos e vai daí comi aquilo tudo mesmo cru .

Já para não voltar a falar de humilhações praticadas por oficiais milicianos e sargentos durante essas noites de semana de campo. Ainda hoje com 64 anos e bem vacinado contra comportamentos erróneos eu me arrepio todo e ao ler o teu comentário eu me emocionei.

Infelizmente eu associo Tavira as esses comportamentos selváticos que na altura se praticavam em alguns dos quarteis que nos deveriam transformar em Homens preparados para defender o país. Mas não o fizeram e nada ,absolutamente nada me ensinaram que pudesse aproveitar para a vida militar. Ou seja talvez me tenham apurado muito mais o meu instinto de sobrevivência ,daí eu já ter escrito mais que uma vês que na Guiné eu tudo fiz para "viver e sobreviver ".

Quem quiser que entenda como melhor achar. Luís, desculpa lá mas isto hoje deu mesmo para o desabafo. (...)

4 de fevereiro de 2014 às 22:06


PS - Em relação aos casamentos na parada eu penso que era no sentido figurado. Mas na verdade a malta era obrigado a casar por ordem militar e em Tavira quando os paizinhos se iam queixar que as suas "donzelas" tinham sido "desonradas" por este ou aquele instruendo. Aconteceu pelo menos com dois camaradas meus. Daí se dava o nome de "Casamento na parada".

Agora um aparte. As miúdas Algarvias da altura até que eram tentadoras, lá isso eram .

4 de fevereiro de 2014 às 22:15

(vii) César Dias:

Luis, também eu estive 6 meses em Tavira, recruta na 3ª Companhia e na especialidade de Sapador na 2ª Companhia, e pelos vistos estivemos no mesmo turno, com o tal tenente Esteves do qual me recordo como se divertia ao anunciar á sexta feira os cortes nos fins de semana "o militar é a parte válida do povo e como tal não há fim de semana para ninguém". Eu penso que ficámos retidos algumas vezes porque foi nessa altura que Salazar caiu da cadeira. Sobre esse Alferes, lembro-me que era Algarvio e também dava instrução de provas fisicas ao meu pelotão, deves-te lembrar do meu pelotão, pois andavam todos com um estropo de corda ao ombro, fazia parte da farda. Tudo o que referes avivou-me a memória já muito fraca, mas foi a parte de Tavira que conheci. (...)

4 de fevereiro de 2014 às 23:58


(viii) José Manuel Lopes:

Estive em Tavira, 3 meses. Recordo os bons e maus momentos que lá passei, o alferes Luz, algarvio, que nos deu cabo do coiro e do juizo.

Recordo que estive 3 meses sem ver o meu Douro, meus pais e irmãos, no principio com a desculpa que a Régua era muito longe, e quando o comboio lá chegasse estava na hora de apanhar o de regresso.(ainda havia comboios), depois porque aprendi a gostar do Algarve, das sua praias, da agua quente daquele mar, das lindas meninas queimadas pelo sol e até porque melhorei muito o meu ingles aprendido no liceu. Foi bom e há...!? ainda não tinha 20 anos!!!


segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25924: Humor de caserna (73). "Trombas do Lopes" (Jorge Cabral, 1944-2021)

 


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Setor L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > Pel Caç Nat 63 (1969/71) > "Cinco séculos de história vos contemplam!", terá proclamado o "alfero Cabral", perante o anónimo  (e quiçá estupefacto) fotógrafo que tirou esta fabulosa "chapa"...  Em tronco, nu, o "alfero Cabral", é o segundo a contar da esquerda para a direita, na segunda fila... De pé, e sem cachimbo... Comandante de mais insólita subunidade do exército português, foi também "menino da luz", isto é, aluno do Colégio Militar... Não por isso,. mas por mérito próprio,  teve direito a um louvor dado pelo  último cmdt do BART 2917, o ten-cor inf João Polidoro Monteiro.

A foto chegou "clandestinamente" à metrópole, garantiu-me ele. Não queria que ninguém do ilustre clá dos Cabrais a visse... Era irreverência a mais... Hoje faz parte do escasso mas precioso álbum  do Jorge Cabral, ex-brilhante advogado e  melhor criminalista, reformado, depois que o senhorio lhe aumentou a renda  do escritório  de 400 para 6 mil euros... É uma das milhares de vítimas da "gentrificação" de Lisboa... O país, depois de perder o Império, está em vias de perder a cabeça, isto é, a metrópole... O Jorge perdeu o escritório e deixou de lutar contra a doença que o minava lentamente.  Morreu aos 77 anos, em 2022. Era ali, naquele cantinho secreto, algures nas avenidas novas, que ele escrevia as suas famosas "estórias cabralianas" (cerca de uma centena, de que só metade saiu em livro, mas todas publicadas no nosso blogue).


Foto:  ©: Jorge Cabral  (2013). Todos os direitos reservados.[Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné ]


 
Capa do livro Jorge Cabral, ""Estórias Cabralianas", vol. I, Lisboa: Ed José Almendra, 2020, 144 pp.  Tinha um II volume, praticamente pronto para ser publicado. A morte surpreendeu-o ao km 77 da picada da vida.

Foi assim que, num belo dia de dezembro de 2005,  o "alfero Cabral" se apresentou à Tabanca Grande, à “tertúlia” criada à volta do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, nestes termos singelos:

“Através do blogue, recordo. E sinto. Vejo os rostos dos camaradas, oiço os sorrisos das crianças, e até, calcula, consigo admirar de novo os belos seios das bajudas. Peço permissão para pertencer à Tertúlia,, oferecendo o ‘pícaro’ de alguns episódios que vivi.”

E dele e das "estórias cabralianas", também escrevi, no prefácio a este volume:

(...) "O 'alfero Cabral' nunca acentua o lado do 'bestiário da guerra' que há no 'Homo Sapiens Sapiens', mas sim o da sua humaníssima, frágil, quase tocante, condição de primata, de 'primus inter pares' na ordem zoológica do mundo... O único animal que, afinal, consegue esta dupla proeza: (i) ser capaz de rir-se de si próprio; e (ii) e mostrar, pelo outro, compaixão (no seu sentido etimológico 'cum' + 'passio': sofrimento comum, comunidade de sentimentos, partilha da dor… e prazer)." (...)



1. E
m matérias como as "doenças sexualmente transmissíveis" (ou, como diria o nosso grande médico do séc. XVIII, Sanches Ribeiro, de Penamacor, "males de amores"), temos aqui, na Tabanca Grande, alguns catedráticos, do José Ferreira (*) ao "alfero Cabral"... São peritos em falar de "esquentamentos" (sic), com elegância, elevação de espírito, competência, devoção,  imaginação, didatismo, profissionalismo e,  sobretudo, com muito fino humor, que é coisa que às vezes nos faz falta... muita falta. Estamos a falar, afinal, de um problema que era de saúde pública, no nosso tempo de Guiné!

A propósito do tema, ainda hoje, volvido mais de meio século, do fim da guerra e da mobilização de um milhão de  homens, europeus e africanos (e até asiáticos, macaenses e timorenses),  para os vários de teatros de operações no longínquo ultramar português, temos as mais diversas opiniões e reações dos ex-combatentes quando se fala dos "ditos cujos"... Convenhamos que, em tratando-se de maleitas nas "partes baixas" ou "pudendas",   não é de bom tom  falar delas em público, para mais num blogue que é lido por toda a gente, lá em  casa, da avózinha ao netinho (*). (Hipocrisia ? Pudor ? Má consciência ?... Já lá dizia o velho Hipócrates, "o que é natural (o corpo,  o sexo, a doença...) não é vergonhoso" (naturalia non turpia", em latinório)...

Confesso que ainda continuo a rir, despudoradamente (!), quando releio as   "Trombas do Lopes", expressão  que, em crioulo de Fá Mandinga e Missirá, queria  dizer ... as "Trompas de Falópio".

O "alfero Cabral" e os seus rapazes do Pel Caç Nat 63, do Nanque ao Lopes,  são figuras impagáveis que ficam gravadas na nossa memória de últimos soldados do Império...



Estórias cabralianas: as Trombas do Lopes

por Jorge Cabral


O Amoroso Bando das Quatro (**) deixou-nos muitas saudades. Mas que noite agradável ... até sonhámos com elas. Só que ainda nem três dias haviam passado, já recebíamos tratamento à fortíssima infecção que nos atingira o dito e adjacências. 

Graças à Penicilina, o caso seria em breve esquecido, pois afinal tinham sido apenas ossos do ofício, os quais segundo alguns até mereceram a pena... Porém, e estranhamente, os sintomas começaram a surgir nos africanos, soldados e milícias, os quais não tinham usufruído da benesse.

Só então o Alfero ficou preocupado. Ora se nos mandam agora numa operação! Que vergonha! Avançaremos de pernas abertas como se fossemos da Cavalaria no tempo dos cavalos?

Mas como é que a moléstia teria chegado aos Africanos? Mesmo sem poder contar com o investigador Nanque que continuava preso em Bambadinca, o Alfero acabou por descobrir. Reconstituída a noite do Amor, constatou que as damas se tinham ausentado durante meia hora para comer. Fora, então.

E quem? Óbvio suspeito, "Preto Turbado", soldado Bijagó, de quem se dizia, que às vezes aliviava os maridos fulas do débito conjugal. Chamado, confessou. Naquela noite oferecera às visitantes a bianda, e à sobremesa... acontecera. Depois contagiara algumas das mulheres dos militares, as quais por sua vez, contaminaram os fidelíssimos maridos...

O assunto era grave. Que fazer perante aquela verdadeira pandemia? Como tratar as mulheres e ao mesmo tempo dissipar as dúvidas sobre o seu comportamento sexual?

Naquele tempo e para aquele Alfero, tudo era possível. Resolveu reunir todos os africanos, soldados, milícias e respectivas mulheres, proibindo os brancos de assistirem, com uma única exceção – o enfermeiro Alpiarça.

E a todos, pregou o mais absurdo discurso da sua vida. Ainda hoje se lembra dos olhos esbugalhados do Alpiarça... Falou de gonococos trazidos pelo vento, das infeções do útero e das trompas de Falópio... Tratamento imediato, frisou, e nada de mezinhas. Claro que perceberam muito pouco, mas ficou com a certeza que no futuro se protegeriam do vento Blenorrágico...

Na semana seguinte, encontrava-se no bar de oficiais em Bambadinca. Conversava e bebia o seu quarto uísque, quando o foram chamar para ir ao Posto de Socorros. Lá foi. Médico, Furriel e Cabo rodeavam um casal de Missirá, o milícia Suma Jau e a mulher. Não os percebiam. Eles queixavam-se das... “Trombas do Lopes”.

O Alfero ouviu e,  muito sério,  informou:

− É fula... Quer dizer... esquentamento.

Parece que o Furriel apontou no seu caderno de sinónimos..

(Revisão / fixação de texto: LG)

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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 7 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25917: Humor de caserna (72): Estragos no bananal (José Ferreira da Silva, autor de "Memórias Boas da Minha Guerra", vol I, Lisboa, Chiado Editora, 2016, pp. 64/66)

(**) Vd. postes de: