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segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Guiné 61/74 - P27383: Manuscrito(s) (Luís Graça) (277): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte II


Capa do livro "A Rua Suspensa dos Olhos" de Ábio de Lápara (edição de autor,  José A. Paradela, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)...

Ábio de Lápara é o pseudónimo literário de José António Bóia  Paradela.  Imagens: arquivo de LG + Matilde Henriques 


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Teria feito 88 anos no passado
dia 30 de outubro (*). Nasceu em
Ílhavo em 1937. Morreu no hospital,
em Aveiro, em 2023. Membro da 
Tabanca Grande. Fez a tropa
na marinha de guerra 
e antes, 
aos 17 anos, 
na pesca do
 bacalhau, 
seguindo os passos
dos seus avoengos.
Excertos de "A Rua Suspensa dos Olhos" - Parte II

por Ábio de Lápara / José António Paradela 
(1937-2023)


A Rua Suspensa dos Olhos. Não sei como foi na vossa rua. Se quiserem acreditar, tudo bem, pois lá na minha os prodígios eram matéria banal. Qualquer um, desde que não fosse bisonho, podia embarcar nas cenas prodigiosas que vou relatar.

Aquela rua estava suspensa de mil olhos novos, acabadinhos de nascer. Eram olhos todos diferentes à primeira vista, porque as suas cores percorriam todo o arco-íris.

E quando aquelas cores já não chegavam para tantos olhos, abatiam-se os tons originais com aguadas de cinzento, ora mais claro, ora mais escuro  
e esses eram, na verdade, os olhos mais bonitos,  normalmente distribuídos 
às meninas a condizer com o tom dos seus cabelos.

Em alguns, a pálpebra superior descia um pouco mais sobre a íris e então diziam-se apaixonados. Noutros sucedia o contrário e chamavam-lhes desconfiados. Noutros ainda, uma ligeira rotação transformava-os em marotos!

Mas na verdade, acabados de nascer, eram sobretudo sedentos de luz, que bebiam em grandes quantidades, e também de formas, ora geométricas ora orgânicas, com as quais construíram uma rua perfeitamente igual á minha: as mesmas pedras, as mesmas portas, os mesmos rostos.

Por isso era chamada Rua Suspensa dos Olhos.

E toda a vida ali, era decalcada da outra, com papel químico em tons que evoluíam do azul celeste até ao rubro dos poentes. Só o tempo era mesmo diferente e bastante mais célere, comprimindo os vagarosos acontecimentos que se esmagavam impreterivelmente no fim do sonho, hora a que os poentes coincidiam com o toque a rebate das mães, cansadas do dia.

Cada par de olhos tinha um dono que tratava deles como pincéis de pelo de marta. As suas pestanas eram sanefas aveludadas, e os nomes dos seus donos fundiam-se por vezes com a geografia da rua: Laide do Canto, Laidinha do Cabeço, Amélia dos Cofinhos, Maria Mangona...

Ou com os nomes de coisas de utilidade discutível numa rua suspensa dos olhos: Benjamim Balança, Manéuzinho Fazenda, Júlio Abóbora, Aníbal Repolho, Rosário Papoila, Helena Caracola...

Ou ainda nomes estranhos, herdados de antigos náufragos arrojados à costa pelos temporais, lá para os lados da Barra: Reinaldo Perqueixo, Carolina Campanta, Laura Vigia, Luz Mastrago, Rosa Nocha, Artur Cagula...

Por ironia do destino, eu, que não era especialmente dotado para jogos complicados, tinha todo o tempo disponível para percorrer ambas as ruas e imiscuir-me em trapalhadas de que me sobraram ternas recordações! (...)


Ilhavo > Biblioteca Municipal > 26 de novembro de 2017 > 

O Zé António na apresentação da sua última obra, publoicada também sob pseudónimo: Ábio De Lápara, "O Livro das Santinhas de Apegar: Textos Poéticos". 

É ainda autor de dois livros de crónicas e pequenas estórias sobre as geografias emocionais da sua infància:  “Uma Ilha no Nome” (2007) e “A Rua Suspensa dos Olhos” (2015)

Foto de Etelvina Almeida (editada, com a devida vénia)


***

Para que percebam o meu tamanho de então, dir-lhes-ei que, o senhor Zé Pereira se sentava, normalmente após o almoço, a colher as amenas réstias do sol de Outono, no passeio da ti Cacilda.

Aí, eu instalava-me confortavelmente com os cotovelos apoiados nos seus joelhos, pés balouçando, ligeiramente levantados do chão, observando com minúcia o seu acto de fumar e todos os preparativos necessários para concluir a operação com sucesso:

1- Tirar uma mortalha do saquinho de função

2 - Enrolar nela o tabaco desfiado e molhar com a língua, numa passagem rápida

3 - Colocar a prisca na boca, em posição expectante de lume

4 - Tirar o catracezílio do saquinho, mais o fuzil e a pederneira

5 - Tanger o fuzil até saltar a faísca que ateia o morrão (a isca) no interior do catracezílio

6 - Soprar aumentando o lume do morrão

7 - Encostar a ponta do cigarro ao círculo incandescente e chupar até sair fumo.


Glória das glórias quando tudo terminava e o fumo invadia, cheiroso, os canais tabágicos do senhor Zé Pereira. Então eu descia dos meus cotovelos para lhe pedir que me deixasse colocar a rolha de cortiça na embocadura do catracezílio e assim apagar o lume.

— Mas quem é este senhor? 
— perguntareis intrigados.

Bem... na minha rua houve alguns casos semelhantes, passados em diversos pontos do mundo, que chegavam aos meus ouvidos nas conversas sussurradas dos adultos.
Este aconteceu na América.

Perante a escassez de recursos lá na rua, os homens punham pés ao caminho e “saltavam” noutros países arriscando todo um passado que tinham construído entre porões de dificuldades. Com isso pretendiam reconquistar a capacidade de sonho que a minha rua já não permitia aos adultos. Veleidades dessas, só na Rua Suspensa dos Olhos, acabados de nascer.

Ao saltarem longe da rua, em terras tão estranhas, o fervor da nova luta iluminada pela luz de outros quadrantes e associada ao jogo do fracasso, levava a que por vezes, na rija aposta que fizeram, saíssem a perder.

Poucos homens resistem à derrota,  como sabemos. Por isso, o senhor Zé Pereira ensaiou esquecer o passado... a mulher, as filhas e tudo o que as rodeava. E isso, durante muitos anos, demasiados anos!

Quando, no auge da angústia, resolveu voltar para dar conta do fracasso
 nem todos o faziam, preferindo morrer longe —  os seus olhos escureceram. De que cor estaria o seu coração?

A partir daí, não teve mais lugar na casa que esquecera e ficou a viver na "casinha", o anexo ao fundo do quintal, onde elas lhe serviam a comida em isolamento afectivo. Olho por olho, dente por dente.

Mas para mim, ele foi o avô que nunca tive, a quem ia apanhar "beatas" no tempo em que os cigarros não tinham filtro, para ele desmanchar e secar ao sol sobre uma folha de jornal, compondo depois novos cigarros.

Pagava-me com afecto
 "toma lá, sacanita"!  e punha na minha mão um rebuçado de açúcar negro e mole, que era o que havia na loja do ti Tomé Pascoal naquele tempo de guerra.

A Rua Suspensa dos Olhos era mais comprida que a outra, porque ali circulava mais gente em passada lenta e por isso os acontecimentos tinham sempre uma expressão diferente. (...)

***

Começava no Alto Badeira e seguia, Alqueidão abaixo, até à Malhada, onde após a pequena Ponte de Pedra Vermelha, se perdia na água que tornava o seu fim indefinível e aberto a todas as aventuras.

Por isso elas contam-se infindáveis e articulam-se como as pedras juntouras daquela pequena ponte em arco de volta perfeita. Estreito arco, ligado ao antes e ao depois, ali só passavam os humanos postos nos caminhos da água. (...)

Os que ficaram em terra com as suas carroças e os seus animais, aprisionaram-na mais tarde numa rotunda infame, porque apenas viram nela o arco.

Esqueceram que sem antes nem depois, sem aqueles estreitos percursos que a ela conduziam, o arco é inútil e sem isso não há caminho para a aventura. Só o todo interessava aos olhos que suspendiam a ponte daquela rua: presa, isolada como está hoje, as suas pedras não têm valor porque já não conduzem ao sonho...

Cada estranho que calhasse passar ali, abria o corredor do mistério, onde pululavam cobras cuspideiras da floresta amazónica, navios fantasma de velas rotas e gritos de pássaros surgidos na bruma, lobisomens necessitados de serem picados, bruxas e curandeiros.

Pendurado do medo, por ali ouvi essas estórias na boca do Cagula, o mais velho e suposto herói de aventuras reais, mesmo que imaginárias.

Mas os prodígios mais prodigiosos, eram os rituais na Rua Suspensa dos Olhos.

Não tinham paralelo em qualquer outra. Ali todos os olhos eram recém nascidos, quer os seus donos fossem novos ou fossem velhos.

Irmanados no seu poder encantatório, os ritos exprimiam-se através de cenários desmesurados como nos dramas ultrarromânticos:

  • o fogo purificador, multiplicado por mais de oito fogueiras ao longo de toda a rua na noite de São João, onde se esconjuravam todos os bruxedos, feitiços e maus olhados da rua, mesmo os do alfaiate Lavanca, boa pessoa mas tido por lobisomem;
  • os gigantescos papagaios lançados ao vento da agra, feitos de lençóis ou brancos sacos de farinha de bordo, cosidos e puxados por marinheiros com saudades do mar, como se quisessem contrariar a corrida das nuvens que lhes traziam recados do largo;
  • os jogos de malha para treino de músculos  —  aguardando o tempo de alar bacalhaus no balanço do bote —  onde ao fim da tarde, os olhos suspensos do grande grupo ficavam piscos perante as picheiras esvaziadas na tasca do Ti Tomé Pascoal.

Enfim, homens e crianças, por certo crianças/homens, suspendendo aquela rua na paixão inocente do brincar.

***
A estória já vai longa neste abrir e fechar de olhos aparentemente tão diferentes.

E garanto-vos que era mesmo só aparência, porque mais tarde, quando certos desgostos se impunham, todos os olhos choravam de igual modo lágrimas salgadas ou amargas e a sua expressão carregava-se dos mesmos tons nocturnos.

Foi assim no naufrágio do "Infante de Sagres" ou no naufrágio das traineiras num temporal em Matosinhos e em tantos outros casos onde morreram companheiros, noticiados em dias tempestuosos, quando o ribombo das ondas na costa ecoava pela laguna e se fazia ouvir ao longe sobre a rua.

Nesses momentos, as cores do olhar diminuíam de intensidade e as mulheres cochilavam enroladas nos seus xailes negros de cadilhos tristonhos e a Rua Suspensa dos Olhos descia ao solo, onde o som dos tamancos arrastados na calçada estabelecia um ritmo mais consentâneo com a misericórdia desses dias.

Em setembro encontrei a Laide do Canto, na Costa Nova. Há anos que não a via. Emigrara para a América onde criou filhos e netos. Poucos minutos depois da euforia do encontro, percebi claramente que a Rua Suspensa dos Olhos ainda existia.

Existirá sempre, enquanto viver um par daqueles olhos com as cores do arco íris.


Costa Nova, 1 dezembro 2011

Fonte: Excertos do manuscrito , em pdf, de "A Rua Suspensa dos Olhos",  de Ábio de Lápara, que ajudei a rever em 2015, antes da execução gráfica. Recorri de momento ao manuscrito por não ter aqui à mão um exemplar do livro em papel.

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG) (**)

__________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste anterior >  31 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27367: Manuscrito(s) (Luís Graça) (276): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte I

(**) Último poste da série > 1 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27372: Manuscrito(s) (Luís Graça) (277): As andorinhas de Candoz na véspera da "grande viagem" para a África (subsariana, equatorial e até austral)

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27367: Manuscrito(s) (Luís Graça) (276): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte I




Capa do livro "A Rua Suspensa dos Olhos" de Ábio de Lápara (edição de autor,  José A. Paradela, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)...

Ábio de Lápara é o pseudónimo literário de José António Bóia  Paradela.  Imagens: arquivo de LG + Matilde Henriques 


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Zé António, meu mano:  hoje seria dia dos teus anos.  30 de outuro de 2025. Aliás, é dia dos teus anos. Oitenta e oito.  Um número redondo, uma capicua.  Em boa verdade, não morreste.  Deixaste apenas de aparecer, lá na nossa casa, como nos dias de cozido à portuguesa, feito pela "chef" Alice. Como tu adoravas o caldinho do cozido, a fumegar, já ao fim da tarde dos nossos sábados de eternidade,  com o saborzinho e o cheirinho da hortelã!

Foste-te embora, não encerraste a tua conta do Facebook. E a PAL -Planeamento e Arquitetura Lda, continua de porta aberta. O teu gabinete, a tua torre que não era de marfim. Eras um homem, cidadão, português, ilhavense, escritor, urbanista e arquiteto, profundamente ligado à terra (e ao mar).  Nunca foste ilha, mas arquipélago. Todos os que te ama(va)m continuam a "falar" contigo. Na esperança de que tu nos oiças. Falamos de ti entre nós. Que é também a nossa maneira de "falar" contigo. 

Ainda hoje, ao fim da tarde (os dias agora são mais curtos com o raio da hora de inverno), estivemos, eu, a Alice, a tua Matilde e o teu Jorge, a matar a nossa saudade de ti, à volta de um pastel de nata e de uma bica. Só faltou o "almirante", que anda lá pelo Mar do Norte, no seu porta-contentores, com esta invernia. Virá cá pelo Natal. Para ver a tua neta, que está cada vez mais linda. Ah!, vais ter outra neta (ou neto). Parabéns!... Eu também já tenho duas netas, é bom, dão-nos a ilusão de eternidade.

E, depois, continuas a ter, aqui, um lugar sob o poilão da Tabanca Grande. Foste marinheiro. Nunca foste à Guiné. Mas fizeste a tua tropa, a tua guerra. Foste à Terra Nova. Também foste "periquito", aliás "verde". Aos 17 anos, no teu dóri, nos bancos de pesca da Terra Nova. Na frota branca, a bacalhoeira (*). E também estiveste na marinha de guerra. Darias sempre um "mau infante" como eu.

Hoje ergo a taça, bebendo simbolicamente à tua memória, que continua viva, presente e quente entre os teus (família e amigos).

Lembrei-me dos teus livros. E deu-me uma saudade danada de reler a tua Rua Suspensa dos Olhos (**), que foi a rua da tua infância, em Alqueidão, Ílhavo. Nunca lá fui, a Alqueidão, que pena, tendo-te a ti como cicerone.  Perdi essa oportunidade única. Mas, pelo que me dizias, a tua rua já não existia. As ruas da nossa infància, quando crescemos ou mudamos de rua, de cidade, de país, deixam de existir.  As ruas da nossa infància morrem connosco  se não passarmos para o papel ou para o computador as nossas memórias. Ainda bem que o fizeste. São as tuas geografias emocionais. Mas também não  precisei de ir lá, à tua antiga rua da infância, bastou-me ler o teu livro. 

Todos temos, tivemos,  uma rua da  infância. Imagino que o teu Alqueidão era o da gente humilde, que nasceu com o ADN do mar por brasão. Quando eu te visitava, em agosto, a caminho de Candoz,  era na burguesa Costa Nova. Conheço mal a tua Ílhavo. A última vez que lá estive foi no dia da tua despedida da Terra da Alegria.

O jornalista Viriato Teles, também ele ilhavense, que fez em 2015 a apresentação do teu livro, na terra de ambos, sessão que eu perdi por qualquer razão de agenda, escreveu então o seguinte, sob o título "Os olhos da nossa infància" (excertos reproduzidos aqui com a devida vénia):

(...) Eu não conheci 'A Rua Suspensa dos Olhos',  tal e qual ela como nos é contada neste livro. Nasci uns anitos depois do Zé António, e do Ábio, e por isso já não vi o empedrado nem os poiais em frente das casas de Alqueidão. 

Mas o lugar onde brincou o Zé António é o mesmo onde, anos depois, eu passei muitos dos meus dias — e sobretudo das minhas noites — da adolescência. Pela simples razão de que era em Alqueidão que moravam alguns dos meus melhores amigos, e isso fazia de mim um passeante regular da rua.

Além disso, Alqueidão desembocava no esteiro da Malhada, que nessa altura era o melhor lugar do mundo (...)

(...) E muito daquilo que se passava na Rua Suspensa dos Olhos,  do Ábio de Lápara, passava-se de modo semelhante na Rua da Capela da minha infância. Além de que — e essa é seguramente outra semelhança que existe entre nós — no meu tempo como no dele, a infância vivia-se muito na rua e a partir da rua. Paradoxalmente, nessa época em que a liberdade era, em Portugal, um anseio longínquo e difícil de concretizar, a vida dos miúdos como nós era muito mais livre do que foi a dos nossos filhos.

A rua era o nosso pátio, a nossa casa, o nosso mundo. E a nossa escola, também. (...)

(...) Naqueles tempos em que as crianças vinham da Feira dos Treze pela mão da Dona Alicinha (que "não tinha filhos pois os dava a toda a gente" e que nos ajudou a ambos a vir ao mundo), Ílhavo era muito diferente do que é hoje. 

Nas nossas infâncias, Ílhavo era uma vila, ainda essencialmente ligada ao mar e à pesca longínqua da Terra Nova, e isso modelou inevitavelmente a nossa forma de estar e de sentir: aquele modo de ser meio agreste que nos caracteriza e que se revela nos jeitos e nos trejeitos, no linguajar, na maneira como falamos uns com os outros — e uns dos outros, também.

Não me custa dar razão a quem nos define como sendo uma gente pouco dada a cortesias: afinal, a 'alma ilhavense' moldou-se nos mares do fim do mundo, em meses de solidão e frio glacial, onde pairava sempre o sopro da morte, à espreita em cada vaga. Isto no que aos homens diz respeito. Quanto às mulheres, forçadas a assumir o comando da vida em terra, desenvolveram um forte sentido matriarcal — que se mantém, para o bem e para o mal. (...)



Recordo aqui o que te escrevi e disse, na na minha oração fúnebre, em 23 de fevereiro de 2023, na igreja matriz de Ílhavo:

(...) Ah!, quanto humanidade, ternura, inocência, traquinice, generosidade e poesia havia na tua rua suspensa dos olhos...

Ilhéu, lhavense, filho da terra e do mar, evocas e descreves com enorme ternura e talento a rua onde nasceste e cresceste. E das figuras humanas que marcaram a tua memória e o teu imaginário, não posso deixar de citar o teu pai, marinheiro aos 12 anos, figura de referência na tua vida, sempre ausente e sempre presente, e que gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…

Tendo tu sido criado no matriarcado, cercado de mulheres e dos seus fantasmas e das suas recordações, fizeste, no entanto, da figura do teu pai a mais bela evocação na tua narrativa ilhavense: “Estávamos todos em casa, isto é, ele não estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde”… (...)


LG | Alfragide, 30 de outubro de 2025, 23.00





Excertos de "A Rua Suspensa dos Olhos" - Parte I

por Ábio de Lápara / José António Paradela 
(1937-2023)



Rua das Manhãs
A morte sabia
quem ali morava...
Rua das Manhãs
a morte levou
tudo o que eu amava...


Raul de Carvalho (1920-1984)


(...) Eu, criatura inventada à imagem e semelhança de Deus, fui fabricado em Campo de Ourique. Era o que dizia a minha mãe, casada com um marinheiro nos idos de 35.

Como cada um fica indelevelmente marcado pelo tempo e pelo espaço onde foi concebido, dizem, tive de aceitar logo,  nesse transe, o maldito signo do Escorpião.

Do mesmo modo, assente o sítio da batalha cujo nome, apesar da discórdia, ainda hoje é considerado o locus onde a divindade assinalou o desígnio nacional, o meu brasão só poderia ser o das cinco chagas, para os mais religiosos, ou dos cinco castelos mouros para os mais dados às coisas da guerra.

Isso acarretou alguns amargos de boca no meio familiar, onde um avô republicano casou em primeiras núpcias com uma prima católica, que passou a ser minha avó. E assim tive de herdar, ainda antes de nascer, o nome dele e o carinho extremoso dela.

Um pouco mais tarde, fizeram-me constar que fui comprado na Feira dos Treze, ali na Vista Alegre, sempre perseguido por simbolismos estranhos, e levado para a rua de Alqueidão pela mão de uma Alice que vivia do outro lado do espelho. Não tinha filhos pois que os dava a toda a gente, e ficou conhecida pelo carinhoso diminutivo de Alicinha como nas estórias de duendes e feiticeiras, já que as suas mãos exsudavam milagres em cada parto.

Terá sido este o meu caso, pois as primeiras recordações de que disponho, dão comigo a viver já nessa rua fantástica, tal como vou descrever.  (...)

***

(...) A minha casa tinha porta para ela, que nesse tempo era empedrada com calhau rolado de média dimensão, digamos... do tamanho de padas de Vale d' Ílhavo, que geravam um ruído forte sob os rodados metálicos das carroças de bois e torciam os pés às mulheres que usavam tamancos.

Para ser breve, direi que tirando as casas, de tudo o que hoje lá está, nada existia. Pois é! Pensem no que quiserem... Nada disso existia! Em contrapartida, existiam longos poiais na frente das casas que serviam de bancos onde se sentava a vasta comunidade lá da rua.

Ali, as crianças brincavam, as mulheres ratavam nos casacos de quem passava e os velhos enrolavam cigarros de tabaco desfiado que acendiam nas beatas uns dos outros.

E o que se passava durante o dia, se repetia à noite quando o tempo estava ameno, sob a luz soturna de uma lâmpada eléctrica, adorada pelos morcegos, existente num poste metálico junto à loja do ti Tomé Pascoal !

Aí vivi durante os anos da minha tenra infância e alguns da juventude.

Digamos que era uma rua divertida onde não se vislumbrava nenhuma crise de natalidade, talvez porque a Feira dos Treze ficasse a curta distância e as crianças fossem baratas, ou porque a fome tocasse igualmente a todos quer fossem poucos quer fossem muitos e por isso, nascer era relativamente indiferente.

A verdade é que não faltavam amigos para brincar nem escaramuças entre as mães para nos divertirmos. Os pais, - semente intermitente - como habitualmente, estavam ausentes no mar, muito longe, bem perto das latitudes polares. (...)

***

(...) Os Cagulas eram quatro ou cinco filhos de um cabo do exército, homem aprumado, de frágil figura e aguçado bigode, envergando farda de caqui e capote de burel cinzento. Um justo bivaque, ligeiramente descaído sobre o lado esquerdo, deixava entrever uma madeixa negra encaracolada.

Recordo-o entrando no beco, a cumprimentar os vizinhos com um gesto militar, elevando a mão direita até à orelha do mesmo lado, sem lhes dirigir muitas palavras.

Um militar de pequena patente não ganhava para ter uma família tão grande! Assim, para matar a fome aos filhos, distribuía-lhes uma tarefa ao longo dos dias da semana: dois a dois, cajado e lata ferrugenta na mão, palmilhavam a pé os cinco quilómetros que separavam a sua casa do quartel, em Aveiro, de onde regressavam com ela enfiada no cajado, plena de sopa de feijão com massa e alguns gorgulhos flutuantes.

Acontece que por ironia do meu fraco apetite, adorava aquela sopa! Assim a minha mãe via-se obrigada a promover trocas para satisfazer o meu desejo que, no fim de contas, mais não era do que o prazer de comer na companhia daqueles amigos cujas estórias e aventuras me fascinavam.

Como a sopa já chegava fria, por vezes o prodígio consistia em fazer lume na sua lareira rasa, numa cozinha onde nem sempre existiam fósforos. Então era necessário pedir uma brasa a algum vizinho e, a partir dela, soprar até pegar o fogo à lenha ainda verde, colhida no mato! Lentamente, o lume ia crescendo sob a lata pendurada de um gancho de ferro na chaminé, e o cheiro que exalava ia aumentando a saliva nas nossas bocas: um manjar!

Na penumbra daquele espaço, as estórias tinham já uma aura de mistério ou de terror, associado à luz bruxuleante e ao fumo do pinho verde e cheiroso. E lá vinham os latidos nocturnos dos cães, supostos lobisomens, e as gigantescas gibóias de fatal abraço, vencidas por um pau afiado em ambas as extremidades, seguro pela mão forte do João Cagula, que depois me explicava como ganhava dinheiro com a gordura extraída, para fabricar o unguento que se vendia na Feira dos Treze! A banha de cobra, que curava sarnas, pruridos, eczemas e muitas coisas mais! (...)

***

(... ) Por esse tempo, ao fundo da rua, residiu intermitente, uma das mais divertidas figuras que a Rua Suspensa dos Olhos teve durante anos, inflamando a imaginação dos olhos acabados de nascer: o Ramon.

Loiro, ultra-penteado com azeite, garboso de faena acabada, montava um burro do seu clã, rua acima , desde o pequeno terreiro junto à fonte dos Bastos - a que os folcloristas da outra rua chamaram em tempos Fonte dos Amores, sem que lá tenham amado - até ao Largo da Senhora, que na outra rua tinha um nome já apagado, na tabuleta oval, de esmalte antigo.

Aí, os olhos vivos, sedentos de estranheza, o inquiriam sobre a vida dos ciganos e se deliciavam com o prodígio que era poder ser loiro e simultaneamente cigano, viver numa tenda de pano sujo e ser dono de um transporte individual de quatro patas.

E, para além do mais, ser feliz nas amizades que se prolongavam no tempo - embora interrompidas pela transumância - e nos permitiam cavalgadas heróicas no lombo despido daquele burro!

Porque na outra rua, os ciganos só podiam ser morenos, vendiam cestos, liam a sina nas mãos das solteironas e, por sua causa, era necessário montar vigilância nos quintais... Se isto não é um prodígio, digam-me lá onde é que eles existem! (...)

***

(...) Muitos donos de olhos atrás citados são personagens de estórias pessoais coladas na rua suspensa, evitando a sua queda. Mas o mais importante para o equilíbrio interno de todos eles, era o grupo que permitia aferir a certeza dos seus juízos: o grupo dos loucos daquela rua.

Ficam estes para outra ocasião, porque levam algum tempo a exumar. Os seus nomes são eternos porque estão sentados á direita do Altíssimo: Chiquinho Maneta,  o Ester, Chico Rádio, António Espiga...

Contudo, lembrei-me agora de outro personagem importante lá da rua, figura indesculpavelmente esquecida.

Era um homem de estatura muito pequena, ligeiramente encurvado e com uma perna mais curta que lhe acentuava aquele defeito quando se deslocava. Andava sempre com uma caixa de madeira suspensa do ombro por uma correia de couro, onde transportava os instrumentos do seu ofício.

Chamavam-lhe Manéuzinho Fazenda, e percorria a rua de uma ponta à outra cortando cabelos e escanhoando faces barbudas.

Barbeiro ambulante, utilizava os restantes atafais dos clientes para proceder à depilatória função.

Tive a pouca sorte de o ter como barbeiro nos primeiros tempos da vida. Era nosso vizinho e uma criatura muito afável, mas cheirava a aguardente e a tabaco de séculos anteriores.

As ferramentas de que dispunha há muito que deviam ter sido reformadas! A máquina de cortar tinha falta de dentes e arrepanhava-me o cabelo, já de si finíssimo como seda, cujo eriçado destruía os pentes à minha mãe e o meu couro cabeludo no esforço do puxão.

Mas o pior de tudo era a navalha de barbear para rapar o pelo sobrante da nuca! Os meus lancinantes gritos não paravam, apesar das constantes tentativas que ele fazia para afiar e assentar o fio da lâmina maldita!

E culminavam quando ele perguntava à minha mãe:

 
  Oh Rosinha, tens álcool para lhe desinfectar o pescoço?

Durante anos pedi a Deus, nas minhas rezas nocturnas, um milagre que me libertasse dele. Sendo Deus, já nesse tempo, bastante velho e surdo, esse prodígio só aconteceu mais tarde, quando o meu pai me encomendou ao senhor Leopoldo, barbeiro com ferramentas de outra afinação, barbearia selecta, bem no coração da vila.

Colocado um pequeno assento sobre a cadeira dos adultos, ali me sentava eu, embrulhado numa enorme toalha branca apertada no pescoço, frente ao espelho que me ia devolvendo as imagens de capitães já barbeados, que prolongavam as conversas atrás da minha cadeira, discutindo assuntos de barcos e mares encapelados, quando não dizendo mal do perfume ou do cheiro a mofo da toalha com que Leopoldo lhes secara a cara... E esse gozo prolongava-se pela manhã e pela tarde, à medida que saíam uns e entravam outros. (..:)

Fonte: Excertos do manuscrito , em pdf, de "A Rua Suspensa dos Olhos",  de Ábio de Lápara, que ajudei a rever em 2015, antes da execução gráfica. Recorri de momento ao manuscrito por não aqui à mão um exemplar do livro em papel.

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

_______________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. postes de;


30 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15554: Notas de leitura (792): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: III (e última) parte

(**) Último poste da série  > 11 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27307: Manuscrito(s) (Luís Graça) (275): 50 pequenas coisas que mudaram em 50 anos no Portugal sacro-profano que eram as terras de Candoz, no Marco de Canveses, em Entre-Douro-e-Minho

domingo, 12 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27311: Humor de caserna (215): A minha... G3trudes: uma peça em 3 atos e um final feliz (José Teixeira, CCAÇ 2381, ex-1º cabo aux enf, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá , Empada, 1968/70)


Guiné > Zona Sul > Região de Quínara > Sector S1 (Tite) > Empada > CCAÇ 2381, Os Maiorais ( Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) > O 1º  cabo aux enf Zé Teixeira em 1969, com a sua namorada, a G3trudes, com quem irá manter uma conflituosa relação que acabará em divórcio. 

Foto (e legenda): © José Teixeira  (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
Humor de caserna > A minha... G3trudes: uma peça em 3 atos e um final feliz

por Zé Teixeira



"O Maioral", Zé Teixeira
(i) Encontro e namoro

Na quinzena de campo, na IAO, que antecedeu a partida para Guiné, deram-me uma companheira, a namorada que, afirmaram, me ia acompanhar durante todo o tempo em que ia estar na guerra. Se houvesse alguma infelicidade, me acompanharia até ao caixão. Era uma G3, a Gertrudes ou a G3trudes.

Disseram-me também para a tratar com carinho. Cuidar dela era cuidar de mim próprio.

Primeiro, trazê-la sempre limpa e asseada, sobretudo o cano, para que a baba, ao tentar sair, furiosa por não conseguir devido a sujidade, não rebentasse o cano. Pois, na pior das hipóteses, as tiras de aço voltavam-se para trás e atingiam o crânio do atirador, mandando-o de volta no sobretudo de madeira.

Segundo, pôr-lhe creme (óleo) nas partes mais sensíveis, para responder rapidamente aos estímulos.

Terceiro, sempre travadinha, para não fazer asneiras.

Quarto, nunca a abandonar, pois, se perdida, dava origem no mínimo, mais meio ano de comissão. O importante era chegar, sempre, ao aquartelamento com a G3trudes.

Durante os primeiros três meses, foi de facto, a minha companheira preferida e inseparável:

  • pendurada no meu ombro, ao lado da bolsa de enfermeiro;
  • deitada a meu lado à sombra de uma árvore protectora do sol e do IN;
  • ou no chão de cimento na caserna em Ingoré.

Antes da partida, prometera a mim mesmo não lhe tocar nas partes sensíveis, porque vomitavam fogo, matavam vidas e isso não fazia parte da minha missão como enfermeiro e muito menos dos meus planos. 

Cantei de alegria, quando soube que as sortes me tinham destinado a ser enfermeiro, convencido que escaparia à guerra pura e dura e que com o meu trabalho iria minimizar dores e, quem sabe, salvar vidas.

Da guerra dura e crua, não escapei, mas cumpri, apesar dos parcos conhecimentos da arte de enfermagem que me proporcionaram, a missão que me destinaram, com dedicação.

(ii) O início do fim de uma relação de amor... impossível

Ao fim de três meses de companhia dedicada, algo de grave se passou que me levou a repudiar a G3trudes para sempre.

Estávamos em plena época das chuvas. Partimos de Buba às seis da matina com destino a Aldeia Formosa,  terra até então desconhecida, onde deveríamos chegar à tarde.

A CCAÇ 1792 veio buscar-nos. Os Lenços Azuis foram, assim, testemunhas no meu batismo de fogo em aquartelamento. Mal chegámos (tínhamos ido ao seu encontro), fomos recebidos com fogo cruzado das duas margens do Rio, mas foi só o susto. Uma amostra do que nos ia esperar no futuro.

Para além de uma enorme coluna de viaturas carregadas com mantimentos, seguiam três obuses de 14 cm. Toneladas de aço a atravessar lamaçais contínuos, pontes montadas e desmontadas por nós e o IN à espreita.

Ao meio da tarde, depois de uma tempestade de... abelhas, quando tínhamos andado apenas uns três quilómetros, uma traiçoeira mina destrói a 5.ª viatura, a das transmissões, levantando uma nuvem de lama. As transmissões terminaram a sua missão.

Ficámos isolados do mundo. Aparentemente, os quatro camaradas que voaram com o sopro, ficaram apenas combalidos, mas um deles, o radiotelegrafista, projectado com o forte impacto, ao cair, ficou ferido interiormente. A morte foi-se aproximando lentamente. A vida dele caminhava para o fim devido à perda de sangue, que não podíamos controlar. Só uma evacuação urgente o salvaria. Tínhamos ficado sem comunicações.

Foram tremendamente dolorosos, para mim e para os enfermeiros das duas companhias, viver estes momentos, horas, de vida, a lutar sem armas, pela vida de um camarada que se apagava. Ele sentia que as forças lhe estavam a escapar. Nós sentíamo-nos impotentes para o salvar. Só o milagre do helicóptero, que não aparecia, porque ninguém sabia, que aquela jovem vida se estava a apagar.

   Já não vejo !    gritava. 

E depois:

  Ajudem-me a levantar   balbuciava ele, mesmo no fim, com a esperança de ainda conseguir recuperar forças e poder gritar bem alto "Safei-me!"... Mas não. Não era possível. O seu destino fora traçado, quando alguém pegou num lápis e riscou o nome dele, assinalando-o para ser mobilizado para a guerra. A guerra que ele não queria...

O sol começou a esconder-se como que envergonhado e o camarada irmão disse adeus à vida, serenamente, sem pressas, em silêncio...

Na azáfama de tratar os feridos, esqueci-me da G3trudes. Foi posta de lado, esquecida, algures. Agora, era preciso procurá-la. Onde ? Tinha-lhe perdido o lugar.

Apareceu uma abandonada junto a uma árvore. Deitei-lhe a mão. Estava safo. E segui caminho.

Uma noite sem sono, com milhares de mosquitos a perseguirem-me e o IN à espreita. Até que o Sol raiou de novo e com ele a ordem de marcha. A partida para o desconhecido. Chão que eu nunca pisara. Lama e mais lama. Mata cerrada. Grandes palmeiras que furaram a selva verdejante à procura do sol, apontavam o céu...

Não demorou muito a aparecer o IN. A coluna era demasiado longa e pesada. Lentamente lá se ia movendo à procura do destino. Deu para emboscarem a frente. Recuaram face à forma como ripostamos e voltaram a atacar a retaguarda.

(iii) Ah! G3trudes de um raio!

Deitado sobre os rodados das viaturas, com o coração a bater como nunca o tinha sentido, escutava o tiroteio que me rodeava, ao ritmo dos rebentamentos das morteiradas que me faziam vibrar violentamente os tímpanos. A G3trudes, a meu lado muito quietinha, quando senti que estava a ser incomodado diretamente. Alguém estava a querer brincar às guerrinhas comigo. As balas assobiavam muito por perto e vinham do alto. Olhei para as palmeiras e vislumbrei fogachos de luz.

A raiva contida, pela morte do camarada, veio ao de cima.

  Ah! G3trudes de um raio! Anda cá!...

Apontar, disparar e... um tremendo coice, um som seco e abafado, seguido de um ruído estranho. À minha frente jazia a G3trudes, com o cano esventrado em tiras. Uma espécie de fole, ou balão.

Fui desarmado para que pudesse cumprir o voto de não matar na guerra para onde me atiraram sem me perguntar.

Deus esteve comigo neste momento. Contrariamente ao que me disseram na instrução de armamento, o cano não abriu em leque, o que a acontecer, muito provavelmente se viria espetar no meu crânio e era a morte certa. O tapa-chamas foi o empecilho que me salvou a vida. 

  Uf! Desta já escapei.

A G3 que no dia anterior tinha encontrado abandonada pertencia ao Salvaterra Bernardes,  natural de Salvaterra de Magos. Um jovem português, deficiente motor e deficiente mental, que assassinos (não encontro nome mais apropriado)´apuraram para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialização como atirador e veio cair na CCAÇ 2381, quando já aguardávamos embarque para a Guiné.

A arma na mão deste homem não servia para nada. Não tinha utilidade prática. Limpeza,  para quê? O cano estava cheio de areia. A bala encontrou resistência e provocou o seu rebentamento, mas estava lá o tapa-chamas.

Salvou-me a vida, impedindo o rebentamento em leque e... talvez, assim se tenha salvo a vida do IN que procurava atingir-me.

Restou apenas encolher-me e esperar que a fraca pontaria do adversário desse resultado, o que aconteceu para meu bem.

Não houve feridos de nossa parte. A coluna seguiu caminho.

(iv) O divórcio

A meio da tarde a aviação localizou-nos, o héli veio buscar os feridos do dia anterior e a vida continuou. Chegámos ao destino ao fim da tarde, ou seja vinte e quatro horas depois do previsto. 

Localizei a minha arma na mão do Salvaterra, fiz o relatório que me exigiram para abater a arma destruída e... para não mais ser tentado a fazer fogo e correr o risco de matar vidas humanas, fui entregar a minha arma ao quarteleiro, sob a ameaça do capitão que me daria uma porrada se me apanhasse sem a minha G3trudes.

Fui só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal era a minha missão.

Zé Teixeira

(Revisão / fixação de texto, título: LG)(**)
__________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 5 de agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2030: Estórias do Zé Teixeira (19): A G3ertrudes encravada que salvou duas vidas (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)
 

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27295: Elementos para a história do Pel Caç Nat 63 (último comandante: Manuel Elvas, Fá Mandinga e Mato Cáo, 1973/74; autor de "O Vale dos Malmequeres", Chiado Books, Lx, 2017, 46 pp. (Luís Mourato Oliveria, ex-alf mil, últomo cmdt, Pel CaçNat 52, Mato Cão e Missirá, 1973/74)


Capa do livro de Manuel Elvas, "O Vale dos Malmequeres" (inicialmente lançado em 2017, pela Chiado Books, sob o pseudónimo literário M. Lacroix. ISBN 9789897741999, 436 pp.)

 

Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Sector L1 (Bambadinca) > Fá Mandinga > c. 1973/74 > O alf mil Luís Mourato Oliveira, cmdt do Pel Caça Nat 52 (Mato Cão) de visita ao seu vizinho e camarada Manuel Elvas, cmdt do Pel Caç Nat 63 (Fá Mandinga)... O pretexto foi uma caldeirada de cabrito... Para lá foi de jipe... Parece que no regresso, com a maré cheia, teve de ir dar uma volta ao "bilhar grande", isto é, ir a Bafatá...

Foto (e legenda): © Luís Mourato Oliveira (2016). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Luís Mourato Oliveira

Foto à esquerrda  Luís Mourato Oliveira, o último comandante do Pel Caç Nat 52 (Mato Cão e Missirá, 1973/74); veio da CCAÇ 4740 (Cufar, 1973). Tem cerca de 80  referências no nosso blogue.. É autor da notável série "Álbum fotográfico de Luís Mourato Oliveira".


1.  Por qualquer razão, esta mensagem do Luís Mourato Oliveira, que hoje faz anos (e que tem andado fora do nosso "radar"...), não foi publicada na devida altura. É de 13 de novembro de 2022, 
16:39. Não perdeu atualidade.  A amizade e a camarada não têm prazos de validade.

Mas não posso deixar de pedir desculpa nem ao emissário nem ao verdadeiro 
destinatário, que é o Manuel Elvas.
Aproveito, se ele nos estiver a ler, para o 
convidar a integrar as nossas "fileiras". 
O lugar do inesquecível "alfero Cabral" esta bago, desde a sua despedida da Terra da Alegria.

 Boa tarde Luis

Ontem estive com um antigo camarada e amigo, o Manuel Elvas, que por coincidência tem casa e passa férias na Areia Branca.

 Como te vais aperceber pela leitura é apenas uma estória que reúne pessoas muito diferentes num objectivo solidário e que tem origem numa amizade de 48 anos e que teve origem na Guiné.

Segue em anexo e se achares interessante publica. Como sou muito "despachado" a escrever, se detetar erros, corrige por favor.

Abraço, Luis Mourato


Elementos para a história do Pel Caç Nat 63 (último comandante: Manuel  Elvas, Fá Mandinga e Mato Cão, 1973/74;  autor de "O Vale dos Malmequeres", Chiado Books, Lx, 2017,  46 pp.); Luís Mourato Oliveira (último cmdt, Pel Caç Nat 52, Mato Cão e Missirá, 1973/74)



Luís Mourato Oliveira, nosso grão-tabanqueiro nº 730, foi alf mil inf, de rendição individual, na açoriana CCAÇ 4740 (Cufar, 1973, até agosto) e, no resto da comissão, o último comandante do Pel Caç Nat 52 (Setor L1 , Bambadinca, Mato Cão e Missirá, 1973/74): é lisboeta,fez o Liceu Pedro Nunes, é bancário reformado, foi praticante e treinador de andebol, tem fortes ligações à minha terra natal, onde agora vivo, Lourinhã, Oeste, Estremadura; desde que se reformou, tem mantido e reforçado a sua ligação à Guiné-Bissau, em projetos de solidariedade. 

Técnico inscrito na Federação de Andebol de Portugal, tem apoiado e fomentado a modalidade na Guiné-Bissau, nomeadamente entre as camadas mais jovens, incluindo as raparigas, tendo começado por criar uma “oficina de andebol” na escola privada Humberto Braima Sambú. 

Não tenho notícias dele, nem o tenho visto na Lourinhã nem na Praia da Areia Branca. 



Conhecemos-nos em 1973 na Guiné-Bissau. Ele comandante do Pelotão de Caçadores Nativos 63,  então aquartelado em Fá Mandinga,  e eu quase ao lado no Pelotão de Caçadores Nativos 52, em Mato de Cão. 

Naquele tempo fazíamos facilmente amizades. Éramos jovens estávamos longe da família e de tudo o que nos era próximo e com que tínhamos crescido. De momento para o outro éramos homens e soldados e os nossos irmãos eram os companheiros de armas que como gémeos vestíamos de igual, partilhávamos do que dispúnhamos e até nas confidências o relacionamento era de confiança. 

Estou a falar do Manuel Elvas, comandante do Pel Caç Nat 63: na altura visitei-o em Fá Mandinga e para além do acolhimento fraternal recordo a única água pura e cristalina que bebi na Guiné sem ter de passar pelos filtros que a tornavam bebível. Foi ele que me rendeu com o 63 em Mato de Cão tendo na altura sido o 52 transferido para Missirá.

Os contactos mantiveram-se através de encontros na sede de batalhão em Bambadica e após o 25 de Abril na expectativa do regresso a Portugal, o Manuel que tinha reunido objectos de
recordação para trazer e sabendo que a minha bagagem era apenas a farda e dinheiro para o táxi do aeroporto até Campo de Ourique onde então residia, pediu-me para trazer alguns
haveres dado o seu regresso não estar ainda programado o que acedi imediatamente. 

Alguns dias após a minha chegada fui fazer a entrega na morada indicada e até pensei haver engano.

A residência indicada era um magnífico palacete do princípio do século XIX onde fui recebido pelos seus familiares com toda a simpatia. O insólito consistia na imagem que tinha do Manuel, homem simples, discreto, de gargalhada fácil mas contida, inteligente nos pareceres e proporcionando sempre um diálogo interessante e elevado.

O nosso relacionamento continuou em Lisboa. O Manuel tinha um restaurante que frequentei, não por favor ou amizade, mas cuja cozinha genuinamente portuguesa convidava a repetir, só é impossível repetir o prazer para o palato dos filetes de Peixe Galo com arroz que desafiavam e qualquer gourmet não dispensava.

 Recordo que foi ali o jantar oferecido a amigos quando do meu terceiro casamento e daí mais uma memória relevante para mim.

O restaurante alterou posteriormente a sua oferta e o Manuel com a colaboração de um soldado do Pel Caç Nat 63, oriundo da região da Bairrada,  passou a servir exclusivamente leitão. 

Foi um sucesso e, para além de enormes elogios nas revistas da especialidade que o obrigavam a horas extras e aos clientes a pedido de reserva,  tinha orgulho de servir o melhor leitão em Lisboa, senão mesmo no País.

Os encontros com o Manuel continuaram, por vezes mais espaçados mas em setembro (de 2022) juntámos-nos na Praia da Areia Branca. Tal como eu ele elege este local como um dos seus preferidos e onde tem residência. 

É sempre um enorme prazer privar com o Manuel e nesse encontro lá lhe passei a narrativa das minhas missões de voluntariado em Bissau sempre associadas às inevitáveis comparações da Guiné do período colonial com a dos dias de hoje.

Sem saudosismos e conscientes que os sistemas coloniais não servem os povos, resta-nos a tristeza justificada pela atual situação social e política que infelizmente nada trouxe de melhor para o povo guineense.

Sempre que posso, envio bens para os meus irmãos guineenses pela via marítima mas quando me desloco a Bissau transporto tudo o que é possivel e pode ser útil numa sociedade com tantas carências e o Manuel sabendo disso pôs-se imediatamente à disposição para me facultar bens tão necessários como roupa e telemóveis para eu levar e distribuir de acordo com as necessidades locais, e encontrámos-nos para a entrega. 

Tinha comprado o livro “Estórias Cabralianas”, do saudoso Alfero Cabral, também antigo comandante do 63, para lhe oferecer e fiquei mais uma vez surpreendido com o Manuel. Também tinha uma oferta para mim. Um livro com o titulo “O Vale dos Malmequeres”, da editora Chiado Books e o nome do autor que o exemplar exibia era Manuel Elvas.

Não comecei a ler porque o reservo para a minha leitura em Bissau para onde parto dia 26, mais uma vez para colaborar na área da formação desportiva com clubes filiados na Federação da Andebol da Guiné-Bissau mas trata-se de um livro cuja narrativa são memórias que trazemos da Guiné então Portuguesa, sem serem estórias de guerra são estórias dos conflitos interiores que todos trouxemos e que ainda não conseguimos nem conseguiremos pacificar.

Espero também encontrar as estórias de fraternidade e dos sentimentos de amizade e confiança que se mantiveram durante quase cinquenta anos que levam que pessoas tão diferentes como eu e o Manuel se encontrem, se respeitem e mantenham valores comuns e que hão-de prevalecer.

Manel,  esta foi mais uma surpresa que me apanhou desprevenido. A tua discrição e sobriedade escondem talentos como a liderança, a gastronomia e agora a escrita. Espero que tenhas saúde e longa vida e fico expectante mas não desprevenido para outras surpresas.

Lisboa 13 de Novembro de 2022.
_________________ 

 Nota do editor LG:

(*) "O Vale dos Malmequeres", de Manuel Elvas. 

Sinopse: Tal como uma árvore sem raízes não vinga, assim uma causa sem líder é inútil. Os jovens dos anos sessenta e princípios dos anos setenta foram obrigados a suportar sacrifícios incomensuráveis numa guerra colonial que os viria a marcar para toda a vida. 

 A união que prevalecia entre eles quando regressaram à pátria, nunca surgiu com força capaz de fazer valer suas aspirações que não eram mais que o reconhecimento do martírio que haviam suportado. Faltou-lhes um líder.

 Alguém que unisse os elos da corrente tornando-a inconcussa. Alguém que abraçasse todos aqueles que numa desesperação aflitiva deixaram de acreditar na esperança, na vida. 

 Este livro não fala sobre a guerra, antes descreve como teria sido tudo diferente se esse líder tivesse surgido. O romance além de espelhar uma multiplicidade de sentimentos conduz-nos a um mundo de esperança ainda que cientes das desgraças que possam advir. 

 O sonho necessita de dois ingredientes essenciais: vontade e determinação.

 Fonte: ado Books ( com a devida vénia).

domingo, 5 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27287: Casos: a verdade sobre... (57): a emboscada de 1 de outubro de 1971, em Bangacia (Duas Fontes), Galomaro, Sector L5, ao tempo do BCAÇ 2912 (1970/72) (António Tavares / J. F. Santos Ribeiro / Vasco Joaquim / Paulo Santiago)

 



Foto nº 1 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Setor L5 > Galomaro > CCS/BCAÇ 2915 (1970/72)  > Rascunho, manuscrito, com a lista dos efetivos escalados para o patrulhamenmto noturno, em coluna auto, às tabancas em A/D (auto-defesa) de Bangacia (ou Duas Fontes).  A rúbrica no rascunho parece ser do comandante da CCS, cap inf Joaquim Rafael Ramos dos Santos. este manuscrito, ou fotocópia,  quase ilegível,  já tinha sido publicada no poste P10480 (*). Foi  agora recuperada e reeditada a imagem.

Segundo as ordens superiores, a coluna dessa  fatídica noite de 1/10/1971 seria constituída por 3 secções, duas da CCS/BCA 2912 e 1 da CCAÇ 2700 (Dulombi) (que tinha 1 Pelotão de reforço a Galomaro), mais  alguns milícias (Pel Mil 288) e, ao que parece, ainda alguns elementos  do Pel Caç Nat 53 (vd.  depoimento do Paulo Santiago, mais abaixo).  Considerando o visto (o OK) do comandante, fariam parte desta força, nesse dia, os seguintes militares: 
  • 2 furriéis (um, o Gomes, o outro, de  apelido é ilegível) (nenhum deles parece ser da CCAÇ 2700);
  • 3 atiradores;
  • 3 caçadores nativos (do Pel Caç Nat 53 ?)
  • 3 milícias (do Pel Mil 288 / CMil 30)
  • 3 sapadores
  • 1 mecânico auto
  • 2 condutores
  • 1  (ilegível) (maqueiro, cabo aux enf ? ou alguém do Pel Op Info Rec ?)
  • 1 transmissões
Sabemos, por comentário do ex-alf mil at inf Luís Dias CCAÇ 3491/BCAÇ 3872 (Dulombi e Galomaro, 1971/74), que este Gomes era o ex-fur mecânico, Mário Gomes, da CCS,  um dos sobreviventes da emboscada:

(...) "Lembro-me desse triste acontecimento, que teve lugar uns meses antes da nossa chegada à Guiné, para render o BCAÇ 2912. Alguns anos depois, um dos sobreviventes, o então furriel mecânico, Mário Gomes, que faz o favor de ser meu amigo, contou-me em pormenor o que havia sucedido.

De facto, o capitão da CCS não ficou lá muito bem na fotografia, como se costuma dizer, mas no inquérito realizado chegaram à conclusão que a sua fuga foi "uma retirada estratégica" (coisas de malta do quadro)" (...) (sexta-feira, 5 de outubro de 2012 às 23:57:10 WEST) (Comentário ao poste P10480) (*)



Foto nº 2 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Setor L5 > Galomaro > CCS/BCAÇ 2915 (1970/72)  >  O estado em ficou uma das duas viaturas, na sequência da emboscada sofrida, à noite pelas NT, em Bangacia (Duas Fontes). Tudo indica que os atacantes tiveram tempo para tudo: executar pelo menos um prisioneiro e um moribundo; levar 5 espingardas automáticas 3 G; roubar 2 relógios, revistar os bolsos dos mortos (donde recolheram mais de 300 pesos!), além de  destruirem as 2 viaturas... 

Esta barbaridade do Paulo Maló & Companhia tem de ficar escrita preto no branco... Na guerra não vale tudo, camaradas!... 

E o "Tchutchu" bem como o "Abel Djassi" também terão feito vista grossa a estas barbaridades: infelizmente acabaram os dois por serem vítimas dos Inocêncio Cani, Mamadu Indjai, Paulo Maló... 

O comunicado do "Tchutchu" é de um cinismo atroz: diz ao "chefe" que manda um prisioneiro, quando o desgraçado tinha sido executado, sem dó nem piedade, pelo Paulo Maló & Companhia.. (Não sabemos se foi ele o carrasco, mas cinco meses, na emboscada do Quirafo, ele já era comandante de bigrupo e usou os mesmos métodos contra os moribundos, e só deixou fazer um prisioneiro, porque era "tuga", o nosso saudoso amigo e camarada António Baptista, o " morto-vivo";  e em 2007 era coronel e quadro superior das Alfândegas).


Fotos (e legendas): © António Tavares (2012). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Foto nº 3 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Setor L5 > Galomaro > CCS/BCAÇ 2915 (1970/72)  >   Uma foto "dramática" da tabanca de Bangacia (ou Duas Fontes), em fim de tarde.




Foto nº 4 > Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Setor L5 > Galomaro > CCS/BCAÇ 2915 (1970/72)  >   Vista da porta de armas e demais instalações do quartel de Galomaro, que foi construído de raiz pelo BENG 447. Na foto há um "x" a sinalizar uma das casernas do pessoal, talvez a de transmissões.

Fotos (e legendas): © J. F. Santos Ribeiro  (2013). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O António Tavares (ex-fur mil SAM,  CCS/BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72), tem um emocionado, duro  e contundente  apontamento sobre esta tragédia, com data de 1 de outubro de 2012, que vamos recuperar, com vista à tentativa de apurar a "verdade dos factos", o que 54 anos depois é difícil, para mais não havendo possibilidades de recurso ao "contraditório" e à "triangulação de fontes": os quatro depoimentos que aqui publicamos não são de nenhuma das vítimas, sobreviventes  da emboscada, mas camaradas próximos).(**).

 Por outro lado, é bom lembrar umas das nossas regras de ouro: a guerra já foi há mais de meio século, estamos aqui para partilhar memórias (e afetos), não estamos aqui  para julgar (e muito menos criminalizar e punir) ninguém


Patrulhamento auto por todas as A/D da CCS/BCAÇ 2912 (Galomaro, 1970/72): o fatídico dia 1/10/1971

por António Tavares


O original deste “manuscrito”  (Foto nº 1) tem 41 anos.

Manuscrito que nada tem a ver com uma obra escrita à mão mas um assassinato... escrito à mão!

Manuscrito que traduz uma das ordens dadas (1970/72) nas matas do leste do CTIG. Poderes incompetentes! Poderes que receberam e foram ensinados, na Academia Militar, para praticá-los bem.

Manuscrito que levou ao encontro da morte cinco jovens emboscados em Duas Fontes (Bangacia) na noite de 1 de outubro de 1971.

Manuscrito que no Hospital Militar 241 (Bissau) originou mais três mortes dos quatro feridos graves evacuados na manhã de 2 de outubro.

Manuscrito igual a outros anteriores em que só mudavam os nomes.

Manuscritos que levaram diariamente militares (só praças e furriéis...) em patrulhamentos auto, noturnos, às tabancas em A/D da CCS (e que  no regresso traziam informações).

Recordo que certa noite numa das tabancas em A/D sentíamos e ouvíamos os rebentamentos e o Homem Grande da tabanca dizia-me:

−  Vai embora… vai embora!...

Chegados ao quartel confirmámos que tinha havido um ataque na ZA de Nova Lamego.

Manuscrito escrito antes ou depois de ter havido informações de que havia indícios de que o IN andava na zona de acção das nossas tropas nesse dia 1 de outubro de 1971. Movimentação de indígenas (população e milícia) foram vistos dentro do quartel antes da partida da coluna auto.

Coluna auto pronta a partir (às 20h00) e retardada para integração do capitão. Elemento que foi o último a subir para um dos Unimog
 mas o primeiro a chegar ao quartel depois de ter ouvido o tiro do IN,  sinal de que as NT estavam debaixo da área de fogo do PAIGC. Estes, bem posicionados,  só tiveram de aguardar as viaturas e fazer fogo, felizmente atabalhoado,  contra  as NT. Caso contrário o número de mortos teria sido  maior.

O oficial, a chorar e desarmado, chega ao quartel com a justificação de que vinha pedir auxílio. Entretanto, no local,  os guerrilheiros do PAIGC matavam, feriam e tentavam levar um prisioneiro. Prisioneiro que foi arrastado e,  uns metros à frente morto, à queima-roupa, e encostado a um poilão. Sentado com as pernas e braços cruzados e uma bala na boca, a fazer de cigarro,  assim o encontraram.

Tudo testemunhado e narrado por quem viu nas Duas Fontes (Bangacia) e confirmado no quartel pelos camaradas que trataram dos corpos.

Manuscrito que marcou tragicamente a família do BCaç 2912 e a história da Guerra Colonial.

Manuscrito inserido na página 39 do Livro "Guineídas - Memórias de uma Comissão – BCaç 2912 CCS – X Encontro - Tavira”.

Os corpos de:

  • Alfredo Tomás LARANJINHA,
  • José Peralta OLIVEIRA,
  • Leonel José Conceição BARRETO,
  • José Guedes MONTEIRO e
  • Rogério António SOARES

depois de recolhidos em Duas Fontes/Bangacia e arranjados em Galomaro,  seguiram (em coluna auto) para Bambadinca e acompanhados, por um camarada da CCS,  até Bissau onde embarcaram no T/T “Carvalho de Araújo” até Lisboa. O mesmo T/T “Carvalho Araújo” que os havia transportado há dezassete meses e uns dias ao chão do Teatro de Operações da Guiné

Foram sepultados nas suas terras. Paz às suas almas!

António Tavares
Foz do Douro, 01 Outubro 2012

 
2. Excerto do depoimento do nosso camarada José Fernando dos Santos Ribeiro (ou J. F. Santos Ribeiro, como consta da lista da Tabanca Grande),  ex-1º cabo trms, CCS / BCAÇ 2912 (Galomaro, 1970/72), aquando da sua apresentação à Tabanca Grande 


Emboscada em Bangacia (Duas Fontes)

por  J. F. Santos Ribeiro




Era o fim da tarde, preparava-se um Grupo (de Combate) para partir, para um emboscada, a realizar na picada entre Galomaro e Dulombi.

Mais precisamente no aldeamento de Bangacia (Duas Fontes). Aldeamento que tinha como população feminina, as mulheres de pele negra (fulas) mais lindas que eu alguma vez vi. Tinham feições de brancas... mas bonitas!


Nesse dia, além do grupo destacado por escala (dos sapadores, onde alinhava o "Vermelhinho", nosso camarada, de Matosinhos, que tinha essa alcunha pela cor da sua tez, devido às "bazucas", whisky e vinho que ingeria), foram também por castigo o Laranjinha e mais outro camarada (do qual não me lembra o nome).

Como já tinha acabado o meu serviço nas Transmissões e o jantar no refeitório, encaminhava-me para a cantina, juntamente com outros companheiro... quando ao longe começamos a ver "balas tracejantes" a rasgar o céu.

Antevimos, de imediato, a desgraça que estava a acontecer para os lados das Duas-Fontes.. Ficámos em estado de alerta. Passados, sei lá, duas horas ou mais... começaram a chegar ao aquartelamento, a chorar, os companheiros que haviam saído sem serem feridos ou mortos, na emboscada em que o Pelotão havia caído...

Primeiro o "Vermelhinho" e outros... mais adiante o capitão da CCS, todos sem arma e o pânico espelhado no rosto.

Formou-se, rapidamente, um pelotão de homens que avançaram (sujeitos a serem de novo emboscados) até ao sítio onde se desenrolou o combate, encontrando deitados no chão, entre outros, o Oliveira das Transmissões e o Laranjinha da "ferrugem"... com a boca cheia de cartuchos da "costureirinha" e trespassados à bala.

Pelas suas posições, verificou-se que tinham sido feridos e, posteriormente, deitados no chão onde, cobarde e selvaticamente, foram mortos a tiro!

Durante os primeiros seis a sete meses de comissão, em Galomaro, foram "umas férias", o que deu origem a "facilitanços"... O ior deles foi o Grupo passar a levar as armas metidas debaixo do banco do Unimog e, assim, foram apanhados de surpresa na emboscada. (...)

 
 


Guiné > Zona Leste >  Região de Bafatá > Carta de Duas Fontes ( 1959) / Escala 1/50 mil : Posição relativa de Galomaro, Duas Fontes (Bangacia), Cansamba... Bafatá ficava a norte, Dulombi  a sudeste.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)



3. Outros depoimentos (c0mentários ao poste P2529) (**):

(i) Timóteo Santos (ex-fur mil, CCAÇ 2700, Dulombi, 1970/72) 

Sobre a referida emboscada ao patrulhamento de corpo bom "giria que se dizia na altura", depois do cap.Jaoquim Rafael Ramos Santos ter fugido e deixar os feridos espalhados pelo chão o IN veio ao saque juntou os corpos uns aos outros e fez a matança a sangue frio. 

O prisioneiro que dizem ter feito foi executado a sangue frio antes da tabanca. Que esperavam de um comandante de batalhão caduco, um major de operações alcólico e um 2º comandante que só via cabelos grandes. Nunca gostei de criminosos de guerra. Aos historiadores estarei sempre pronto a dar o meu contributo. Timoteo Santos ex.Fur.mil 2700 70/70.


(...) Informo que a fotografia das urnas que estão referidas como pertencentes a esta emboscada, não está correta a legenda: as mesmas referem-se aos mortos que a CCAÇ 2700 teve com uma mina que destruiu uma viatura a caminho de Jifim numa operação.

Timoteo Santos

timoteomemoria@gmail.com

sábado, 19 de fevereiro de 2011 às 01:50:00 WET
 

Vasco Joaquim

(ii) Vasco Joaquim, ex-1º cabo escriturário, CCS/BCAÇ 2912 (Galomaro, 1970/72)

(...) Era habitual nas patrulhas noturnas  sairmos de noite para o mato em viaturas com faróis acesos. Certamente era para dar a entender ao IN onde nos encontrávamos. Foi isso que aconteceu na noite de 1/10/1971. 

Os sobreviventes estiveram por sua conta e risco e foram aparecendo no aquartelamento a conta-gotas. Como diz o Timóteo, em comentário anterior, não tinhamos comando. Eu, na altura 1º cabo escriturário,  e todos os outros e não só, fazíamos essas patrulhas noturnas. 

O nosso comandante só depois de sofrermos os mortos aos 17 meses de comissão,  requereu forças militares especiais (companhia de paraquedistas) para a zona.

Sei que estes mortos que tivemos, CCS/BCAÇ 2912 e  e CCaç 2700,  poderiam ter sido evitados se tivéssemos tido
 comandantes que tivessem responsabilidade de comando.

Entre as tropas da CCS houve mesmo,  na época, recusa de avançar para o mato como antes se fazia.

O governador e comandante-chefe António Spinola chegou mesmo a ir a Galomaro por motivos que se englobavam com as tropas estacionadas.

O BCaç 2912 e companhias operacionais 2699. 2700 e 2701, junto com a CCS,  sabem bem o que sofremos  e o desprezo a que estávamos votados, numa zona de guerra onde o PAIGC tudo fazia para mostrar a sua supremacia. (...)

domingo, 14 de agosto de 2016 às 23:41:00 WEST  


PS - Por esquecimento deixei de dizer que foi vivido por mim, na altura 1º cabo escriturário, Vasco de Jesus Joaquim, e que fui incumbido te transcrever as mensagens dos mortos na emboscada, afim de que a noticia fosse transmitida às famílias através do Serviço de Transmissões.

domingo, 14 de agosto de 2016 às 23:41:00 WEST 



Paulo Santiago


(iii) Paulo Santiago (ex-alf mil, cmdt, Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72)


(...) Não foi emboscada a uma coluna, tratava-se de um patrulhamento... E agora reparem nas horas,20.30: fazer um patrulhamento noturno, montado em viaturas, deu em tragédia,

Culpados? Octávio Pimentel, comandante do BCAÇ 2912 (Galomaro) que mandou executar,e o cap Santos, comandante da CCS, que executou sem normas de segurança, acabando por abandonar os mortos e os feridos, e regressar a pé ao quartel,com a desculpa de vir em busca de ajuda.

Não estive lá, mas estava uma secção do Pel Caç Nat 53, comandada pelo fur mil Martins, e o sold Iero Seide foi ferido 
com alguma gravidade, sendo evacuado para o HM 241.Também
o 1º cabo Mamadú Sanhá foi ferido ligeiramente


(Revisão / fixação de texto: CV/LG)
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(...) Em 1970/72 estive em Galomaro, dentro e fora do arame farpado tendo viajado por Bafatá, Bambadinca, Nova Lamego, Saltinho e muitas tabancas.

Tive sorte de nunca ter dado um tiro apesar de ter estado sob fogo e tido muitos sustos!

Amiga G3, saíste da minha mão virgem e limpa conforme te recebi e com toda a certeza que me agradeceste o descanso que te dei durante 23 meses embora muitas vezes estivesses engatilhada para me ajudar!

Amiga G3, foi desumano o transporte para Bambadinca dos nossos amigos defuntos caídos na emboscada da noite de 01-10-1971... e no regresso trazer 6 urnas para reserva... 

Amiga G3, vamos pertencer a uma Tabanca Grande, diferente das outras onde estiveste mas é bom recordar a História e Estórias dos ex-combatentes.(...)