terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1342: Poema: os meninos da Ilha de Luanda (... pensando nos meninos de Bolama, de Chamarra, de Mansambo ou de Saré Ganá) (Luís Graça)

Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Sare Gana > 1968 > CART 2339 (Fá e Mansambo 1968/69) > Crianças disputando os restos da comida das NT...


Foto: © Carlos Marques dos Santos (2006). Direitos reservados.

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Chamarra > Novembro de 2000 > Meninos da tabanca...

Foto: © Albano Costa (2006). Direitos reservados.



Angola > Luanda > Setembro de 2004 > Algures no centro da cidade (Av Nkrumah, se a memória me não falha), um velho mural do MPLA, já descolorido, e onde curiosamente o pintor se esqueceu das crianças...


Foto: © Luís Graça (2004). Direitos reservados.



Angola > Luanda > Ilha de Luanda > Setembro de 2004 > Uma das praias, não vigiadas, por onde os putos ainda têm liberdade de circulação... Foto tirada do Restaurante Coconuts onde só entra quem tem dólares, independentemente da cor da pele... O dinheiro, em toda parte, fazendo a segregação socioespacial...

Foto: © Luís Graça (2004). Direitos reservados.


1. Mensagem do editor do blogue, a pensar nos meninos da Mansambo do Torcato Mendonça, da Bolama do Leopoldo Amado ou da Saré Ganá do A. Marques Lopes, do Carlos Marques dos Santos ou do Henriques, ou ainda da Chamarra do Zé Teixeira e do Albano Costa (que por lá passou em Novembro de 2000) (1)... 


A pensar também no menino Jesus que nasceu em Belém, na Palestina, há 2006 anos, muito longe de África, longe de Angola ou da Guiné-Bissau...A pensar no país que não se escolhe quando se nasce...A pensar no tempo e no lugar que nos coube em sorte... Temos a obrigação de os tornar melhores. Um Inverno Saudável, amigos e camaradas. L.G.


os meninos da ilha de luanda


os meninos da ilha de luanda
são filhos de pescadores
são filhos de náufragos
são filhos da deriva dos continentes
são filhos bastardos da guerra e da paz
são filhos dos sonhos do dia e dos pesadelos da noite
são crisálidas
são puras formas de ser
são filhos dos homens
que nunca foram meninos

pergunto-me
como é que eles poderão um dia
chegar a ser homens

luís graça

(poema inédito, ilha de luanda, setembro de 2004)


___________

Nota de L.G.:



(1) Vd. posts de:
5 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1340: Blogoterapia (10): o meu segundo país (Torcato Mendonça)

30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1328: Blogoterapia (8): É hora de pensar no nosso primeiro... blook (Leopoldo Amado)

18 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLVIII: Bajudas, nem vê-las! (Carlos Marques dos Santos)

19 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXI: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969

30 de maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu (Luís Graça)

28 de maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXIX: Um ataque a Sare Ganá (1968) (A. Marques Lopes)

Guiné 63/74 - P1341: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (23): Alah Mariu Mansô (Deus é todo poderoso, em mandinga)


Capa de Uma abelha na chuva, de Carlos de Oliveira, 3ª ed. ervista. Lisboa: Portugália Editora. 1963. (Contemporâena, 46). Capa de João da Câmara Leme.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.

Guiné > Bissau > Outubro de 1969 > "A uma mes de café, junto das docas de Bissau. Barbosa, o herói das emboscadas, o condutopr Areal, o bom amigo Teixeira. Momentos de garto convívio de gente que partilhava com ressignação os mesmos sacrifícios. A ver se tomamos uma bica nesta mesma mesa daqui a 2 meses" (Beja Santos, que aparece na foto, em primeiro plano, do lado direito. O Barbosa faz-se acompanhar da sua inseparável boina...verde).

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados

Texto recebido em 8 de Novembro de 2006.


Caro Luís, conforme prometido, aqui vai mais uma contribuição semanal. Estou a escrever sobre Novembro de 1968. Começou o derramamento de sangue no Cuor. Mas há peripécias fartas, muito barro do quotidiano e começo a ter o pelotão fisicamente esgotado. Não me peças sugestões para ilustrações, pois não tenho mais nada a não ser a capa do livro Uma Abelha na Chuva que hoje vai seguir pelo correio. Contudo, faço referência a uma fotografia que está em teu poder, com o furriel Ferreira, o Adão enfermeiro e o Barbosa da boina verde, entre outros. Tudo farei para nos encontrarmos no princípio de Dezembro e festejarmos precocemente o Natal (um bom Natal festeja-se todos os dias). A minha prenda será o meu livro Este consumo que nos consome que entretanto já estará editado (Porto, Campo das Letras, 2006) (1).

Nada mais por hoje e recebe um grande abraço do Mário.

Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, o Tigre de Missirá - como era conhecido entre os as chefias militares e os seus camaradas de Bambadinca-, ex-comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2).


Alah Mariu Mansô (Deus é todo poderoso, em mandinga)

por Beja Santos

À saída de Finete, onde vim depois de patrulhamento de Mato de Cão acompanhar as obras em dois abrigos, sou apresentado a Braima Mané. É um homem sorridente que me vem oferecer pepinos e ovos, nos trinta anos, de bigodinho bem aparado e, reparo, um braço tolhido. Bacari Soncó dá-me explicações. Braima foi uma das grandes vítimas do ataque a Missirá, em Maio de 1966, uma infelicidade monumental aconteceu-lhe: uma granada de morteiro destrui-lhe a morança e matou-lhe duas mulheres e dois filhos. A desgraça não ficou por aqui, pois Braima enquanto procurava salvar a família foi atingido no peito com estilhaços e um outro maior rasgou-lhe os nervos da mão e do braço, agora em irremediável imobilidade. Braima, que estava nas milícias, foi dado como incapaz para servir nas fileiras, e preferiu viver em Finete.

Combinámos que ele vai ser visto por David Payne, o novo médico de Bambadinca. E, na semana seguinte, ele irá a uma consulta a Bissau, e um dia ele regressará ao Cuor mostrando como os seus braços mexem e estão igualmente ágeis.

Cherno Suane, o novo guarda-costa do nosso alfero

Ieró, o meu precioso guarda costas, parte de férias e sugere substituto, Cherno Suane. Mal sei eu que vai nascer a mais gratíssima das amizades. Até agora, Cherno era o herói do morteiro 60, na noite de 6 de Setembro [de 1968]. A partir de amanhã será ele que me vai arrumar a morança com absoluto desvelo, lavar as botas de lona, engraxar as de cabedal, sacudir as esteiras e o folhelho do meu colchão, arrumar os livros, dobrar a roupa, remover as teias de aranha e sacudir a mosquitada.

Falamos do mesmo Cherno que, a 15 de Março próximo, se quer atirar para dentro de casa para salvar as coisas de alfero (felizmente, foi impedido de se imolar nas chamas e nos rebentamentos subsequentes), se vai salvar milagrosamente na mina anticarro de Canturé, que me acompanhará em todas as operações, ombro a ombro. Este mesmo Cherno, não caberá nesta história, conhecerá o inferno com a independência e virá comigo para Portugal em 1991. É hoje cidadão português, passa temporadas na Guiné e trabalha como a segurança num armazém de electrodomésticos no Bairro Angola, em Camarate.

Casanova e o pequeno Braima, uma história de amor

Quero falar de uma outra história de amor e que envolve outro Braima. Este é raquítico e filho de Galem e Mariá. O furriel Casanova tomou a iniciativa de o alimentar. Um dia fomos a Bambadinca, a pretexto de termos de ir a Bafatá buscar os vencimentos dos caçadores nativos e dos milícias, o Casanova foi a uma farmácia comprar um biberão e uma lata de Nestogeno. Não vai ser invulgar o Casanova olhar para o relógio, chamar um miúdo que passa pela parada e dizer-lhe:
- Vai ali a casa da Mariá e dizer-lhe que são horas de o Braima comer. Serão meses de idílio, o Braima ganhará peso, ninguém se atreverá a brincar com os sentimentos do Casanova.


Tenho o pelotão exausto, muita gente doente, faço o possível para manter os patrulhamentos, pedi mesmo ajuda aos milícias de Finete, a escola funciona bem, com a intervenção do professor que fui buscar a Bambadincazinho mas também com o Ferreira, o Casanova e o Zé Pereira.

Sempre que posso, a meio da tarde, convido o Malã e Lansanâ para tomarmos chá. Lânsana mostra-me as suas poesias religiosas que ele desenha em árabe em tábuas de pau sangue e vai-me dando explicações:
- Esta oração quer dizer Deus abençoe a bianda (refeição); aqui está escrito alarramano melafo (obrigado Deus pelas boas chuvas que nos dão a comida deste dia) - . Mas quanto perguntei ao Abudu Soncó o verdadeiro significado desta expressão, ele disse-me que esta frase não existe... mas como a registei, peço a todos que aceitem com o mesmo sentido como me pareceu ter interpretado).

Escrevo para Lisboa a pedir a todos que mandem pelos oficiais, sargentos e praças que foram de férias comida natalícia, o que vai acontecer e será um bálsamo no nosso Natal desolador.

Aumentámos as medidas de prevenção pois a guerrilha tem-se intensificado e há flagelações por toda a parte. Amanhã, a mulher grande de Missirá, Jaira, a octogenária mãe de Quebá Soncó, vai à consulta e peço ao David Payne para ver o que se pode fazer do seu corpo esquelético. Em sua companhia seguirá Sari, a mulher de Bacari Soncó, hoje régulo do Cuor. Sari está grávida de três meses e sofre de paludismo.

A morte, emboscada, em Chicri


Acaba de chegar o Teixeira com uma mensagem que diz "Cavalgue Berlim", o que significa "Pelo meio dia amanhã esteja em Mato de Cão". Informo os furriéis que, depois de pôr os doentes em Finete, sigo para Mato de Cão e depois vou fazer uma emboscada nocturna em Chicri. Saio de Mato de Cão pela uma da tarde, comemos o nosso farnel e seguimos para Chicri. Está um céu de chumbo, tem chovido muito, percorremos a velha tabanca à procura de indícios de passagem recente da gente de Madina/Belel.

À saída da tabanca, perto de uma estrutura rochosa, encontra-se um caminho bem pronunciado com marcas de pés calçados e recente. Anoitece e organizo com Bacari Soncó e Fodé Dahaba uma emboscada em meia lua, uma bazuca e um morteiro nos extremos, a meio eu, dois apontadores de dilagrama e de pé um vigia, para poder avistar uma eventual chegada a partir de Gambaná do grupo rebelde, e assim termos tempo de inverter o grupo emboscado.

É uma noite sem lua, não há o piar das aves, ao fundo o bruxulear das luzes do porto de Bambadinca. Depois de instalado o grupo, com auxílio do Domingos Silva explico aos 20 e tal homens (e Domingos precisa tudo em crioulo) que a ordem de atirar partirá de mim, que o primeiro fogo será de Mamadu Djau, o nosso bazuqueiro, que a retirada será igualmente decidida por mim e que o itinerário a seguir passará por Gambaná, Canturé e Missirá, ninguém poderá ficar para trás, de meia em meia hora far-se-à uma paragem e a verificação dos presentes.

Todos a postos, o silêncio adensa-se, e pelas 7:30 da tarde Mamadu Camará avisa-me ao ouvido: - Está gente a aproximar-se, vejo sombras a sair da mata -. E de facto, um grupo de mais de uma dezena de pessoas avança de uma forma despreocupada (ou fui eu que pensei que a coluna rebelde não vinha com muita precaução).

Quando estão a cerca de 20 metros de nós, exactamente no trilho onde estava ajoelhado, levanto-me sem ruído e grito:
- Fogo, muito fogo! - E o fogo foi atordoador, logo com a bazuca, o morteiro e os dilagramas que alvejam quem ainda vem dentro da mata, aterrorizando, desbaratando, impedindo qualquer reacção. E assim como o fogo teve uma cadência infernal, assim se silenciou quando decretei a retirada.

A boina verde do Barbosa

Lestos, correndo pela picada, alcançámos a estrada de Mato de Cão, aqui fez-se a contagem dos homens, o grupo estava coeso e arfante. Em passada rápida rumámos para Canturé, por dentro do mato, por sinal usando um trilho alternativo quando íamos para Mato de Cão. É aqui que se vai passar um episódio insólito. O Barbosa (que consta de uma fotografia ao lado do Quim motorista, do furriel Ferreira e do Adão enfermeiro), chega ao pé de mim e diz-me com voz trémula e quase ciciando:
- Meu alferes, perdi a minha boina verde em Chicri, não sei viver sem ela, vou voltar para a recuperar.

Seguiram-se alguns minutos amalucados em que eu procurava lembrar ao Barbosa que ele não podia comprometer mais de 20 vidas por causa de uma boina. Na noite escura, ele abanava a cabeça e insistia que não saía dali:
- Ou volto convosco ou vou lá sozinho!

Debalde os camaradas insistiam na insignificância da boina. A conversa arrastava-se num círculo delirante e tive que jogar o mais mirabolante dos acordos possíveis:
- Barbosa, nós vamos regressar todos a Missirá, e garanto-te sob palavra de honra que amanhã eu e os mesmos homens que aqui estão viremos contigo buscar a boina.

E assim foi. Só numa guerra daquelas é que era possível fazer um contrato de mais 25 km de perigos para ir procurar um objecto fetiche. Nessa noite converso com Lânsana e peço-lhe que reze por nós. O que ele respondeu eu não percebi, mas o Cherno explicou-me:
- O que o Marabu acaba de dizer é que Deus é grande. Ele vai rezar para que nada nos aconteça.

E de facto, nada aconteceu. A aproximação de Chicri foi penosa, à procura de qualquer sinal onde encontrássemos uma cilada à nossa espera. O terror que infringimos fora poderoso. Dois cadáveres jaziam a céu aberto. Foram enterrados mesmo com o ar contrafeito de tropa. A boina apareceu no local onde tínhamos estado emboscados e regressámos sem beliscadura.

Uma abelha na chuva.. em Missirá

Continua a chover a cântaros, andamos enlameados e procuro estar atento ao sofrimento físico dos militares. O Ramadão caminha para o auge e fui convidado para a cerimónia da mesquita. O irmão de Braima Mané, um alfaiate exímio, está a fazer-me uma sabadora com um belo bordado em azul e fio dourado. Irei usá-la (aliás, como todo o traje de cerimónia) nesse dia e tirarei uma fotografia ao lado de Malã e o seu séquito.

É muito importante que vos fale das minhas leituras, nesse momento. A razão é muito simples: acabei de ler um dos livros mais influentes da minha vida, Uma abelha na chuva, do Carlos de Oliveira.

Este escritor neo-realista era um operário da escrita. A minha mãe tinha a primeira edição desta obra, li as outras duas edições seguintes, tudo diferente, o estilo cada vez mais castigado, as imagens mais ricas, o ritmo avassalador. A abelha é uma história de timbre ultra-romântico e talvez o mais significativo romance com história rural até aos anos 60, em contexto modernista. É uma escrita que vai directa ao fim, mostrando a decadência de uma fidalguia provinciana obrigada a alianças de conveniência com os negociantes. Maria dos Prazeres é figura dessa fidalguia obrigada a suportar um marido cobarde, Álvaro Silvestre. A trama inclui uma paixão destruída pelo vingativo Álvaro Silvestre que, cavilosamente, desperta o ódio do pai de Clara que vai matar Jacinto numa das cenas mais empolgantes do romance (2).

Eu leio e releio a obra de Carlos de Oliveira nessas noites de Missirá, é o prazer da escrita é o saber pelos ambientes de fatalidade, é o saber que aquele mundo ainda existe mas que está em vias de extinção. Um dia de província asfixiante que arrasta todos os sonhos e projectos. E assim termina a obra:

"A abelha abriu as asas, atirou-se ao voo e foi apanhada pela chuva. Sofreu de tudo: os fios do aguaceiro a enredá-la; golpes de vento a ferirem-lhe o voo; sacolojões, vergastadas, impulsos. Deu com as asas em terra e a chuva espezinhou-a. Arrastou-se no saibro, debateu-se ainda, mas a voragem acabou por levá-la com as folhas mortas".

A ironia do destino é que a Cristina me mandou outra obra prima que a partir de agora vai andar sempre comigo, como se de uma nova pele se tratasse: O Delfim, do José Cardoso Pires, publicado neste ano. Leio e degusto. Finalizo um capítulo e recomeço como se a emoção cheia fosse segura por uma cabeça vazia.

É uma história marialva passada na Lagoa que faz parte da Gafeira. Lá longe há um oceano, há dunas e até um mouchão, a vila estará a mais de 100 km de Lisboa. Personagens principais: o Engenheiro, Maria das Mercês, o narrador disfarçado de caçador e o maneta, uma espécie de escudeiro desse marialva que dá pelo nome de Tomás da Palma Bravo. O Delfim é a agonia de uma ruralidade mesclada pelas incursões de uma industrialização e de um ciclo de progresso que está a asfixiar a velha ordem personificada por esse engenheiro culto, tradicionalista e amigo da sua gente que teme e repudia os novos valores que começam a chegar à Gafeira.

Não será a última vez que iremos falar aqui desta obra prima. Só depois, já em Lisboa, me vou render à escrita de Nuno Bragança e Maria Velho da Costa. Com os anos 80, irei admirar Saramago e Lobo Antunes. Mas naquela Guiné este livrinho que ainda hoje guardo apodrecido por tantas andanças e sacolejos foi bálsamo e revelação definitiva do mundo que vai morrer em 25 de Abril de 74.

Daqui até Dezembro iremos viver outras atribulações. Aproxima-se o Natal e eu vou viver o presépio de Chicri. Não sei se terei a coragem de contar.

_________

Notas de L.G.:

(1) Nota da editor, Campo das Letras, Porto:

"Este consumo que nos consome / Mário Beja Santos [ver biografia]

"O mais recente livro do professor universitário Mário Beja Santos, pioneiro da defesa dos direitos do consumidor em Portugal, Assessor Principal do Instituto do Consumidor, editor do Jornal dos Consumidores e fundador da Plataforma Saúde em Diálogo. Este livro não é um ensaio nem um manual prático dos direitos dos consumidores. Trata-se de um compêndio de diferentes olhares em torno das realidades do consumo no mundo actual. O funcionamento da sociedade de consumo mudou radicalmente, e é preciso dizer como, onde e em quê. O principal desafio a que me propus foi oferecer a todos os interessados pelo consumo uma explicação abrangente e não alinhada acerca das transformações a que este fenómeno aparece associado no nosso tempo (Beja Santos).

(2) Vd. último post desta série > 30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

(...) "Dou comigo a pensar que estamos a entrar num dos períodos mais duros, com os patrulhamentos a Chicri. No primeiro, morrerão civis, ao cair da noite. No segundo, irá acontecer o Presépio de Chicri, o meu maior sofrimento que não desejo a ninguém. Disse-me o Queta que toda a gente sabia que os de Madina/Belel cambavam o Geba junto de Malandim, e iam até Nhabijão Bulobate e Nhabijão Imbume e Bedinca. Com um ar muito sereno disse-me o Queta:-Tinham uma canoa enterrada na lama. Trocavam comida e obtinham informações sobre o que se passava em Bambadinca. Nosso alfero tirou-lhes o sossego" (...).

(3) Extractos de Uma abelha na chuva, de Carlosd e Oliveira, 3ª ed. rev. Lisboa, Portug´+alia Editora, 1963, pp. 136-139:


Saíram-lhe no rasto, cautelosos como dois ladrões. E foram acoitar-se entre o arvoredo, ao pé da fonte.
- Quem é que está com ela ? – quis saber o velho.
- Nãos e vê quase nada, mas penso que é o ruivo.
- O cocheiro do Silvestre ?
- parece-me que sim.
- Parece-te ou é mesmo ?
Marcelo firmopu a vista no crepúsculo:
- É ele.
O cego puxou-lhe pela manga:
- Toca para a azinhaga.
- Fazer o quê, mestre António ?
- Há-de por lá passar o cão no regresso da fonte.
A chuva engrossava pouco a pouco. Ao longe, o céu abriu-se ao fogo dum relâmpago.
- Aí vem a trovoada, mestre. Sente-a?
- Não.
Rodearam a fonte e, cortando pelas terras de cultivo, caíram na azinhaga.
- Já é noite cerrada ?
- Quase.
Estiveram em silêncio algum tempo, abrigados nas moitas. E depois, Marcelo perguntou, um pouco receoso:
- Que vamos nós fazer ao ruivo?
O velho perdeu a paciência:
- Estás a roer a corda, malandro? Queres ou não queres a rapariga?
E Marcelo calou-se. A chuva, cada vez mais pesada, ia ajoujando os sillvedos. O vento crescia e arrastou da distância o marulho dum trovão maior.
- Ouviu agora, mestre ?
Mas o cego deu-lhe uma cotovelada rápida:
- Cala-te, ladrão. O que eu oiço são passos.
Ficaram alerta, de respiração suspensa. O velho ciciou:
- Vai agarrando no cacete, Marcelo.
O vulto surgia ao topo da azinhaga. Uma sombra móvel entre montões de espinheiros derreados de água. Cantarolava. Reconheceram-lhe a voz e mestre António segredou ao moço:
- Arreia-lhe a matar.
Uma sombra quase indistinta não é bem um homem. Falta-lhe a luz dos olhos, o sorriso, as feições, a alma à flor da pele. É uma coisa anónima e sem rosto, mesmo quando tem voz e passa a cantar pelas azinhagas. Custa menos a ferir que um homem verdadeiro, à luz do dia.
A cajadada de Marcelo apanhou Jacinto pela cabeça:
-Ai!
Abriu os braços e foi de escantilhão aninhar-se no lamaçal da estrada. Chape. Inerte como um pedregulho.
Mestre António ordenou:
- Temos de o deixar escondido no silvado e dar um pulo a casa, não vá a rapariga suspeitar da ausência. Come-se o caldo e, mal ela disser as boas-noites, saltamos ao palheiro. Traz-se o jumento, como quem não quer a coisa, põe-se-lhe o corpo em cima e ala para o mar. As águas lá se encarregam de lhe dar sumiço.

E assim fizeram.

Guiné 63/74 - P1340: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (2) : o meu segundo país

Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Mansambo > Novembro de 2000 (1) > Crianças de Mansambo, à beira da nova estrada... alcatroada. Tal como há 30 e tal anos: a única diferença é que não havia estrada... alcatroada.

No meu tempo (1969/71) e no tempo do Torcato Mendonça (1968/70) não havia população de Mansambo. Apenas existiam, a viver dentro do arame farpado, meia dúzia de famílias, as dos guias e picadores que trabalhavam para as NT... Estes e restos da malta da destroçada CCAÇ 12 ficaram por lá, depois da independência... (LG)


Foto: © Albano Costa (2006). Direitos reservados.

Mensagem do Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69). Na série Blogoterapia publicam-se textos sobre a nossa tertúlia e o nosso blogue, apresentam-sos novos amigos e camaradas da Guiné. Tem um registo mais intimista. O termo foi usado por mim em Junho de 2005 para dar um título a um post do Torcato Mendonça em que ele terminava nestes termos: "Desculpa este desabafo. Estou mais calmo. Será isto uma terapia?" (2).

Caro Leopoldo Amado:

Quebro uma regra ao responder directamente a um post. Abri o blogue e leio as aventuras de Missirá (3). Continuo e aparece-me outro post. É-me, em parte, dirigido. Mais, pede-me para eu escrever sobre a minha passagem pela Guiné (4). Engano? Os meus escritos são simples, despretensiosos, mas sentidos e procurando relatar a minha guerra. Partindo do princípio que não houve engano, digo-te:

Procurei esquecer aqueles tempos, aquela terra, aquelas gentes. Foi impossível. Felizmente, tenho hoje o Blogue do Luís Graça e Camaradas da Guiné. É o meu segundo País, eu que sou um pouco de vários sítios. Não fui santo nem diabo. Comandei Homens, meus irmãos de armas, europeus ou africanos. Para mim só há uma espécie – A Humana.

Escrevo quando me dá na bolha e ao correr da pena ou tecla. De quando em vez, mando algo ao Luís Graça. Por vezes penso que mando e aí fica.

Falas em miúdos (4). Gostava muito deles, o riso nas escolas que inventávamos, a ginástica e o banho com Life Boy ? – um sabonete - , o rancho partilhado… e a beleza dos bebés… Os Futa-Fulas …lindos…

Passou, meu caro e nem tudo foi mau. A nostalgia, a lentidão no bater da tecla e, por que não, um apertozito e uma humidade no olho…

Caro Luís, perdoa o quebrar da regra. Coisas de velho militar duro que o tempo amoleceu… Ainda bem…

Caro Leopoldo, conta a História dos nossos Povos… Gosto de história e, se não a conhecermos, não sabemos quem somos!

Um abraço,

Torcato Mendonça
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 5 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIII: Mansambo revisitado (Novembro de 2000) (Albano Costa)

(2) Vd. post de 1 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1331: Blogoterapia (9): Quando a Pátria não é Mátria para ti (João Bonifácio, Canadá, antigo vagomestre da CCAÇ 2402)

(3) Vd. post de 30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

(4) Vd. posts de:

30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1328: Blogoterapia (8): É hora de pensar no nosso primeiro... blook (Leopoldo Amado)

25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P907: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (1): A nossa blogoterapia

segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1339: Queta Baldé: um exemplo da solidariedade entre comandos (A. Mendes, 38ª CCmds)

Amadora > Regimento de Comandos > 1977 > Cópia do cartão do 1º Cabo Comando A. Mendes, assinado pelo Coronel Jaime Neves.

Foto: © Amilcar Mendes (2006). Direitos reservdaos.


Mensagem do Amilcar Mendes (ex-1º cabo, 38ª Companhia de Comandos, Guiné, Brá, 1972/74) (1):


Sem pretender ser um gajo chato e depois de ler o que escreveu o Beja Santos (2), gostaria de tecer algumas considerações, se mo permitirem, sobre o que li :

(i) Conheço o Queta Baldé, da 2ª Companhia de Comandos Africanos, com quem trabalhei na Guiné: pergunte-se-lhe se ele se lembra de Kadike-Yalá no Cantanhês, no Natal de 73...

(ii) Além disso, convivi com ele, aqui em Lisboa.

Sabe, amigo Beja Santos, que tal como o Queta vieram para Portugal dezenas de ex-comandos africanos e foi a Associação de Comandos (3) quem lhes conseguiu o visto para virem através do Senegal.

Foi a dita associação quem lhes arranjou as casas em Chelas que o amigo chama de "uma autêntica alfurja"... Foi a dita associação quem lhes arranjou os primeiros empregos onde alguns ainda hoje se mantêm (por ex., cemitério do Alto de São João, castelo de São Jorge, seguranças privadas etc.) ...

Quando eles chegaram a Portugal, muitos ficaram a dormir durantes meses na Associação de Comandos e também a comer...

É que nós, os ex-comandos, sempre tratámos os comandos africano, não como africanos mas como comandos... O Beja Santos pode perguntar ao Queta se o que eu escrevo faz sentido.
Se ele mostra um semblante marcado pelo sofrimento, é natural, pois o que os ex-comandos naturais da Guiné passaram, marca qualquer um, mas nós aqui à distância sempre nos preocupámos com eles.

Fui testemunha de muitos aqui, em Lisboa, para elaborar os processos de ferimentos em combate para atribuição de pensões e trabalhei com muitos aqui em Lisboa em missões de segurança .

Muito do que ficou por fazer deveria ser o Estado Português a fazê-lo. Desculpe, amigo Beja Santos, se estou a ser injusto, mas penso que o Queta não lhe contou tudo.

Um abraço a todos os bloguistas.

A. Mendes


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Notas de L.G.:






(...) "Queta Baldé: ex-comando, exilado no Senegal, segurança em Lisboa


"O Queta apareceu-me aqui há uns dias no trabalho pelas 8:30, vindo da sua noite como segurança numa empresa entre o Saldanha e o Marquês de Pombal. Conheci-o a arrastar os pés e não se tornou mais ligeiro com a idade. Às vezes, quando vem conversar aqui comigo lança-me um olhar que parece de um animal doído com os raspanetes do dono.


"Ele tem algumas razões para mostrar um semblante marcado pelo sofrimento. Em 71, saiu do Pel Caç Nat 52 e alistou-se na 2ª Companhia de Comandos Africanos. Em 74, com a independência, fugiu de Cuntima para não ser baleado num daqueles delírios de ajuste de contas. Viveu sete anos no Senegal, lá conseguiu um visto, depois adquiriu nacionalidade portuguesa, trouxe filhos do primeiro casamento, voltou a casar e foi viver para Chelas J, numa autêntica alfurja. Mas não resistiu a ser útil a nosso alfero, que lhe pediu para retorcer os subterrâneos da memória" (...).


(3) A Associação de Comandos, com sede em Lisboa, tem delegações nas seguintes localidades:












Fora do Continente, tem ainda delegações em:



O sítio (oficial) da Associação de Comandos tem um link para uma das nossas páginas > Subsídios para a história da guerra colonial > Guiné (12) > Brá: Comandos



Guiné 63/74 - P1338: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (5): estreia dos Órgãos de Estaline, os Katiusha















Continuação da publicação das memórias do Paulo Santiago, ex-alf mil, cmdt do Pel Caç Nat 53 (Saltinho , 1970/72). Texto enviado em 20 de Novembro de 2006. Há dias (30 de Novembro de 2006) ele comunicou-nos que a sua esposa ia levá-lo, de manhã, de carro, a Porto Marin, perto de Pontevreda, para depois fazer, a pé, o resto do caminho de Santiago. E que esperava dentro de quatro a cinco dias chegar a Santiago. Tinha feito uma tentativa anterior, em Agosto passado, gorada por falta de tempo.

Desta vez, ele pode queixar-se da mochila que vai "um pouco mais pesada, devido à roupa da época"... Mas esperemos que as mazelas contraídas no Saltinho (no episódio que ele relata neste post) não o deixem ficar mal, nem perante o Santo - que era mui fero e guerreiro, como o Paulo - nem perante os seus camaradas da Guiné que muito o estimam e admiram... Muito provavelmente ele hoje já está em Santiago de Compostela e seguramente que lá, no famoso santuário cristão, também pensou em nós, nos seus amigos e camaradas da Guiné, e até é capaz de ter rezado por nós, santos e pecadores...
Em sua homenagem (dele, Paulo, peregrino, caminheiro, ex-comandante de um pelotão de caçadores nativosniurra incarnação), deixo-vos aqui algumas fotos do caminho de Santiago que eu fiz, no verão passado, comodamente, como turista... Devo dizer-vos que não é (nem pode ser) um santo da minha devoção, sendo eu meio-cristão e meio-mouro... Sempre o achei, de resto, muito guerreiro, para o gosto de paisano... De qualquer modo, apesar da massificação do turismo, Santiago de Compostela ainda é um lugar desta jangada de pedra onde há sortilégio, magia e espiritualidade, onde o profano e o sagrado se casam bem... Se lá forem, passam pelo Gato Negro e bebam uma malga de vinho do Ribeiro por mim, por todos nós, pobres de Cristo, que palmilhámos as terras da Guiné e trouxemos de lá uma sede tamanha que só a água de Lisboa podia matar... Em Santiago de Compostela não se morria nem morre de seda: é, de facto, uma das cidades não só da nossa querida Galiza como de toda a Espanha, com mais bares de tapas, bodegas, tabernas e chiringuitos por metro quadrado... Ou não tivesse o santo também olho para o negócio... (LG)

Fotos: © Luís Graça (2006). Direitos reservados.


Guiné > Zona Leste > Sector L5 (Galomaro) > Saltinho > 1971 > O comandante do Pel Caç Nat 53 (1970/72), Paulo Santiago, tomando o seu banho à fula no Rio Corubal.

Foto: © Paulo Santiago (2006). Direitos reservados.

Em 6 de Janeiro de 1971, fiz vinte e três anos de idade e um ano de tropa. Tinha entrado para o calhau em Mafra, precisamente no dia em que fiz vinte e dois anos, foi o pior aniversário da minha vida, completamente perdido naquele labirinto de escadas e corredores.

Este 6 de Janeiro no Saltinho foi bem bebido, muito whisky a acompanhar umas rodelas de tomate com sal.

Em 21 de Janeiro, aí pelas 21.00 horas, entra um militar da CCAÇ 2701 pelo bar de Sargentos e Oficiais e informa, meio esbaforidamente, que um dos sentinelas está a avistar uma pequena luz numa curva do Corubal, situada aí a uns 500 metros na margem oposta à do quartel.

Saímos todos a correr em direcção ao posto de sentinela, verificando, haver de facto uma pequena luz a mover-se no local indicado. Acrescento que a zona em causa daria uma boa base de fogos para uma flagelação ao Saltinho, com uma posterior retirada pelo rio. O abrigo do [Pel Caç Nat] 53 ficava ali ao lado, e foi onde me dirigi, agarrando no morteiro 60 e duas granadas.

Procuro um local, com visibilidade para a curva do rio, instalo o morteiro, joelho direito em terra, mão direita no tubo, calculo a inclinação e aí vai granada. Tudo foi feito com rapidez., esquecendo-me que a zona do Saltinho ,contrariamente à maior parte da Guiné, era rochosa, o que resultou em azar. Não vi, estava escuro, o prato da arma ficou assente num afloramento de rocha. À saída da granada o prato desliza na pedra, atingindo-me a perna direita acima do joelho. A pancada foi tão forte que caí para o lado, cheio de dores, pensei logo ter ossos partidos.

O Cap Clemente e o Alf Julião que estavam ao meu lado, agarram-me ao colo e trazem-me para o Posto médico, onde me deitam na marquesa. Felizmente o osso ficou à vista, mas não estava partido. Havia que coser a perna, trabalho para o Fur Mil Enf Freire.

Como não havia anestesia, estavam quatro matulões a imobilizar-me e eu a sentir a agulha a coser-me, a repuxar músculos e peles. Hoje suporto a dor com alguma rusticidade, deverão ser
ainda resquícios do que passei naquela noite. Levei exteriormente quinze pontos e fiquei
inoperacional um mês e poucos dias.

No dia seguinte, deveria ficar de cama, não consegui e rebentei de imediato com um dos pontos. Agarrado a uma pseudo-bengala lá vim beber uns copos para o bar. Foi um mês de grandes exageros (ainda mais) com as bebidas. O maior problema passou a ser o banho, não podia mergulhar no rio, então protegia o penso com um plástico, sentava-me à beira da rio e, com uma bacia, ia virando água por cima da cabeça, um banho à fula.

Chegamos ao Carnaval e resolvem fazer um baile na escola que ficava junto do quartel ,ficando eu a beber uns copos no bar . Por volta das vinte horas, ouço várias saídas de arma que não sei determinar. Venho agarrado à bengala dar uma espreitadela à parada, vejo o rasto de vários foguetões (?) dirigindo-se na direcção de Aldeia Formosa, ouço o estrondo dos rebentamentos, repetindo-se de imediato a mesma cena, várias saídas, o rasto dos foguetes e respectivos rebentamentos.

Chega entretanto o pessoal que andava no baile, ficando também a assistir aquela chuva de foguetes e a ouvir os rebentamentos. Aparece o Fur Rui das Transmissões, informando que o quartel de Aldeia Formosa acaba de perguntar se estávamos a ser atacados, e quais as armas utilizadas no ataque.

Chegou-se à conclusão que as granadas estavam a cair em zona entre Saltinho e Quebo
e a arma era desconhecida. Passados alguns dias veio informação do Com-Chefe: naquele ataque falhado a Aldeia Formosa, o IN tinha utilizado pela primeira vez Foguetes Katiusha, também conhecidos por Órgãos de Estaline.

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Guiné 63/74 - P1337: O campo de concentração da Ilha das Galinhas (João Tunes)

Guiné > Região de Tombali > Catió > Mato Farroba > Abril de 1970 > Em primeiro plano, o ex-Alf Mil Transmissões e hoje nosso estimado camarada João Tunes .


Foto: © João Tunes (2005). Direitos reservados.


Mensagem do João Tunes, já enviada a toda a tertúlia.

Sobre os Outros
por João Tunes

Caro Luís e restantes camaradas,


Como era incontornável, o nosso blogue, cada vez mais rico e recheado de facetas mais encadeadas, assenta sobretudo na visão da guerra de um dos lados, o das NT. Não podia ser de outra forma. Mas, julgo eu, sobretudo a esta distância no tempo, não entenderemos o que passámos e lá estivemos a fazer, sem compreender o outro lado, o lado do IN. Só numa compreensão abrangente das duas metades, é que, nós e os guineenses, podemos ter a percepção da epopeia daquele drama comum e que nos ficou a unir.

Infelizmente, da parte do PAIGC, há uma exiguidade de produção histórica e tratamento documental e testemunhal sobre a sua luta. A par do facto terrível de que a grande maioria dos antigos combatentes do PAIGC ou morreu ou para lá caminha proximamente sem deixar lavrados os seus imprescindíveis relatos e testemunhos (é muito curto o horizonte de vida na Guiné).

Esperemos que a saída à luz do dia, e em breve, da tese académica do nosso amigo tertuliano Leopoldo Amado compense uma parte das lacunas que nos atrapalham a visão larga da memória da guerra na Guiné (1).

Entretanto, aproveitando para o divulgar e recomendar, saiu um livro importante da Dalila Cabrita Mateus (*) em que ela apresenta um conjunto de depoimentos recolhidos e verificados junto dos prisioneiros africanos no período da guerra colonial. Julgo até que este livro é de leitura impositiva pois possibilita, coisa rara, que se oiçam vozes do sofrimento daqueles que
combatemos e nos combateram. O que é útil a vários níveis - permite-nos relativizar os nossos sofrimentos enquanto combatentes coloniais; traz à luz do dia uma bestialidade escondida no tratamento da pessoa humana que era o lastro do suporte ao nosso combate e sobrevivência. Sem aquilo, sem aquela PIDE, poucos de nós estaríamos aqui a escrever e a contar.

Uma parcela importante do livro de Dalila Cabrita Mateus é composta de entrevistas com prisioneiros da segunda fase de funcionamento do Campo de Concentração do Tarrafal (Ilha de Santiago - Cabo Verde). Como se sabe, o Campo (também conhecido como Campo da Morte Lenta) funcionou entre 1936 e 1954 para prisioneiros políticos portugueses e o seu encerramento deveu-se ao escândalo internacional devido à demasiada semelhança com os campos nazis.

Após o declarar da guerra em Angola, o então Ministro do Ultramar Adriano Moreira (o mesmíssimo académico hoje celebrado como o grande visionário geoestratégico do desígnio português no mundo), firmou despacho legislativo para que o Campo do Tarrafal fosse reaberto para os prisioneiros capturados nas colónias. Esta medida coincidiu com o fim dos julgamentos, em Tribunal Militar, dos prisioneiros africanos. A partir de então, os prisioneiros passaram a ser dispensados de julgamento e, depois de interrogados e torturados, era-lhes fixada administrativamente (pelos Governadores sob proposta da PIDE) residência por tempo indeterminado num dos campos de concentração existentes em África.

No que respeita à Guiné, os prisioneiros que não eram liquidados pelas NT e pela PIDE, passaram a ir para a ilha das Galinhas (Bijagós-Guiné) (2) ou para o Tarrafal. Neste Campo,
além de alguns caboverdianos, estiveram, até 1974, muitos prisioneiros angolanos mas o grosso do número foram guineenses (várias centenas). E uma norma imposta era a proibição de qualquer contacto entre os prisioneiros das várias nacionalidades. Mas, os prisioneiros guineenses não só perfaziam a maior percentagem como estavam sujeitos a piores condições relativas (3).

Primeiro, ao contrário da maioria dos angolanos, não recebiam ajuda dos seus familiares (em géneros, em dinheiro, em correio). Segundo, cúmulo do sadismo administrativo, a alimentação dos presos fornecida no Campo era diferente pela razão que o orçamento era diferenciado consoante a origem. Uma regra estabelecia que eram os governos das províncias que custeavam a alimentação dos presos e enquanto o Governo Provincial de Angola dotava de 20$00 os
cofres do campo para a alimentação diária de cada prisioneiro angolano, Spínola atribuía apenas 5$00. O que levava a que, na alimentação dada a cada prisioneiro guineense, se gastasse um quarto do custo havido com cada angolano!

Imagine-se o resultado pois não havia suplementos alimentares por falta de apoios familiares. Foram inúmeras as mortes por doença entre os prisioneiros guineenses, nomeadamente por défice vitamínico que conduziu a várias mortes por escorbuto (!). E como não eram permitidos quaisquer contactos entre prisioneiros angolanos e guineenses, obviamente que a solidariedade inter-africana não tinha meios para se verificar.

Naquelas terríveis e ainda pouco conhecidas condições, compreende-se o desânimo e o desespero de grande parte dos prisioneiros guineenses. E como a PIDE nem ali dormia, entende-se também que ela tenha conseguido trabalhar um grupo de combatentes aprisionados no Tarrafal para os levar á traição dos seus e colaborado com a formação do grupo libertado que se reinfiltrou no PAIGC e levou a cabo o assassinato de Amílcar Cabral em 1973 (3).

Depois da PIDE reduzir aqueles homens à miséria humana ainda encontrou matéria-prima para que alguns dos miseráveis se prestassem a reproduzir a miséria.


Abraços para todos os camaradas.

João Tunes

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(*) - Memórias do Colonialismo e da Guerra, Dalila Cabrita Mateus, Ed. ASA . Sobre este livro, coloquei post no meu blogue > Água Lisa (6) > 27 de Novembro de 2006 > A África e Nós
Cópia da capa do livro de Dalila Cabrita Mateus > Memórias do Colonialismo e da Guerra. Porto: Edições ASA. 2006. Colecção: Arquivos Históricos. 672 pp. Preço: 24,00 € (com IVA).


Fonte: © Edições ASA (2006) (com a devida vénia...).


(...) "Neste quadro, assume um relevo extraordinário o trabalho da Professora Doutora Dalila Cabrita Mateus, do ISCTE, que tem vindo, desde há vários anos, a debruçar-se sobre a guerra colonial no período 1961-1974 e que culminou numa monumental tese de doutoramento sobre o tema após aturadas investigações nos arquivos e na recolha de testemunhos orais em Portugal e em África. Desta tese, a Editora Terramar já havia publicado a síntese do corpo principal (**) incidindo sobre a acção da PIDE nas colónias africanas.

"A Editora ASA acaba agora de editar (***) um complemento de enorme valor testemunhal e que são os depoimentos orais que a investigadora recolheu, aferiu e cruzou junto de portugueses e africanos que foram protagonistas, nos vários cenários coloniais, do drama do conflito-estertor do colonialismo português, esse banho de sangue com que quisemos selar o fim da presença portuguesa em África, na teimosia de contrariar os ventos da história.

"Significativamente, os depoimentos recolhidos por Dalila Mateus entre 1999 e 2001 e sistematizados neste segundo livro, são quase todos acompanhados de uma nota em que se refere os falecimentos da maior parte dos depoentes antes da edição do livro. O que demonstra que essa recolha, para além dos seus valores próprios e impressivos, foi salva à tira, ou seja, mais uns poucos anos passados e testemunhos únicos e riquíssimos perdiam-se na poeira das leis da vida.

"Para um português, não deixa de ser inovador e perturbador ouvir as vozes das elites dos africanos que nos sofreram em África. Dando-nos uma dimensão mais profunda à nossa vergonha necessária. E obrigando-nos, até, a relativizar o nosso próprio quadro europeu de sofrimento da ditadura e do consequente preço pelo alcance da democracia. E o único consolo que resta, no quadro abrangente do regime ditatorial, é que a brutalidade estremada utilizada no cenário colonial (basta comparar as práticas da PIDE na metrópole e nas colónias, lá mais brutal para os prisioneiros que cá, lá mais apoiada que cá pela população branca) acabou por ser a pá de cal deitada no caixão da ditadura.

"Vem aí o Natal, época de prendas. Para os outros e para nós. As minhas sugestões ficam aqui. Porque não há melhor oferta que a de nos ajudarmos a entender. E essa obra de entendimento (do eu, de nós, dos outros), ideia minha, é mister sobretudo dos poetas e dos historiadores. Sem uns e outros, seremos apenas, por muito bem que cantemos, pássaros à janela (para sair ou entrar)" (...).

__________


(**) –A PIDE/DGS na Guerra Colonial (1961-1974), Dalila Cabrita Mateus, Ed. Terramar. 2004.

(**) – Memórias do Colonialismo e da Guerra, Dalila Cabrita Mateus, Ed. ASA. 2006.


_________


Notas de L.G.:

(1) Há vários posts do Leopoldo Amado no nosso blogue. Vd., por exemplo, posts de:


22 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXV: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - I Parte

25 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXVI: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte


(2) Ilha das Galinhas: fica situada a sudoeste da Ilha de Bolama, separada desta pelo Canal de Bolama. Por lá passaram muitos dirigentes e militantes do PAIGC, incluindo um dos seus fundadores, Rafael Barbsa:

(...) "Ora, para lá do provável ou mesmo real empolamento de Pindjiguiti e da justeza ou não das formas e conceitos, sempre discutíveis, sobre a forma como Pindjiguiti foi etiquetado (contenda laboral, massacre ou carnificina) ou ainda do quantitativo de mortes que se saldou na decorrência do acontecimento enquanto tal, temos para nós que o que se afigura importante é o reconhecimento da importância e o alcance históricos que o mesmo teve, à jusante e à montante da guerra colonial/guerra de libertação, no contexto do processo libertário do povo guineense.

"Aliás, não foi por acaso que depois de Pindjiguiti o PAIGC logrou atingir uma assinalável mobilização que permitiu o desencadeamento da luta armada de libertação. Também, não foi por acaso que no decorrer da guerra colonial/ guerra de libertação, invariavelmente, o PAIGC normalmente assinalava a efeméride com ataques simultâneos a várias localidades, inclusivamente os centros urbanos, sobretudo a partir de 1968.

"Não foi igualmente por acaso que em 1962, os vários partidos e movimentos de libertação que pululavam em Dakar e Conakry (mais contra o PAIGC do que contra o colonialismo português) decidiram criar a 3 de Agosto desse mesmo ano uma frente de luta, a FLING.
"Por fim, não foi também por acaso que Spínola, por ironia do destino, mas com objectivos claramente à vista, procedeu, no âmbito da sua política da Guiné Melhor, a 3 de Agosto de 1969, a uma espectacular libertação de cerca de uma centena de prisioneiros políticos guineenses, dos quais Rafael Barbosa, ex-Presidente do PAIGC, bem como todos os que se encontravam na colónia penal d da Ilha das Galinhas, da Colónia Penal de Tarrafal em Cabo Verde e os que se encontrvam no Forte de Roçadas, em Angola, em pleno deserto de Moçamedes" (...).

(3) Vd. blogue de Leopoldo Amado, Lamparam II > 14 de Maio de 2006 > Simbólica de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau



Fonte: Guiné-Bissau Contributo (blogue de Didinho)


Também José Carlos Schwarz (que não tem qualquer parentesco com o nosso Pepito) esteve desterrado na Ilha das Galinhas.O pioneiro da moderna música da Guiné-Bissau - poeta, músico, compositor e intérprete - nasceu na capital em 6 de Dezembro de 1949. Fez os seus estudos em Bissau e Dacar. Preso político, foi deportado para a Ilha das Galinhas. Após a independência, foi director do Departamento de Arte e Cultura do Comissariado da Juventude e Desportos e encarregado de negócios da Guiné-Bissau em Cuba. Foi, de resto, aqui que encontrou a morte, num dedsastre de aviação, ocorrido a 27 de Maio de 1977 .

domingo, 3 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1336: Catió: Autor de pintura mural, procura-se (Victor Condeço)

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Guiné > Região de Tombali > Catió > 1967 > Pintura mural, de autor desconhecido, provavelmente da CCS do BCAÇ 1858 (1965/67). Em latim pode ler-se "Cationis civitatis modernissma charta" (carta recentíssima da cidade de Catió).

Fotos: © Vítor Condeço (2006). Direitos reservados.

Texto do novo elemento da nossa tertúlia, Vitor Condeço, 63 anos, reformado, residente no Entroncamento, ex-furriel miliciano mecânico de armamento, CCS do BART 19163 (Catió, 1967/69) (1).


A Arte em Catió no tempo da guerra
por Victor Condeço

Luís:

Pedi-te que me desses uns dias para escrever alguma coisa, pois aqui estou, não propriamente para escrever uma estória, mas para te mostrar um trabalho de um artista desconhecido, que fotografei em Catió em Julho de 1967.

Resolvi enviar-te este trabalho por considerar que ele é muito mais que um daqueles simples desenhos murais feitos um pouco por todos os quartéis da Guiné e que caricaturavam alguma situação digna de registo, – como a chegada dos periquitos -, ou pretendiam apenas mostrar como encontrámos o quartel e como o deixámos... Enfim, pinturas murais que embelezavam as nossas messes, refeitórios e camaratas.

Se for tua opinião que tem algum interesse e que se pode enquadrar no blogue, adapta as minhas descrições, corta o que entenderes e faz os comentários que te aprouverem, inclusive podes arranjar outro título, fica ao teu superior critério. Outra questão são os direitos de autor da obra, analisa isso por favor!

Um dos meus hobbies na Guiné foi a fotografia. Bater a chapa e fazer o trabalho de laboratório ajudavam a esquecer as saudades de quem estava longe. Tinha ainda a vantagem de me afastar dos vícios do bar e era também mais económico e rápido fazer os próprios bonecos, que enviava à família.

A foto que envio foi mal tirada e mal feita, foi das primeiras que fiz no nosso laboratório (i) em Catió, dela só encontrei o que devem ser duas provas e talvez por achar que não estavam boas, devo ter pensado em repetir a fotografia mas, não sei porquê, o certo é que isso não deve ter acontecido. Recentemente, procurando entre o espólio dos meus negativos para fazer as digitalizações, nem sequer encontrei o que deu origem a estas provas.

Mesmo assim com má qualidade, dará para apreciar o excelente trabalho do artista, feito a carvão ou óleo (não posso precisar) no fundo de cal branca de uma parede interior de uma casa de habitação tipicamente colonial, situada no extremo norte do quartel e que era a antiga messe de oficiais - antiga porque, nos primeiros meses de 1968 foi inaugurada a nova, feita pela Engenharia Militar no extremo sul do quartel.

Aquela casa continuou no entanto a servir de alojamento às tropas que passavam por Catió em operações na zona, pelo menos até ao final da minha comissão em Fevereiro de 1969.

Luís, da memória visual que me resta do painel, este deveria ter cerca de 1,2 x 0,8 metros, retratava Catió e suas imediações num raio de cerca de 4 a 5 Km, abrangia áreas das cartas militares de Catió e de Bedanda.

Com o quartel bem no centro, a poente deste a vila, o cemitério, a pista de aviação com avião e tudo, as tabancas de Areia, Quintafine e Sua, o rio Cobade, para sul o rio Cangopere com o cais exterior, o rio Cadime com o cais interior, e onde não falta sequer a lancha da Marinha Portuguesa LP2 que fazia o reabastecimento diário de pão e água potável ao Cachil.

A norte o rio Ganjola, o destacamento do mesmo nome, e as tabancas de Cachanga e Dissimbile.
A nascente a bolanha, a tabanca de Priame, a mata, a estrada para Cufar, o desvio para sul para as tabancas de Quibil e Ilhéu de Infanda, a norte da estrada as ruínas de Cubaque e mais à direita as tabuletas que devem indicar no cruzamento de Camaiúpa, a direcção de Cufar e provavelmente Cobumba e Bedanda no outro sentido.

Quem fez este trabalho não sei, nunca soube, eu cheguei a Catió em Maio e o mesmo já existia, com alguma dificuldade consegue-se perceber a data inscrita, em numeração romana MCMLXVII (1967) – A. D. (não sei o significado) (2), a assinatura está ilegível, contudo no final desta parece poder ler-se Porto.

Terá sido feito provavelmente com recurso às cartas militares, mas decerto por alguém profundamente conhecedor da região e um artista, talvez um oficial da CCS do BCAÇ 1858 que o BART 1913 rendeu, mas poderia ser de outra unidade, pois em Catió na época havia outras, uma CCAV, um Pel Rec DAIMLER, um Pelotão de Canhão sem recuo um Pelotãod e Morteiros (não recordo os números, mas gostava de saber).
Os pormenores são tantos e tão bons, que não faltam os trabalhadores na bolanha e não escaparam ao autor as diversas espécies da fauna da região que se podem ver por todo o painel.

Brazão actual de Catió, vila da Guiné-Bissau
Fonte: International Civic Heraldry (por sugestão do nosso tertuliano Jorge Santos) (3)


Os tertulianos que passaram por Catió durante e após 1967, terão conhecido este painel? O Hugo Moura Ferreira (Cufar, 1966/67), mas que deve por ali ter passado, o João Tunes em 1970/71 (3)... Mas também o Leopoldo Amado, ainda muito criança, talvez por ali tivesse passado alguma vez na companhia de seu pai, na altura chefe dos Correios de Catió.

Luís: se entenderes publicar esat imagem (**), até poderás lançar um desafio aos frequentadores deste blogue, que são já da ordem das várias centenas, diariamente -, a saber, quem é que consegue, através de um amigo que conhece outro que esteve por aquelas paragens, dar uma dica sobre o possível autor do trabalho.

Seria giro passados 40 anos descobrir o autor e facultar-lhe uma cópia do seu trabalho, que se calhar nunca teve.

Luís aproveito para te desejar e a toda a tertúlia e seus familiares, também a todos os que lêem este blogue, um Feliz Natal e um Novo Ano com muita saúde e felicidades.
Até breve um abraço.

Victor Condeço

(*) O BART1913 comprou e levou para seu serviço um pequeno laboratório fotográfico, tendo facultado a sua utilização a duas ou três pessoas interessadas na fotografia, cada utilizador pagava os próprios materiais que encomendava em Bissau.

(**) Tenho outro tipo de digitalização desta foto, tem muito mais ampliação, foi feita com a divisão da foto em quatro partes, servirá para reproduzir em papel e fazer a respectiva colagem. Se te interessar está ao teu dispor.
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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 3 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1335: Um mecânico de armamento para a nossa companhia (Victor Condeço, CCS/BART 1913, Catió)

(2) A.D.= Anno Domini , em latim. Quer dizer que o mural foi pintado em 1967... da era cristã

(3) Vd. posts de:

4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1245: Quarenta anos sobre Catió (João Tunes)

12 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVI: No 'reino do Nino': Catió, Cacine, Gadamael, Guileje (1970) (João Tunes)

Guiné 63/74 - P1335: Tabanca Grande: Victor Condeço, ex-Fur Mil Mec Armamento da CCS/BART 1913, Catió, um mecânico de armamento para a nossa companhia

Vitor Condeço, o novo membro da nossa tertúlia: aqui fotografado em 1968 e mais recentemente em 2004. 

Foi Fur Mil Mecânico de Armamento na CCS do BART 1913 (Catió 1967/69). Tem 63 anos e reside no Entroncamento.

Caro camarada Luís Graça:

É com alguma dificuldade que vou tentar cumprir uma regra da tertúlia, que é o tratamento por tu. Torna-se-me difícil quando não conheço pessoalmente as pessoas, mas cá vai.
 
Foi com agrado que li os teus oportunos comentários ao material por mim enviado e as tuas palavras de incentivo para aderir a esta tertúlia (1).

Obrigado também pelas tuas felicitações ao meu 63º aniversário.

Seguem em anexo as fotos que solicitaste para a fotogaleria, a civil já é de 2004, de momento não tenho outra mais recente, mas estou na mesma, só o cabelo tem mais uns (poucos) branquinhos.

Confirmo os meus dados mais importantes... Formalizo assim o meu pedido de adesão á Tertúlia.
 
Como já te afirmei no meu anterior mail, não esperes grandes histórias da minha parte para contar no blogue, mas vou tentar escrever alguma coisa, dá-me um tempo.

Os meus cumprimentos a todos os terulianos.
Um abraço para ti, Luís.

Victor Condeço
_________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1301: O cruzeiro das nossas vidas (4): Uíge, a viagem nº 127 (Victor Condeço, CCS/BART 1913)

(...) "Comentário de L.G.:

"Meu caro Victor: Julgo que tu és o primeiro especialista mecânico de armamento que aparece por estas bandas. E não penses que é uma especialidade de 2ª classe: pelo contrário, se a G3 encrava ou se o canhão sem recuo não recua, estamos todos fritos...
 
"Humor à parte, nenhum de nós vem aqui exibir o seu cardápio de roncos, o seu currículo de horrores ou o seu estojo de cruzes de guerra... Todos estivemos lá, todos somos camaradas da Guiné... É isso que nos une. Sê, portanto, bem aparecido e, quando te der jeito, manda duas chapas tuas para a fotogaleria... A gente gosta de conhecer a cara dos camaradas e de os ouvir falar dos sítios fantásticos por onde andaram e da gente simples e boa, guineense, com quem conviveram...
 
"Fala-nos de Catió, e de como eram as coisas no teu tempo... A Catió que era gozada nos programas de rádio a fingir, para a plateia da caserna: E agora um disco pedido, pelo Embaló, que tem um primo em Catió!....

"Um dia destes, encontramo-nos por aí, para dar um abraço uns aos outros e beber um copo... Obrigado, pela teus recuerdos da viagem nº 127 do Uíge, a caminho de casa, depois de mais de quarenta longos meses de tropa (1200 e tal dias!!!)" (...).

Guiné 63/74 - P1334: Guileje: espectacular foto aérea de 1972 (Amaro Munhoz Samúdio, CCAÇ 3477)

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Guiné > Região de Tombali > Guileje > CCAÇ 3477 (Novembro de 1971/ Dezembro de 1972) > Foto aérea de 1972 do aquartelamento e tabanca de Guileje, tirada no sentido oeste-leste. A avaliar pela foto, havia um conjunto de moranças, fora do perímetro de arame farpado, a norte do aquartelamento, junto ao trilho da água e no início da estrada que dava para Mejo e Bedanda. Ao fundo, são bem visíveis: (i) a pista de aviação; (ii) o campo de futebol; e (iii) o heliporto
Foto: © Amaro Samúdio (2006). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.

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Guiné > Região de Tombali > Guileje > 1973 > Croquis do aquartelamento e tabanca, desenhado à mão pelo Fur Mil Operações Especiais José Casimiro Carvalho (CCAC 8350, 1972/73) (1).


Foto: © José Casimiro Carvalho (2005). Direitos reservados. Foto alojada no álbum de Luís Graça > Guinea-Bissau: Colonial War. Copyright © 2003-2006 Photobucket Inc. All rights reserved.


Colagem de duas mensagens recentes do Amaro Munhoz Samúdio, ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 3477 (1971/73), a companhia de açorianos que ficou conhecida como Os Gringos de Guileje: estiveram em Guileje entre Novembro de 1971 e Dezembro de 1972); (ii) foram a penúltima unidade de quadrícula de Guileje, sendo rendidos pela CCAV 8350 (Dez 1972/Mai 1973) - Os Piratas de Guileje, a que pertencia o nosso camarada José Casimiro Carvalho, ex-fur mil e ranger.


1. Era inevitável que a pergunta sobre o que se passou com o chimpazé-bebé fosse feita (2). Outra coisa não era de esperar.

Num dos passeios que gostava de fazer, do abrigo até à estrada, um safado dum açoriano, condutor daqueles monstros que iam buscar água, resolveu, sem qualquer intenção, parar em cima dele. O caçador, que observou isto, disse-me que o animal ia morrer. O que é certo é que deixou de comer e veio a falecer.

Ficaram a Lolita e o Bobi, os nossos amigos vindos de Gadamel Porto, pedidos pelas transmissões.

2. O desenho efectuado pelo herói Casimiro corajosamente enviada a seu pai, é o que mais se aproxima da realidade de Guileje até 21 de Novembro de 1972. Calculo aquela saída pela pista em direcção a Gadamael Porto, depois de não poderem sair dos abrigos e o pessoal das tabancas também lá dentro, a fazerem todas as suas necessidades lá... Nós, em Nhacra, sabíamos o que se estava a passar em Guileje. Tínhamos saído de lá há três meses.

Os Obuses eram 11.4 , substituídos posteriormente por 14.0 Porquê ? A psico de Mr. Spínola? O não responder pela mesma forma de defesa ? É que, segundo o que me era contado pelo pelotão de artilharia, os 11.4 atingiam zonas que os 14.0 , embora mais potentes, não atingiam.

3. É muito difícil dizer tudo o que me está na alma, isto porque poderia, neste momento, quebrar o princípio de que nós éramos os ocupantes e eles os ocupados

As mina, armadilhas e fornilhos também existiam. O heliporto também, salvo erro, construído pelos Gringos.

Os abrigos, construídos pela engenharia, estão quase perfeitamente localizados, muito embora um deles estivesse localizado do lado direito para quem saía para a estrada de Gadamael Porto.

Entretanto, e salvaguardando os muitos conhecimentos do Nuno Rubim, recordo que antes da CCAÇ 3477 (Gringos de Guileje) - esta sim, uma companhia essencialmente açoriana (B.B.I. 18 – Ponta Delgada, S. Miguel, Açores), esteve uma Companhia de Madeirenses e depois é que veio CCAV 8350 (1972/73) , metropolitana, segundo o uso da designação.

Os Gringos de Guileje estiveram lá de 21 de Novembro de 1971 até 22 de Dezembro de 1972

Falta-me encaixar a CCAÇ 3325 pois, para mim, tinha sido a companhia madeirense, a CCAÇ 2617, que nos antecedeu .
4. Caro Luís Graça: Peço desculpa mas agora pregaste-me o vício de pensar e falar sobre a Guiné, nomeadamente sobre Guileje.

De tal forma se tornou vício que te vou transformar em responsável por, ao fim de trinta e três anos, tentar reunir, em Maio de 2007, os Gringos de Guileje (CCAÇ 3477), principalmente os do continente - já que vai ser muito difícil trazer os Açorianos, visto a maioria deles terem imigrado.
Continuando no vício, e pretendendo colaborar com o Pepito, anexo a fotografia que penso ser de início de 1972.

Um abraço
Amaro Munhoz Samúdio
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 1 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1234: Guileje: croquis do aquartelamento e tabanca (José Casimiro Carvalho)
(...) " Comentário de L.G.:
(...) "O aquartelamento e a tabanca de Guileje formavam um rectângulo, todo minado à volta, na parte desmatada, com minas, armadilhas e fornilhos.
"A orientação parece ser norte/sul, tendo as peças de artilharia de 11.4, em número de três, apontadas para a fronteira com a República da Guiné-Conacri. Originalmente, eu pensava que os obuses de Guileje fossem de calibre 14 cm. Podem ver-se ainda as posições dos morteiros: dois 81 (incluindo o 'meu', o que era operado pela secção do Furriel Carvalho, do lado oeste, junto a um dos abrigos) e dois 10,7.
"A oeste, há um campo de futebol, uma pista de aterragem de aeronaves e um heliporto. Ao longo do perímetro do aquartelamento, há arame farpado, postos de iluminação, postos de sentinela, abrigos e valas, todos devidamente assinalados. As palhotas da tabanca situam-se dentro do perímetro do aquartelamento. O trilho que corre a norte da pista de aviação era o trilho da água, o que significava que as NT e a população precisavam de sair do perímetro defensivo para se abastecer do precioso líquido.
"A estrada que atravessava o aquartelamento e a tabanca, no sentido norte/sul era a que seguia para Mejo e Bedanda (a noroeste) e ligava a sul à estrada de Mampatá - Gadamael - Cacine, ao longo da fronteira.
"O Pepito e o Nuno Rubim (...) saberão melhor do que eu interpretar e completar estas informações" (...).

(2) Vd. posts de

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1293: Guileje: do chimpanzé-bébé aos abrigos à prova do 122 mm (Amaro Munhoz Samúdio, CCAÇ 3477)

10 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1162: Guileje: CCAÇ 3477, os Gringos Açorianos (Amaro Munhoz Samúdio)

sexta-feira, 1 de dezembro de 2006

Guiné 63/74 - P1333: A grande emoção de recordar Cufeu e Guidaje (Albano Costa, CCAÇ 4150)

Guiné- Bissau > Região do Cacheu > Guidaje > Novembro de 2000 > "Foto tirada no Cufeu, quando parámos para o almoço... Hoje está um pouco diferente do que era no meu tempo, em 73/74" (Albano Costa, ex-1º cabo da CCAÇ 4150, Guidaje, 1973/74).

Foto: © Albano Costa (2006). Direitos reservados.


Texto do Albano Costa, recebido em 15 de Novembro de 2006

Comentário de L.G.:
O Albano habituou-se à grafia Guidage, e não consegue escrever Guidaje... Vou respeitar a sua vontade, além de lhe agradecer este texto singelo e solidário, de grande autenticidade humana... Sei que lhe fez muito bem voltar à Guiné, em Novembro de 2000, ainda para mais na companhia do seu filho Hugo, que fez uma excelente - e já muito badalada aqui, no blogue - reportagem da viagem (3 CD, 6 horas, belas imagens, óptima música em fundo, enfim, um trabalho profissional)...

Caro Luís Graça:

Estive uns dias ausente da Net, mas já regressei e tenho estado muito atento ao que se tem escrito sobre o que se passou em Guidage no ano de 1973 (Maio e Junho). É um assunto que me interessa saber e muito, pena que só agora comece a ser contado o que se passou.

A minha companhia não estava lá nessa altura, só foi destacada para Guidage mais tarde. Quando lá chegámos, não sabíamos exactamente o que se tinha passado. Naquela altura era tudo muito fechado, a maioria dos militares que para lá foram na altura do conflito já lá não estavam, vieram embora, e os relatos que agora leio confirmam-no.

Quando lá chegámos só lá estava a CCAÇ 19, companhia, essa, africana. Só os especialistas e graduados eram brancos. Procurava-se não comentar muito para não destabelizar as tropas. Os militares brancos que pertenciam à CCAÇ 19 estavam psicologicamente traumatizados e procuravam não falar sobre o que tinha acontecido. Limitavam-se a dizer que não desejavam a ninguém o que tinham passado. Por seu turno, os nossos quadros superiores procuravam ocultar o sucedido para manter as tropas psicologicamente activas.

Quem conhece Guidage - e eu conheço muito bem, estive lá oito meses -, era um destacamento completamente isolado, ficava mesmo na fronteira com o Senegal. Não se passava nada a não ser receio, não havia gente nova, não era sítio de passagem, ninguém lá ía, eramos sempre os mesmo, enfim, não foi fácil. O isolamento era total, só faziamos colunas de 15 em 15 dias, fora disso estavamos ali sozinhos.

Quando saíamos de Guidage era só para fazer reconhecimento no mato para ver se o IN estaria a organizar algum ataque ou para vir a Binta em coluna sempre com bastantes militares.

Ninguém se atrevia naquela altura a fazer o percurso de Guidage a Binta sem ser em coluna, e aí tinhamos que passar pelo Cufeu. Era sempre com muito cuidado, passávamos sempre pelo cemitério. As NT perderam lá meia dúzia de viaturas e também sabíamos que tinham morrido colegas nossos... Sempre com muito cuidado falava-se que ali tinham havido grandes confrontos com o IN. Toda a gente queria evitar passar lá, mas ao mesmo tempo tínhamos que fazer as colunas.

O Cuféu tornou-se para todos os militares do meu tempo um lugar de muito respeito a partir daquela data. Quando lá se passava dava sempre um calafrio pela nossa espinha dorsal. Só quem lá esteve é que o sente, e eu, ao ler estes textos, deu-me para ver que todos os ex-militares que estiveram nessa altura no conflito, não conseguem esquecer. E não é para menos, todo aquele percurso faz medo, e esse medo ainda hoje os atormenta como lemos nas suas estórias e eu sei que é verdade, mas peço-lhes: Contem tudo o que vos vai na alma, que vão sentir-se melhor a falar nessas coisas...

Eu sei que há colegas que ainda hoje não gostam de falar nisso, vivem atormentados, por isso fiquei muito contente que o A. Mendes e o Vítor Tavares tenham desabafado um pouco da sua vivência. Não parem, passem tudo cá para fora, eu também sofri, mas de maneira diferente, sempre com o pressentimento de que a qualqer momento o IN poderia voltar à carga. E, como já disse, só podiamos ser ajudados por Bigene ou Binta, não tínhamos mais ninguém próximo.

Quando lá fui em 2000, ao passar no Cuféu tudo veio ao meu pensamento, tive momentos de muita tristeza, quem já viu o meu vídeo da viagem dá para notar: é nessa passagem, quando atarcesso Cufeu e Ujeque até chegar a Guidage. Aí, para mim tudo começou a ser diferente, a Guiné passou a ter outra beleza.

Todos os ex-militares que lá estiveram nessa altura, muito, muito difícil, sofreram mesmo muito. Eu quase fiquei paralizado ao ler os vosso testemunhos, confesso que as lágrimas correram pela cara abaixo, mas agora estou a sentir-me muito bem a ler estas estórias, que a história nunca irá contar, por isso caros camaradas desabafem, que vos faz bem.

A minha companhia andou por lá, durante meses, sempre com o mesmo pressentimento que a qualquer momento poderíamos passar por tudo o que vocês passaram. Psicologicamente foi muito complicado, nós estavamos isolados, não tínhamos aviação, estavamos ali à nossa sorte. É que ninguém lá ia a não sermos nós, que tínhamos que vir a Binta sempre que era preciso, não íamos porque queriamos, mas sim quando havia necessidade e isso foi durante todo o tempo em que lá estivemos.

Seria muito bom que estes nossos colegas tivessem possibilidades de lá voltar agora, iriam sentir-se muito mais aliviados, e todo o sofrimento que ainda hoje carregam, estou convencido que se esvaziava.

Quanto ao cemitério que foi o Cufeu e Guidage, eu sempre ouvi falar que morreu lá muito gente, mas ao certo nunca soube quantos. E não sei se alguém sabe ao certo, visto que o conflito se arrastou por vários dias, e não foi sempre com os mesmos combatentes. Enquanto lá estive tivemos apenas uma emboscada no Cufeu, e umas minas na picada.

Quanto ao irem recuperar os nossos mortos a Guidage, ficarei muito satisfeito, mas espero que o lema Ninguém fica para trás, seja para todos os que lá ficaram, afinal são todos portugueses.

Um abraço,
Albano Costa

Guiné 63/74 - P1332: Antologia (55): Bambadinca, a guerra aqui tão a sério, tão cruel - Embaixador António Pinto da França (Luís Graça)

Guiné-Bissau > Região de Bafatá> Bambadinca > 1997 > Antigas instalações dos oficiais (à direita) e dos sargentos (à esquerda). A messe de sargentos ao fundo, do lado esquerdo. Eram excelentes instalações hoteleiras, para a época e por comparações com outros outros aquartelamentos. Criadas de raíz, faziam inveja aos desgraçados dos nossos camaradas das undiades de quadrícula do Sector L1 que viviam em bunkers (Xime, Mansambo, Xitole...). Com a independência, foram ocupadas pelas Forças Armadas da Rpública da Guiné-Bissau. Esta foto de 1997 documenta a sua degradação. Bambadinca, por outro lado, foi palco de alguns sangrentos e cruéis desvarios pós-revolucionários: julgamentos em tribunais populares e execuções sumárias dos colaboracionistas...

Foto: © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor primário de Bambadinca). Direitos reservados.


Bambadinca, a guerra aqui tão a sério, tão cruel

Excertos do livro Em tempos de Inocência – Um Diário da Guiné-Bissau, de António Pinto da França. Lisboa: Prefácio, 2005. 102-103. Já aqui foi feita a sua recensão pelo nosso camarada Beja Santos (1)

Bissau, 8 a 15 de Abril de 1978

(…) De Bafatá à cidadezinha de Bambadinca viajámos em autocarros. À entrada de cada aldeia aguardavam-nos grupos de homens com cartazes de boas vindas ao Ministro [dos Transportes].

Ao entrar na parada abandonada do quartel de Bambadinca, daquilo que foi um dos principais centros das Forças Armadas Portuguesas na Guiné durante a guerra, deparámos com uma multidão que nos acolheu com vivas, se acotovelou, para com a funda cortesia africana apertar a mão do Ministro.

(…) O discurso, em crioulo, do Governador de Bafatá, influente figura do PAIGC, era traduzida para fula por um intérprete (…) [que] cantava, na saborosa língua fula, que a guerra acabou, os portugueses são e foram sempre irmãos, que estão a ajudar muito a Guiné-Bssau (…).

No final, muitas vivas a Portugal, ao Presidente Eanes, ao Dr. Mário Soares, à amizade de Portugal e da Guiné BIsssau.

E não é milagre passar-se tudo isto naquela povoação tão recentemente castigada, quando ainda só quatro anos decorreram desde o fim da guerra, aqui tão a sério, tão cruel?” (França, 2006. 102-103) (2).

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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 25 Setembro 2006 > Guiné 63/74 - P1113: Dez razões para ler 'Em tempos de inocência', diário do Embaixador A. Pinto da França (Beja Santos)

(...) "De 1977 a 1979, António Pinto da França foi embaixador de Portugal acreditado na Guiné-Bissau. Ele regista em forma de diário estes primeiros anos da independência, descrevendo com simplicidade e por vezes uma atmosfera quase mágica a vida da Embaixada, os membros do corpo diplomático, as compras, os passeios, os encontros, os ambientes múltiplos, alguns momentos históricos. Há pitoresco, desabafo íntimo, melancolia, registo meticuloso daquilo que não mudou no tempo africano" (...)

(2) Na série Antologia, divulgam-se textos - incluindo, excertos, partes de texto - de autores que, em princípio, não fazem parte da nossa tertúlia, mas que escreveram coisas, publicadas algures (sob a forma de livro ou de artigo em revista ou jornal), que nos interessam. Vd. o último post da série > 21 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1299: Antologia (54): Transporte de tropas, por via marítima e aérea (CD25A / UC)

Guiné 63/74 - P1331: Blogoterapia (9): Quando a Pátria não é Mátria para ti (João Bonifácio, Canadá, exvagomestre da CCAÇ 2402)

1. Mensagem do João Bonifácio, residente actualmente no Canadá, ex-camarada do Raul Albino, na CCAÇ 2402 (1968/70), e candidato a membro da nossa tertúlia:

Embora não tenha o prazer de o conhecer pessoalmente, estou muito feliz por toda esta informação, e que me foi facilitada por um amigo, que comigo serviu na Guiné em 1968/70 - Có, Mansabá, Olossato - CCAÇ 2402 (BCAÇ 2851) (1).

O ex-Alf Mil Raul Albino fez o favor de me enviar este site, e eu, quando posso, procuro rever toda a Guiné, através das exposições de todos os nossos ex- camaradas, a todos os níveis.

Depois de finda a minha comissão, como Furriel Miliciano do SAM (vulgo,vagomestre), e após um pequeno período de descanso e adaptação, regressei a Lisboa com a minha esposa e filho, onde reatámos as nossas vidas.

Não foi longa a minha estadia em Portugal, uma vez que a desilusão que sofri ao regressar... Assim, ao ver que o futuro seria complicado para os filhos, decidi pedir autorização para sair de Portugal, com destino ao Canadá.

Se na altura eu me sentia ofendido com o meu próprio país, bem pode imaginar quando na Amadora me pediram 1500 escudos em selos, para selar a minha desvinculação a Portugal. Saí de Portugal a 15 de Fevereiro de 1974, mas já sabia que alguma coisa se iria em breve passar. Mas era tarde, eu havia decidido que, depois de 37 meses no exército e 21 meses e 4 dias na Guiné, devia merecer mais um pouco de compreensão.

Mas o que se espera? Nós vemos e lemos o que todos os dias se passa. Somos os únicos que compreendem esta situação, e somos os únicos que tentamos manter esta chama de uma guerra onde estivemos, mas que acho nunca conpreenderemos.

Para si, Luís, um grande abraço e obrigado. Neste momento estou ocupado com o segundo livro da CCAÇ 2402, mas vou tentar entrar neste blogue, depois da sua aprovação.

João Gomes Bonifácio
Ex-Fur Mil do SAM
Guiné-Bissau 1968/70


2. Comentário de L.G.:

Meu caro João /My dear John:

1. Fico muito sensibilizado com a tua mensagem… Eu sei que a Pátria não foi Mátria para ti, foi madrasta... E eu sou o primeiro a ser solidário contigo, eu que decidi ficar na terra que me viu nascer... Sei que isso não te vai servir de consolo, mas não imaginas o rol de reclamações que recebo neste pequeno canto da blogosfera!... Enfim, o importante é que hoje estejas bem, nesse grande país que eu admiro… Mas as tuas raízes, a tua identidade, o teu passado estão aqui, estão connosco… Nenhum de nós terá futuro, se não souber preservar e até alimentar o passado. A Guiné marcou-nos a todos, com o seu ferrete... Mas foi em português, na língua de Camões, que exprimimos os sentimentos mais nobres ou dissémos os palavrões mais horríveis. João: não adianta. Não se escolhe a Pátria, não se escolhem os pais nem os irmãos, não se escolhe a língua materna... Mas dessa ao menos eu tenho (e tu tens, nós temos) orgulho... É em português, e em bom português, que comunicamos na blogosfera, neste blogue, na nossa tertúlia, nesta caserna virtual onde todos cabemos, de Lisboa a Bissau, de Viana do Castelo a Toronto, de Coimbra a Luanda...

2. A partir de hoje, tu és, de pleno direito, um camarada da nossa tertúlia… O tratamento por tu é natural entre nós… Com o tempo, habituas-te… Entra e acomoda-te: estás em casa… Os camaradas da Guiné não conhecem fronteiras, físicas, simbólicas ou culturais... Vais ver que te faz bem esta blogo…terapia.

Um abraço, um feliz Natal para ti e a tua família…

PS - O João respondeu-me logo na volta do correio:
Obrigado, Luís. Retribuo os votos de feliz Natal e Ano Novo com muita saúde para ti e todos os teus. O uso de João é o indicado. O John é só aqui por razões óbvias. Desculpa a falta de sinais na ortografia, mas os ingleses são assim.
Um grande abraço.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de:

17 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1082: Notícias da CCAÇ 2402 e do BCAÇ 2851 (Raul Albino)

23 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1105: Como escrever um livro de memórias de guerra 'à la carte' (Raul Albino, CCAÇ 2402)

4 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1246: O meu livro Memórias de Campanha da CCAÇ 2402 (Raul Albino)

15 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1282: História da CCAÇ 2402 (Raul Albino) (1): duas baixas de vulto, Beja Santos e Medeiros Ferreira