Guiné- Bissau > Região do Cacheu > Guidaje > Novembro de 2000 > "Foto tirada no Cufeu, quando parámos para o almoço... Hoje está um pouco diferente do que era no meu tempo, em 73/74" (Albano Costa, ex-1º cabo da CCAÇ 4150, Guidaje, 1973/74).
Foto: © Albano Costa (2006). Direitos reservados.
Texto do Albano Costa, recebido em 15 de Novembro de 2006
Comentário de L.G.:
O Albano habituou-se à grafia Guidage, e não consegue escrever Guidaje... Vou respeitar a sua vontade, além de lhe agradecer este texto singelo e solidário, de grande autenticidade humana... Sei que lhe fez muito bem voltar à Guiné, em Novembro de 2000, ainda para mais na companhia do seu filho Hugo, que fez uma excelente - e já muito badalada aqui, no blogue - reportagem da viagem (3 CD, 6 horas, belas imagens, óptima música em fundo, enfim, um trabalho profissional)...
Caro Luís Graça:
Estive uns dias ausente da Net, mas já regressei e tenho estado muito atento ao que se tem escrito sobre o que se passou em Guidage no ano de 1973 (Maio e Junho). É um assunto que me interessa saber e muito, pena que só agora comece a ser contado o que se passou.
A minha companhia não estava lá nessa altura, só foi destacada para Guidage mais tarde. Quando lá chegámos, não sabíamos exactamente o que se tinha passado. Naquela altura era tudo muito fechado, a maioria dos militares que para lá foram na altura do conflito já lá não estavam, vieram embora, e os relatos que agora leio confirmam-no.
Quando lá chegámos só lá estava a CCAÇ 19, companhia, essa, africana. Só os especialistas e graduados eram brancos. Procurava-se não comentar muito para não destabelizar as tropas. Os militares brancos que pertenciam à CCAÇ 19 estavam psicologicamente traumatizados e procuravam não falar sobre o que tinha acontecido. Limitavam-se a dizer que não desejavam a ninguém o que tinham passado. Por seu turno, os nossos quadros superiores procuravam ocultar o sucedido para manter as tropas psicologicamente activas.
Quem conhece Guidage - e eu conheço muito bem, estive lá oito meses -, era um destacamento completamente isolado, ficava mesmo na fronteira com o Senegal. Não se passava nada a não ser receio, não havia gente nova, não era sítio de passagem, ninguém lá ía, eramos sempre os mesmo, enfim, não foi fácil. O isolamento era total, só faziamos colunas de 15 em 15 dias, fora disso estavamos ali sozinhos.
Quando saíamos de Guidage era só para fazer reconhecimento no mato para ver se o IN estaria a organizar algum ataque ou para vir a Binta em coluna sempre com bastantes militares.
Ninguém se atrevia naquela altura a fazer o percurso de Guidage a Binta sem ser em coluna, e aí tinhamos que passar pelo Cufeu. Era sempre com muito cuidado, passávamos sempre pelo cemitério. As NT perderam lá meia dúzia de viaturas e também sabíamos que tinham morrido colegas nossos... Sempre com muito cuidado falava-se que ali tinham havido grandes confrontos com o IN. Toda a gente queria evitar passar lá, mas ao mesmo tempo tínhamos que fazer as colunas.
O Cuféu tornou-se para todos os militares do meu tempo um lugar de muito respeito a partir daquela data. Quando lá se passava dava sempre um calafrio pela nossa espinha dorsal. Só quem lá esteve é que o sente, e eu, ao ler estes textos, deu-me para ver que todos os ex-militares que estiveram nessa altura no conflito, não conseguem esquecer. E não é para menos, todo aquele percurso faz medo, e esse medo ainda hoje os atormenta como lemos nas suas estórias e eu sei que é verdade, mas peço-lhes: Contem tudo o que vos vai na alma, que vão sentir-se melhor a falar nessas coisas...
Eu sei que há colegas que ainda hoje não gostam de falar nisso, vivem atormentados, por isso fiquei muito contente que o A. Mendes e o Vítor Tavares tenham desabafado um pouco da sua vivência. Não parem, passem tudo cá para fora, eu também sofri, mas de maneira diferente, sempre com o pressentimento de que a qualqer momento o IN poderia voltar à carga. E, como já disse, só podiamos ser ajudados por Bigene ou Binta, não tínhamos mais ninguém próximo.
Quando lá fui em 2000, ao passar no Cuféu tudo veio ao meu pensamento, tive momentos de muita tristeza, quem já viu o meu vídeo da viagem dá para notar: é nessa passagem, quando atarcesso Cufeu e Ujeque até chegar a Guidage. Aí, para mim tudo começou a ser diferente, a Guiné passou a ter outra beleza.
Todos os ex-militares que lá estiveram nessa altura, muito, muito difícil, sofreram mesmo muito. Eu quase fiquei paralizado ao ler os vosso testemunhos, confesso que as lágrimas correram pela cara abaixo, mas agora estou a sentir-me muito bem a ler estas estórias, que a história nunca irá contar, por isso caros camaradas desabafem, que vos faz bem.
A minha companhia andou por lá, durante meses, sempre com o mesmo pressentimento que a qualquer momento poderíamos passar por tudo o que vocês passaram. Psicologicamente foi muito complicado, nós estavamos isolados, não tínhamos aviação, estavamos ali à nossa sorte. É que ninguém lá ia a não sermos nós, que tínhamos que vir a Binta sempre que era preciso, não íamos porque queriamos, mas sim quando havia necessidade e isso foi durante todo o tempo em que lá estivemos.
Seria muito bom que estes nossos colegas tivessem possibilidades de lá voltar agora, iriam sentir-se muito mais aliviados, e todo o sofrimento que ainda hoje carregam, estou convencido que se esvaziava.
Quanto ao cemitério que foi o Cufeu e Guidage, eu sempre ouvi falar que morreu lá muito gente, mas ao certo nunca soube quantos. E não sei se alguém sabe ao certo, visto que o conflito se arrastou por vários dias, e não foi sempre com os mesmos combatentes. Enquanto lá estive tivemos apenas uma emboscada no Cufeu, e umas minas na picada.
Quanto ao irem recuperar os nossos mortos a Guidage, ficarei muito satisfeito, mas espero que o lema Ninguém fica para trás, seja para todos os que lá ficaram, afinal são todos portugueses.
Um abraço,
Albano Costa
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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