Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 28 de novembro de 2006
Guiné 63/74 - P1323: Bibliografia de uma guerra (15): Os Mastins e o Disfarce, de Alvaro Guerra (Beja Santos)
Foto de Álvaro Guerra e Capa do livro Os Mastins, seguidos de O Disfarce, 3ª ed. Lisboa: O Jornal. 1986. A capa é da autoria de João Segurado.
Texto, enviado em 24 de Outubro de 2006, pelo Mário Beja Santos, ex-alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70), e actualmente assessor principal do Instituto do Consumidor.
Caro Luís, caros tertulianos:
O blogue está a ganhar qualidade e densidade histórica, para júbilo de todos. Acho que chegou o momento de aprovarmos a admissão na nossa Família, a título honoris causa, do escritor Álvaro Guerra (1936-2002), e pelas seguintes razões.
Primeiro, o Álvaro Guerra combateu na Guiné, entre 1961 e 63. Ferido em combate, parte para França em 1964, onde estudou publicidade na École des Hautes Études de Sorbonne. A sua primeira obra literária intitula-se Os Mastins (1967), a que se segue Disfarce (1969), porventura a obra onde ele mais investiu, descrevendo os combates na guerra. Duas obras subsequentes aludem inequivocamente à experiência guineense: A Lebre (1970) e Memória (1971), que é uma colectânea de contos.
Segundo, como a sua literatura espelha, ele é um camarada da Guiné. Recorrendo a uma trama de ficção em que se joga em permanência o passado e o futuro, Álvaro Guerra é seguramente um dos primeiros grandes escritores que denunciou os horrores dos combates na selva e, reconhecido pela crítica, o maior de todos. Acresce que os seus romances históricos são uma permanente tensão de lutas (de classes, invasões napoleónicas, liberais e absolutistas e praticamente um século da história de Portugal em torno da triologia Café Central, Café República e Café 25 de Abril. Perfeccionista na escrita, diplomata emérito, jornalista respeitado, Álvaro Guerra foi um narrador espantoso de paixões, da violência incontrolada e até da tauromaquia, um pouco ao sabor dessa paixão ribatejana que ele tanto admirava.
No texto que se segue faço o louvor de Álvaro Guerra, pedindo a sua entrada por unanimidade nesta academia de camaradas da Guiné.
Abraços, Mário.
Ao Álvaro Guerra, porque lutando é começar (1)por Beja Santos
Mesmo que mais ninguém escrevesse sobre a guerra na Guiné, considerando aqui a escrita um voo picado sobre a crueldade, recorrendo à ficção e aos dotes da memória, o legado do Álvaro Guerra tem um valor inultrapassável, pesando no juízo de tal valor o facto de os seus escritos serem anteriores ao 25 de Abril. O Disfarce é retintamente autobiográfico. Estão ali registados os seus ferimentos, os tambores da guerra, o inferno da selva, o crepitar das metralhadoras, os momentos de fraternidade, o relâmpago das emboscadas e depois a vida em Paris com a memória sempre a latejar as dores que ficaram depois dos trópicos.
Apelando ao ingresso deste escritor de Vila Franca de Xira no nosso blogue, tornando-o companheiro de uma história em progressão, recordo algumas das suas páginas mais brilhantes, hoje traduzidas em várias línguas. Por exemplo: "O sol engolira as trevas num ápice e a manhã nublava-se de calor. No arrozal, à saída da aldeia, um casal de grus coroados adejava num bailado grotesco; evaporava-se rapidamente a água concentrada durante a noite nas folhas das árvores ainda brilhantes, cheirava a terra, o cheiro intenso e enjoativo daquela terra que ele espreitava por entre o calcar incerto das botas militares e a sombra esguia e movediça do seu corpo. Caminhavam em fila indiana. O prisioneiro levava as mãos atadas atrás das costas e o soldado que vinha a seguir dava-lhe pontapés, de vez em quando".
Mais adiante :"Uma aldeia queimada, havia um cheiro adocicado, enjoativo, quando se aproximaram do que fora Lenguel, aldeia balante, sinais de chamas recentes, devastação, e o povo escondido no mato. Tropeçou na carcaça calcinada de um boi cujos os ossos amarelados se desconjuntaram, no meio de cinzas e destroços, pilões lambidos pelo fogo, cabaças enegrecidas, restos de primitivas enxadas de madeira, os gigantescos potes com as grandes bocas negras como os rombos enormes nos seus ventres vazios, e as paredes em ruína das cubatas sem tecto. Extensa, a bolanha estendia-se diante da aldeia queimada, a bolanha empapada, escaldante, febril, onde o arroz apodrecia na ponta dos cales amarelos a tombarem para a água, cansados de esperar quem os viesse colher... Timidamente, mulheres com os filhos às costas, crianças nuas e meia dúzia de homens válidos surgiram do mato, rápidos olhares furtivos nos seus rostos sérios, e foram-se reunindo, muito juntos e silenciosos, no meio da aldeia devastada - era o povo de Lenguel diante das suas casas queimadas".
E por fim, o horror da emboscada, notavelmente descrita: "Caiu em cima deles a surpresa, uma chuva de ferro, estampidos e silvos de árvore vergastado e quedas e ramos partidos e pragas e explosões e o gargalhar fantasmagórico das rajadas matadoras e o homem ao lado dele com o sangue no ventre nãos mãos que disse 'Ai, mãe!' e morreu... Quando o combate acabou ou suposeram que tinha acabado, porque a lamúria dos feridos se tornara mais nítida na imobilidade e silêncio da trégua, uma voz escondida anunciou a morte do 38 que, somado ao cadáver de ventre e mãos sangrentas e fora o 71, perfazia dois números a riscar naquela danada matemática" (...).
A obra de Álvaro Guerra aparece impregnada da saudade da casa e das noites imemoriais do soldado de África que ele foi. O protagonista que ele criou anda ferido em Paris e o seu ajuste de contas com os demónios da memória é ferida por sarar. Ele disfarça mas não cura. Não chora mas a guerra de África mantém-no comovido. Bastaria o vigor desta escrita para ele ter lugar entre os camaradas da Guiné que somos e seremos (2).
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Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 17 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1285: Bibliografia de uma guerra (14): Rumo a Fulacunda, um best seller, de Rui Alexandrino Ferreira (Luís Graça)
(2) Comentário de L.G.: Esta é uma tertúlia de vivos, não... o panteão nacional.
Louvo a iniciativa e a oportunidade do Beja Santos, ao evocar aqui a figura de um camarada de armas da Guiné, desconhecido ou pouco conhecido da maior parte dos nossos tertulianos... Mais do que uma recensão bibliográfica, é um acto de justiça: sem dúvida que o Álvaro Guerra é um dos nossos, e para mais é um grande escritor... Mais ainda: um escritor pioneiro, no que diz respeito à temática da guerra colonial... Mas, infelizmente, estando já desaparecido - tal como Salgueiro Maia e outros que já nos deixaram e que também escreveram livros - eu tenho pessoalmente alguma relutância em apropriar-me do seu nome, da sua vida e da sua obra...
Ao criar ao blogue, não previ nenhum quadro de honra para os amigos e camaradas da Guiné, mas podemos vir a criá-lo se for essa a vontade da maioria de nós... Sou capaz, todavia, de antever algumas dificuldades quanto à obtenção de consensos - já não falo na impossível unanimidade em matéria de opiniões - sobre as figuras que podem e devem nele figurar... por causa da honra (honoris causa) (4).
Eu sei que o Beja Santos fá-lo por um impulso de generosidade e de justiça. Mas eu não posso secundar a sua acção - aliás, já lho comuniquei e ele compreendeu e aceitou muito bem as minhas razões- , utilizando um argumento de autoridade...
A verdade, meu caro Mário, é que uma grande parte de nós nunca leu (ou ouviu falar sequer do de) o Álvaro Guerra... Se ele tivesse vivo, poderíamos convidá-lo a entrar na nossa tertúlia... Já não estando entre nós, acho abusivo ou até pretensioso... Acho sempre abusivo - para dizer hipócrita - a apropriação que se faz, neste país, dos nossos escritores e artistas que só são grandes e reconhecidos depois de mortos (Camões, Amadeo Sousa Cardoso, Fernando Pessoa ou, mais recentemente, Mário Cesariny...).
A melhor homenagem que podemos prestar ao nosso ilustre camarada Álvaro Guerra, ribatejano de Vila Franca de Xira, é ler os seus livros e falar deles, na nossa 'caserna virtual', e sermos dignos do seu exemplo Recordo o aqui as palavras que ele escreveu para o curto prefácio desta edição de O Jornal:
"Os textos que se seguem foram escritos quando escrever em Portugal era lutar pela liberdade contra a ditadura, pela livre expressão contra a censura, pela dignidade contra a humilhação(...).
"Se o bem mais precioso que um escritor, no seu trabalho, pode desejar é a liberdade de expressão, será oportuno reconhecer que esse é um bem no activo do que mudou em Portugal" (Álvaro Guerra) (4).
...Enfim, gostaria de ouvir a opinião dos amigos e camaradas da Guiné sobre este assunto.
(3) O que quer dizer honoris causa ?
(...) "Os graus académicos constituem o reconhecimento por parte da Universidade de que o graduado atingiu determinados patamares do conhecimento científico. Bacharelatos, licenciaturas, mestrados e doutoramentos são esses graus académicos. O doutoramento é o grau mais elevado da formação científico-académica, grau esse que normalmente se obtém após anos e anos de muito estudo e intensa investigação, anos de trabalho duro e de espírito de sacrifício.
"Qual o sentido então de um doutoramento honoris causa, de um doutoramento justificado pela honra e não directamente pelo estudo e saber científico? O sentido está em a universidade reconhecer desse modo que actos, obras e vida de uma pessoa atingem e ultrapassam o melhor que nela se consegue. A universidade associa-se à excelência que determinada pessoa alcançou na sua área de saber, na sua profissão, no serviço prestado à comunidade. Mesmo nos casos em que são cientistas os distinguidos com o doutoramento honoris causa, a universidade honra toda uma obra que em muito ultrapassa os limites das exigências académicas.
"Tive a fortuna de assistir em 18 de Setembro passado à cerimónia em que a Universidade de Harvard deu o doutoramento honoris causa ao Presidente Nelson Mandela. Era o lutador pela liberdade do seu povo, pela democracia e paz de uma nação, que aquela universidade americana honrava. Honrava a obra e a vida de um homem de oitenta anos, de que vinte e sete tinham sido passados na cadeia. Mas também a mesma universidade havia dado em 1996 um doutoramento honoris causa a uma mulher de 86 anos cuja vida fora passada a lavar roupa. Essa mulher, Oseola McCarthy, havia doado todo o dinheiro que acumulara ao longo da sua vida à Universidade do Missippi do Sul para a ajuda de estudantes negros necessitados.
"Um doutoramento testemunha um saber científico específico, mas um doutoramento honoris causa reconhece a sabedoria de uma obra" (...).
Fonte: António Fidalgo > Crónicas > Corte na Aldeia > Jornal do Fundão > 9 de Outubro de 1998 > Honoris Causa
(4) Alguns sítios na Net sobre o Álvaro Guerra:
In Memoriam Álvaro Guerra (1936-2002)
Público > Colecção Mil Folhas > Tiragem de 100 mil exemplares > Razões de Coração, de Álvaro Guerra
Citador > Leituras > No Jardim das Paixões Extintas [2002], de Álvaro Guerra
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