segunda-feira, 27 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1319: Blogoterapia (4): A alegria de encontrar a minha gente de Fá Mandinga e Missirá (Jorge Cabral)

Mensagem do Jorge Cabral, ex-Alf Mil, Cmdt do Pel Caç Nat 63 (Bambadinca, Fá Mandinga e Missirá, 1969/71).

Amigo:

Renovo o meu agradecimento. Obrigado, Luís! Graças ao Blogue recuo no tempo, recupero lembranças e reconstituo alguma da minha juventude. Recuo, recupero e reconstituo, mas não me reconstruo. Assumo-me exactamente como fui, não me invento enquanto personagem, nem me atribuo papéis que nunca desempenhei.

Passaram muitos anos mas conservo intactas as opiniões que então formulei sobre quem conheci. Opiniões então fundamentadas, quer no contacto pessoal, quer nas informações prestadas por outros camaradas.

Continuo a ser um leitor compulsivo e adoro ficção, mas nunca por nunca, me permito confundir imaginação com realidade.

Como era eu, em Jovem?

Incorporado aos vinte e três anos, quando frequentava o 4º ano da Faculdade de Direito, dedicava-me porém mais às letras, tendo já publicado poemas e contos. Lia muito e seguia atentamente tudo o que parecia moderno ou diferente, desde o Noveau Roman [, o Novo Romance], principalmente de Robe-Grillet, à poesia concretista.

Amante do teatro do absurdo, idolatrava Yonesco, que vi representado em Lisboa por uma companhia belga. Ia muito ao cinema e delirava com Bergman.

Devia ser um snobe intelectual, insuportavelmente pretensioso, que até se julgava culto. Claro que a curto prazo entendi que a cultura não se mede pelos livros ou filmes, lidos e vistos, mas pela capacidade de compreensão do outro na plenitude da sua diferença.

Dessa forma procedi nos Destacamentos [, Fá e Missirá], e aprendi muito, com os africanos mas também com os furriéis, cabos e soldados metropolitanos.

Jovem universitário urbano, conheci outro Portugal. Com eles agora comento o Blogue, e revisito o nosso Missirá, onde infelizmente nunca ouvimos ópera, nem usufruímos de cozinheiros diplomados, que nos preparassem chá com torradas.

O nosso cozinheiro era um básico posto ali por castigo, que um dia desatou a chorar porque eu, farto da sua manifesta inaptidão, lhe ordenei para o almoço... piças fritas (sic).

Líamos todos intermináveis fotonovelas, e escutávamos uma melodia em crioulo, que repetia escadeirada, escadeirada (1), além da Desfolhada, e do Elvas oh! Elvas, Badajoz à vista. Do Zeca Afonso nada, sabiam lá eles quem era…

Partilhávamos madrinhas de guerra, e um dia hei-de contar a minha correspondência com uma, para a qual inventei um país, com leões, tigres, elefantes e ferozes pigmeus canibais…

São também eles que agora me exigem que fale do nosso Missirá, que foi real e existiu, da nossa amizade e das nossas estórias.

Será talvez só por eles, que tentarei continuar…

Abraço Grande
Jorge Cabral


P.S./1 – Junto estória (Hortelão e Talhante: A frustração do Amaral)

P.S./2 – Na semana passada vivi uma grande alegria. Fui ao Rossio comprar cola e encontrei gente de Fá Mandinga.

_________

Nota de L.G.:

(1) O Jorge deve querer referir-se ao Nho Antone Escaderode, talvez a mais conhecida das coladeiras, de autoria de Gregório Gonçalves, imortalizada por grandes cantores cabo-verdianos como Bana, Tubarões ou Cesária Évora... A sua música - irresistível mesmo para um pé-de-chumbo, como eu - está nos ouvidos de todos nós... O Nho Antone Escaderode está para a coladeira assim como a Sodade está para morna: são duas obras-primas da música de Cabo Verde... A letra já é mais complicado entendê-la e decorá-la, tirando o refrão que é simples... Aqui vai uma ajudinha:

Nho Antone Escaderode(Gregório Gonçalves)


Primera vez
Qu’m ba na Rebera Grande
‘M passa sabe
Fui dente dum reservado

(Refrão:)


Oh Nho Antone Escaderode
Escaderode, Escaderode,
Oh Nho Antone Escaderode
Escaderode, Escaderode,

Nós era três
Que t’ma un estamperode
Quande no sai
Nô ta que palpite descomandode

(Refrão:)

Oh Nho Antone Escaderode
Escaderode, Escaderode,
Oh Nho Antone Escaderode
Escaderode, Escaderode,

Cesária Évora > CD > Café Atlântico (1999)
Copyright Editions Lusafrica

Tenho este CD, mas também é possível encontrar a letra, em crioulo (e a sua versão inglesa) na na página pessoal de... um italiano, apaixonado por Cabo Verde, Eraldo De Gioannini. A página tem justamente como título Cabo Verde > http://www.caboverde.com/... A página é em inglês... Um excerto musical de Nho Antone Escaderode (e de outras canções conhecidas, da Cesária Èvora e outros intérpretes) pode ser ouvido em:
A letra conta a história de um tipo - o senhor António - que a primeira vez que foi à vila e sede de concelho da Ribeira Grande, na Ilha de Santo Antão - justamente conhecida pelo seu grogue ou cachaça - foi beber un copos, num bar manhoso (reservado)... Eles eram três e o pobre do António quando saiu vinha todo... escaderode, que é como quem diz: apanhou uma valente piela...

Sem comentários: