quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

Lisboa > Há alguns anos atrás > O Beja Santos, ladeado pela esposa Cristina e uma amiga, toma chá com dois dos seus antigos homens do Pel Caç Nat 52. Ao longo destes anos todos, ele tem sabido cultivar e manter a sua forte ligação, histórica e afectiva, com as terras e as gentes do Cuor... É frequente encontrar-se com o Queta Baldé, que é segurança numa empresa, na zona centro de Lisboa. Ainda hoje os seus antigos homens procuram o nosso alfero (1), uns mais desinteressadamente, outros menos...


Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados



Texto recebido em 2 de Novembro de 2006. Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, como alferes miliciano e comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (2).



Caro Luís, de surpresa em surpresa, vou desatando os cordões à memória. A vinda do 126 foi de grande importância. E ele ainda tem muito mais coisas para contar. Sinto-me constrangido, pois não tenho sugestões para ilustração. É a minha vez de esperar um milagre da tua parte, com o Rio Geba, o macaréu, o porto de Bambadinca. Não te esqueças que ainda tens do meu álbum de glórias aquelas meninas no "Fanado", na rua principal de Bambadinca. Obrigado pelo teu entusiasmo na colaboração que me tens dado. Momentos há em que eu ponho em dúvida que tudo isto aconteceu, no todo ou na parte. Mas temos muitas responsabilidades com os nossos mortos e feridos, doa a quem doer é melhor que se saiba agora tudo o que se passou, enquanto estamos vivos. Merecemos esta dignidade.

Um abraço do Mário.


Aqui, nesta casual distracção do destino
por Beja Santos


Chegou o momento de algumas confissões íntimas. Dou comigo a trocar datas, nomes, situações, conversas e eventos bélicos. Tomei a decisão de pedir auxílio, para não incorrer na suspeição de charlatanismo ou da aparência de um estado de vanglória associado a uma lembrança prodigiosa de todo o currículo da comissão. Lancei alguns gritos de auxílio e o primeiro que me chegou foi o Queta Baldé, que conheci com o nome 126.


Queta Baldé: ex-comando, exilado no Senegal, segurança em Lisboa

O Queta apareceu-me aqui há uns dias no trabalho pelas 8:30, vindo da sua noite como segurança numa empresa entre o Saldanha e o Marquês de Pombal. Conheci-o a arrastar os pés e não se tornou mais ligeiro com a idade. Às vezes, quando vem conversar aqui comigo lança-me um olhar que parece de um animal doído com os raspanetes do dono.

Ele tem algumas razões para mostrar um semblante marcado pelo sofrimento. Em 71, saiu do Pel Caç Nat 52 e alistou-se na 2ª Companhia de Comandos Africanos. Em 74, com a independência, fugiu de Cuntima para não ser baleado num daqueles delírios de ajuste de contas. Viveu sete anos no Senegal, lá conseguiu um visto, depois adquiriu nacionalidade portuguesa, trouxe filhos do primeiro casamento, voltou a casar e foi viver para Chelas J, numa autêntica alfurja. Mas não resistiu a ser útil a nosso alfero, que lhe pediu para retorcer os subterrâneos da memória.

Sentou-se, cruzou as pernas, ouviu a descrição do meu penar à volta de datas baralhadas, acontecimentos esvaídos, nomes perdidos. Sorriu e perguntou-me:
- Quer que eu comece por lhe dizer quem fazia parte do pelotão?


A composição do Pel Caç Nat 52


Tirou um papel e deu-me o nome de toda a gente. Nos furriéis, ele insistia no nome do Altino, esclareci-o que em Agosto de 68 só lá estavam o Saiegh e o Domingos Ferreira. Depois fomos para os cabos, as nossas listas coincidiam. A seguir, ao enunciar os soldados lembrou-me que o bazuqueiro conhecido por Campino se chamava Adulai Djaló e ficara gravemente ferido numa perna, o mesmo tendo acontecido a Sabidi Camará, Mamadu Camará e Samba Matei.

Eu já tinha esquecido Tomani Sanhá e Dembo Djassi. De repente, olhou-me e perguntou:
- O ferimento do Moli Baldé não lhe diz nada? - Ora o Moli Baldé tinha sido a primeira história quase milagrosa que eu tinha ouvido falar. Em 67, durante uma operação ao Buruntoni, uma bala teria passado de raspão num dos olhos de Moli, ele cegara e passar à disponibilidade. Achei aquela história uma fábula, algo de inacreditável, uma bala que raspa mas não mata. Como o dito Moli viva em Bambadinca e fazia comércio, pedi para mo apresentarem. O inacreditável é que uma bala passara junto de um olho e ele cegara mesmo. Nada de reparações de guerra (a legítima pensão), fora passado à disponibilidade. Ainda o levei à Secretaria do Batalhão, recordo-me que se abriu um processo e veio-se a descobrir... que o seu nome não constava da relação dos feridos no relatório da operação.



O jejum do Ramadão

Depois desta memória, o Queta Baldé continuou:
- Sabe o que é que aconteceu no dia em que chegou a Missirá? De manhã muito cedo, na fonte de Cancumba, quando fomos buscar água para os banhos, havia lá um grupo de gente de Belel, deu uns tiros por cima das nossas cabeças e deixaram na fonte um plástico cheio de papéis a convidar-nos a ir para o mato. Eu quero dizer a nosso alfero que quando me telefonou me lembrei logo de uma coisa que se passou no Ramadão, quando foi discutir com o padre que não podíamos fazer o jejum.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Cuor > Missirá > Pel Caç Nat 52 > O Alf Mil Beja Santos, rodeado das autoridades civis e religiosas de Missirá, em dia de Ramadão. O velho régulo Malã Soncó está à sua esquerda.

Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.


E prontamente iluminou-se-me o espírito. Com as idas diárias a Mato de Cão, e às mais desvairadas horas, comecei a notar gente combalida, ausente, mostrando sinais de desmaio iminente. E quando começaram mesmo os desmaios, chamei os cabos e pedi um esclarecimento que prontamente me foi dado: é o jejum do Ramadão.

Reuni o pelotão, pedi aos cabos para traduzirem textualmente em crioulo a mensagem de que não consentia continuar a vida operacional em tais condições e queria saber o que é que os soldados pretendiam fazer. Depois de alguma conversa em semi-privado, o Domingos Silva sentenciou:
- Não há solução, é a lei de Deus. Nosso alfero que vá falar com o padre.

E fui mesmo falar com Lânsana Soncó, padre e meu vizinho (3). Lânsana foi categórico:
- O jejum é para todos .- À beira de uma apoplexia, fui consultar o Corão. Logo descobri que entre as excepções ao jejum estava a guerra. Dada a explicação a Lânsana, este remeteu a decisão final para o régulo Malã Soncó. Li a passagem do Corão e disse-lhe:
- Régulo, tenho pouca tropa, com estas chuvas tenho cada vez mais gente doente, eu próprio me ando a arrastar, são os patrulhamentos a Mato de Cão, a Mato Madeira, as emboscadas nocturnas, até junto ao Gambiel. Não posso andar com gente esfomeada e a cair aos bocados. Se decidir que o jejum é para cumprir rigorosamente, diga-me já pois eu vou-me embora.

O régulo pediu-me para analisar a situação e no dia seguinte confirmou que toda a tropa estava informada que devia comer de manhã, à tarde e à noite.

Queta Baldé voltou a puxar do papel onde trazia as suas lembranças, deu uma gargalhada e perguntou-me com voz tonitruante:


O Alfero Reis, sapador, que parte mantenhas com gente de Madina/Belel (4)


- O nosso alfero lembra-se da primeira vinda do alfero Reis, o sapador, que queria armadilhar tudo à volta de Missirá?

Então, não havia eu de me lembrar? Eu pedira ao 2º Comandante, o Major Bispo, que a equipa de sapadores me ajudasse a armadilhar alguns pontos nevrálgicos em torno de Missirá. Concretamente, junto da fonte, no caminho entre Morocunda e o palmeiral em frente a Missirá e os caminhos que tinham servido de aproximação nas flagelações de 6 e 26 de Setembro. E um dia apareceu-me o Reis em Bambadinca dizendo-me que estava pronto para partir. Veio e avisou-me que tinha trabalho para duas semanas. Mostrei surpresa ao que ele respondeu:

- Ouve, tu não sabes nada do ofício. Primeiro, vou armadilhar tudo à volta do quartel. Mal para os turras, mal para os macacos, mal para quem se aproximar. Segundo, vou pôr cargas potentes em todos os acessos, com excepção das picadas para a fonte e o caminho para Canturé e Finete.

Entendi que o melhor era conversarmos em privado, expliquei-lhe serenamente que tinha dezenas de crianças, que a população civil cultivava os campos à volta, que não estava nos meus objectivos caucionar mais acidentes como o do Abudu Cassamá, a desditosa criança de Finete brutalmente afectada pela explosão de uma granada incendiária. Arrufado, o Reis exigiu armadilhar longe mas sem a minha presença. Aqui o Queta Baldé voltou a rir-se:

- O nosso alfero sabe o que é que o alferes Reis fazia? Levava folhas grandes e pregava nas árvores frases como Aqui esteve o Reis que vos manda cumprimentos, meus grandes paneleiros!.

O Reis colou-se-me à existência. Vai estar em Missirá no grande incêndio de Março e chegará a Bambadinca com roupa emprestada. Não perdeu a mania da perseguição, e de vez em quando vem aqui a toda a hora soprar-me ao ouvido maquinações atribuíveis a estranhíssimas ligações entre a direita e a esquerda...


O Zé Paz, o oficial mais punido da Guiné


A manhã vai alta quando o Queta recorda a história do soldado Fernandes e do alferes que apareceu sozinho em Missirá. Eu gostava de perguntar aqui no blogue se fazem ideia qual o oficial mais punido durante a guerra da Guiné. Não sabem? Pois foi o alferes José Manuel Paz, punido em todos os batalhões de infantaria, artilharia e cavalaria.

É verdade que um dia estava eu no palmeiral com os soldados a cortar madeira para os abrigos, quando me chegou o soldado Mamadu Silá a arfar:
- Meu alfero, chegou um alfero rupeu (europeu), vem sozinho e desarmado e perguntou por si. O que é que eu faço?.

Quem devia fazer alguma coisa era eu. Lá fui com o coração aos saltos e de facto era ele, o Zé Paz. Tínhamo-nos conhecido na infância, ele era filho da Sra Dona Arminda Paz, a chefe da contabilidade da Maternidade Dr. Alfredo da Costa. Sabia que eu estava também na Guiné, vinha punido não sei de que aquartelamento do Sul, assim que o informaram onde eu estava partiu sozinho. Em Finete, ainda o escoltaram até perto de Canturé mas ele enxotou a coluna de milícias, seguiu sozinho, entregue ao seu destino.

Como é que ele era punido? Ao que me disseram, era sacramental oferecer-se para jogar bridge, fosse qual fosse a linha que se formasse, o Zé Paz, logo que negociado o jogo, comentava, por exemplo:
- O meu Major é parvo. Abre com um ouro e tem jogo de um sem trunfo. Deve ser surdo, respondo com duas copas e fecha em três sem trunfo. Se não sabe jogar, ponha-se ali ao canto a fazer paciência com o baralho de cartas.

Inevitavelmente, cairão mais dez dias de prisão disciplinar agravada. Naquele dia, acolhi com imensa satisfação o Zé Paz e levei-o até Finete. Ficou muito pouco tempo em Bambadinca e não voltei a vê-lo durante a guerra. Apareceu-me, em Janeiro de 82, no velório da minha Mãe, e mesmo aqui envolveu-se à zaragata com um antigo oficial pára-quedista, o Jorge da Cunha Fernandes.

Nosso alfero tirou sossego a gente de Madina/Belel


Dou comigo a pensar que estamos a entrar num dos períodos mais duros, com os patrulhamentos a Chicri. No primeiro, morrerão civis, ao cair da noite. No segundo, irá acontecer o Presépio de Chicri, o meu maior sofrimento que não desejo a ninguém. Disse-me o Queta que toda a gente sabia que os de Madina/Belel cambavam o Geba junto de Malandim, e iam até Nhabijão Bulobate e Nhabijão Imbume e Bedinca. Com um ar muito sereno disse-me o Queta:
-Tinham uma canoa enterrada na lama. Trocavam comida e obtinham informações sobre o que se passava em Bambadinca. Nosso alfero tirou-lhes o sossego.


Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Destacamento do Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1972 > Na altura era comandante desta unidade o Alf Mil Joaquim Mexia Alves. Em 1971, alguns militares, como o Queta Baldé ou Mamadu Camará (3), que vinham do tempo do Beja Santos (1968/70), tinham-se alistado nos Comandos Africanos.

Foto: © Joaquim Mexia Alves (2006). Direitos reservados


Mesmo com toda esta dureza que se avizinha, eu tenho que vos contar como o Furriel Casanova cuidou do pequeno Braima Candé e o David Payne Pereira mandou a Bissau Braima Mané. Neste período oiço intensamente música barroca e romântica, com Bach e Telemanne, Grieg, Beethoven e Schumann à cabeça.

E tenho que vos dar as minhas impressões sobre o que representou, depois de ter lido Uma Abelha na Chuva, de Carlos de Oliveira, um monumento literário, O Delfim de José Cardoso Pires que ainda hoje guardo, escaqueirado pelas andanças do tempo. Eu estou a habituar-me a viver perigosamente mas ainda cheio do encanto adolescente pelas portas do mundo que se escancaram à minha passagem. Passo a contar, e mais tarde vou socorrer-me da memória dos outros. Até porque o Queta, que hoje veio aqui desinquietar lembranças estagnadas, prometeu voltar.

________


Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 4 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1149: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (15): Exmo Sr Alferes: Quero ir para Lisboa

(...) " Passou por aqui há dias o Queta Baldé, antigo soldado do Pel Caç Nat 52. É segurança nocturno numa empresa das redondezas, e de vez em quando vem partir mantenha. Trouxe-me uma carta datada de 1 de Janeiro, de Bissau, e assinada por Jobo Baldé. A fotografia dele já aqui apareceu, era o nosso padeiro a quem demos uma concessão de vender algumas fornadas de pão à população civil" (...).

(2) Vd. último post desta série > 22 Novembro 2006 > Guiné 63/74 - P1304: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (21): A viagem triunfal do Pimbas a terras do Cuor

(3) Sobre o marabu ou padre de Missirá, vd. posts de:

11 Outubro 2006 > Guiné 63/74 - P1165: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (16): O meu baptismo de fogo

(...) "Estava na página 216 quando o primeiro rebentamento de canhão sem recuo veio cair nas traseiras do meu vizinho, o Padre Lánsana Soncó, com quem, dentro de dias, irei ter uma espinhosa discussão doutrinal acerca do Ramadão e da ira de Deus. Sentei-me tenso até que o estralejar das costureirinhas e o encadeamento de várias morteiradas me levou directamente para um abrigo onde, como em cinemascópio, as frestas central e laterais me permitiram ver alguma latitude da linha de fogo" (...)

14 de Setembro de 2006> Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido

(...) Sentavam-se pois à mesa o oficial, os furrieis e as praças num total que variava entre seis e onze pessoas. Era neste espaço que de vez em quando eu convidava Lânsana Soncó, o marabu, para tomar chá e comer pão fresco feito por Jobo Baldé" (...)

(3) Vd. post de 13 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1068: O álbum das glórias (Beja Santos) (2): Misérias e grandezas de Mamadu Camará

(...) "Mamadu Camará: Era o 222, soldado indómito, de quem guardo a memória do seu companheirismo.

"Foi Furriel na 1º Companhia de Comandos Africana , perdeu um pé numa emboscada algures no Sul (creio que na mata do Fiofioli), veio para Portugal em 71 e cá vive. Foi o primeiro a dar muito trabalho antes da desconolização pois juntou-se a uma cabo-verdiana que tinha o morto o primeiro marido com um facalhão de talho e fez-lhe a vida mais negra do que ele era.

"Havia, salvo erro, 5 filhos fora do casamento, tive de andar pelas misericórdias a pedir ajuda, os míudos cresceram e hoje aparecerem-me já com filhos" (...).
(4) Região, a noroeste de Missirá, sob controlo do PAIGC, "região libertada", segundo a propaganda da guerrilha. As NT aventuravam-se a lá ir, uma vez por ano, na estação seca, em operações a nível de batalhão: foi o caso da Op Anda Cá (1969), e da Op Tigre Vadio (1970), já aqui evocadas no nosso blogue.

Sem comentários: