segunda-feira, 25 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1113: Notas de leitura (1): Dez razões para ler 'Em tempos de inocência', diário do Embaixador A. Pinto da França (Beja Santos)

Recensão bibliográfica do livro Em tempos de Inocência – Um Diário da Guiné-Bissau, de António Pinto da França. Lisboa: Prefácio, 2005.192 pp. (Prefácio de Francisco Seixas da Costa).


Em tempos de inocência

por Beja Santos


De 1977 a 1979, António Pinto da França (1) foi embaixador de Portugal acreditado na Guiné-Bissau. Ele regista em forma de diário estes primeiros anos da independência, descrevendo com simplicidade e por vezes uma atmosfera quase mágica a vida da Embaixada, os membros do corpo diplomático, as compras, os passeios, os encontros, os ambientes múltiplos, alguns momentos históricos. Há pitoresco, desabafo íntimo, melancolia, registo meticuloso daquilo que não mudou no tempo africano.

"Em Tempos de Inocência, um diário da Guiné-Bissau", por António Pinto da França (Lisboa, Prefácio, 2005) é uma obra de indiscutível interesse para conhecer os tempos ingénuos e tumultuosos que se seguiram à nossa passagem na guerra colonial. Um diário que tem total cabimento ser conhecido por todos. Como vou procurar demonstrar.

Primeiro, a saborosa observação do quotidiano íntimo, anotando ambiguidades, vaidades de políticos e diplomatas, cooperantes idiotas, populações aderentes à independência do País e ao amor a Portugal. Naquele tempo Bissau era uma cidade limpa, com a sua atmosfera extravagante dada pelos sons, as cores das gentes, o fervilhar de um cosmopolitismo pobre mas divertido.

Segundo, as notas sobre a classe política têm uma importância primordial, registando o poder mestiço de gente muitas vezes proprietária e convicta de mudanças prodigiosas em curto espaço de tempo.

Terceiro, a compreensão do grande vulto que foi Amílcar Cabral.

Quarto, a crítica poderosa à incompreensão dos diplomatas acreditados sobre a realidade da Guiné-Bissau.

Quinto, uma água-forte da cooperação portuguesa, dividida entre a dedicação pura, os interesses materiais e os partidários.

Sexto, um registo do espaço e do lugar que certamente os historiadores irão um dia a visitar. Oiçamo-lo a falar das suas visitas por Bissau nas compras: "Hoje, não tem papel higiénico, mas tem, por uma pechincha, uma travessa de prata alemã, miragem impossível em Lisboa. Ontem não tem pasta de dentes, mas está ali a Enciclopédia do Humor português esgotado em Portugal. Anteontem, não tem cola, mas encontra-se por acaso um motor para a central da Embaixada que, há semanas, se pede inutilmente ao Ministério, ou um álbum para fotografias que há meses aguardo ansioso de Nova Iorque... Nas lojas, paira no ar, não sei porquê, um cheiro asiático a especiarias. As mercas saem poeirentas de recantos insuspeitos e assalta-me a sensação de um mundo escondido inacessível e uma saudade como daquelas coisas que se finam e não voltarão jamais".

Sétimo, lança um olhar feliz e comprometido sobre a cimeira de Bissau, que reuniu Ramalho Eanes e Agostinho Neto e depois a visita oficial de Ramalho Eanes ao país.

Oitavo, sente-se o prazer pela comunicação escrita, a vontade irreprimível de por no papel aquilo que não cabe na viva voz. Assim: "Gosto cada vez mais de escrever e menos de conversar. No papel as ideias alinham-se serenas, direitinhas, e as palavras encadeiam-se escolhidas, apropriadas umas às outras. Enquanto se escreve nada nos distrai de nós próprios e descobrimos, de repente, que uma charada nossa, por longo tempo indecifrável, surge no papel resolvida, clara e evidente. A palavra, a conversa, é sempre desde o início um duelo. Mais que chegar a uma conclusão, importa marcar pontos no jogo do diálogo. As ideias entram no jogo e vão traindo a fonte, para se ajustarem ao fim primordial de se sobreporem às palavras dos outros".

Nono, o registo daquela direcção do PAIGC, que depois se veio a descobrir que depositava os seus adversários na vala comum e que escondia irresponsavelmente a questão fundamental do contencioso Guiné/Cabo Verde pela presença portuguesa. Obviamente que o pensamento de Amílcar Cabral ainda era omnipresente e a nova classe política apercebeu-se do significado de falar português e de cultivar memórias como enclave no meio da cultura francesa.

Décimo, o orgulho pela obra feita, o Centro Cultural Português, inaugurado durante a visita de Estado, em Fevereiro de 79 (2).

Ao despedir-se do leitor, Pinto da França diz-nos: "Achei emocionante ser testemunha dos primeiros passos de um novo país em condições tão desastrosas. Por vezes tive a sensação de assistir a um parto dramático... Vai comigo uma suave recordação do povo guineense, da sua nobreza, da sua afabilidade, da sua hospitalidade, da sua sensibilidade da sua resignação ao sofrimento, da sua inocência. Ensinaram-me algumas coisas importantes".

A História, com efeito, preparava-se para um grande salto. Em breve a Guiné vai conhecer mais esperanças e novos sofrimentos. Mas isso será a História para outro diário de embaixador...

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Nota de L.G.

(1) Segundo a Lusa (9 de Março de 2006), António Pinto da França iniciou a sua carreira diplomática em Jacarta, Indonésia, como Encarregado de Negócios (1965-1970), tendo depois passado pela Embaixada da Delegação Portuguesa junto do Conselho da NATO, em Bruxelas. Foi na Guiné-Bissau que, pela primeira vez, exerceu funções de embaixador de Portugal. Angola, Alemanha, Santa Sé e Malta foram outras representações diplomáticas portuguesas que chefiou posteriormente.

(2) Informação constante do sítio do Instituto Camões: Abertura: 1994. Responsável: Frederico Silva . Localização: Av. Cidade de Lisboa, CP 76, Bissau. Tel +245 203 395 / 212 741; fax +245 201514; e-mail: ica.ccpbissau@sapo.pt

De entre as obras já publicadas pelo Centro Cultural Português, cite-se a título de exemplo o livro Poemas, de Artur Augusto da Silva (Bissau, Centro Cultural Português, 1997, 77 pp.). O autor, já falecido, era o pai do nosso amigo, camarada e irmão Pepito (ou Carlos Schwarz). Artur Augusto da Silva é também autor do delicioso livro de contos O Cativeiro dos Bichos (Bissau, 2006): vd. posts de

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)

16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se!

20 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Antologia (38): O cativeiro dos bichos (Artur Augusto Silva)

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