Queridos amigos,
Annette Cantinaux está enternecida com o seu primeiro Natal português, desabafa com um amigo de longa data, há perto de 30 anos que percorrem os países da Comunidade Europeia como intérpretes, sente-se radiante pelo acolhimento do seu adorado, a família acolheu-a de braços abertos, já passou o Natal e há reuniões já previstas com os filhos, voltarão todos a estar juntos no que eles chamam o Ano Bom. E nessa intimidade familiar entrou uma confissão de um Natal vivido em Missirá, o mais inesquecível dos Natais, a mais iluminada das festas, pela congregação das recordações de origem, pelos alimentos que traçam união entre os portugueses, e por se ter oferecido um tanto de alegria àquele povo que apreciou canja de galinha, que até meteu hortelã, imagine-se, cabrito assado bem passado pelo alho, houve que lamentar não se ter posto um pouco de vinho, não faltou louro e boa pimenta, arroz-doce preparado com leite enlatado, e algumas iguarias que sobraram da Consoada, onde houve devaneios com boa pinga.
Annette está feliz, sente-se em casa ao lado do seu adorado, mas regressa dentro de dias à rotina profissional, e tem os filhos à espera, precisam do seu afeto e da sua ajuda pecuniária. Sofre com a partida, mas tem que ser, há sempre que ganhar balanço para superar este novelo da ausência, e num horizonte que mete talvez dez anos. Serão os dois capaz de viver assim? E como ela agora sofre, já que abandonou o estatuto de mulher só... E vem agora um período dolorosissimo das agruras trazidas pela guerra.
Vamos contá-las.
Um abraço do
Mário
Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (28): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Carta de Annette Cantinaux para Julien Beuys, de profissão intérprete, natural do Luxemburgo, seu amigo desde o início da carreira profissional de ambos, há perto de 30 anos, datada de Lisboa, 28 de dezembro:
Très cher Julien,
Espero que tenhas tido um Natal cheio de alegrias na companhia da Yvonne, filhos e noras. Aqui me tens a dar-te algumas notícias do meu primeiro Natal português. O Paulo dá uma enorme importância ao jantar e à Consoada, o jantar é típico, imagina que comem bacalhau cozido, batatas e couves, primeiro uma canja de galinha, e depois do prato principal aparecem os doces, alguns deles muito próximos da nossa confeitaria natalícia. Janta-se e o convívio prolonga-se até à meia-noite, recomeça a festa, sabes muito bem que celebramos de outra maneira. Vieram os filhos, foram adoráveis comigo, senti que todos estavam a fazer o possível para haver aproximação, o Paulo insistia que ninguém saía da mesa, era ele que servia, tinha a felicidade estampada no rosto.
Findo o jantar, houve arranjos na mesa, e viemos para a sala, aqui refastelados pude falar de mim, do meu trabalho, da minha itinerância. E foi numa amena troca de explicações sobre o Natal belga que o Paulo procurou justificar aqueles doces que são próprios das festividades natalícias portuguesas, eu já o tinha questionado sobre as broas de milho, confeito que desconhecia. Ele explicou que conhecera na infância dois tipos de broas, a de milho e a castelar, a primeira era muito procurada pelas pessoas de menores recursos, o milho era então abundante no campesinato, viver da agricultura e das coisas da terra era muito comum, na sua juventude metade da população vivia da agricultura, comia-se muito pão de milho, como igualmente o chamado pão de mistura, campeava a pobreza.
E já não me recordo como e porquê o Paulo começou a falar com viva emoção do Natal de 1968, ele estava na guerra, vivia a maior parte do tempo numa localidade chamada Missirá, parece que é um nome muito comum nos países muçulmanos, teria sido em Missirá, lá para as Arábias, que nasceu Fátima, a filha do Profeta. Aliás, não nessa noite, mas numa outra ocasião, o Paulo falou nos principais topónimos guineenses, falou de Madina e Medina, e de designações muito comuns onde vivem as etnias islamizadas.Sem nenhuma hesitação, falando desse Natal diante de todos nós, ele declarou que se tratara de um acontecimento intenso, era o seu Natal inesquecível. E contou-nos que em meados de novembro lhe ocorrera escrever para a família e amigos pedindo-lhes para enviar algumas vitualhas, coisas que não pesassem muito, o correio era dispendioso, e referiu as broas, os coscorões, as filhoses e outros doces cujo nome não me recordo, até camaradas que tinham ido passar férias e que obrigatoriamente regressavam à Guiné até 15 de dezembro receberam a incumbência de trazer esses doces.
Houve Consoada, houve bacalhau com batatas, o luxo de vinho tinto engarrafado, a festa decorreu numa instalação hermeticamente fechada, para evitar que, na eventualidade de haver um ataque da guerrilha, a luz os denunciasse. Mas tão importante como a Consoada foi a organização do almoço de Natal para toda a população de Missirá e para os militares, evidentemente. Juntou-se todo o dinheiro disponível, compraram-se cabritos que foram assados no forno de Missirá, com batatas, chamou-se o padeiro e os dois cozinheiros para se fazer uma sopa, uma canja de galinha, encontrou-se as massinhas, havia pão frito, um dos militares lembrou que a canja lá na sua terra tinha cubos de batata, e pediu-se para Lisboa uma porção de hortelã, chegou felizmente a tempo e deu cheirinho ao caldo, feito em dois grandes panelões, foi sopa muito apreciada, houve o cuidado de desfazer os ovos da galinha, a carne toda muito esfiapada, um caldo com gostosos olhos de azeite.
O cabrito acho que estava uma delícia, era indispensável uma grande tachada de arroz, alguém aventou que devia ir ao forno, foi mais trabalho para o padeiro, tudo se comeu, e até houve arroz-doce para a miudagem e para os homens e mulheres de cabelo branco, que o Paulo disse serem as mulheres e os homens grandes.
Outro momento muito importante nesse Natal, e eu senti que nessa narrativa se lhe embargava a voz, o Paulo pediu ao chefe religioso para irem à mesquita rezar a Deus para haver paz nos homens de boa vontade, sugestão que foi imediatamente aceite, a comunidade acolheu-o na mesquita, depois abraçaram-se, o régulo ter-lhe-ia dito então que o considerava membro da família. Aliás, quando em novembro do ano seguinte ele se despediu do povo de Missirá e foi para outro local combater, o régulo disse publicamente que ele era um Soncó e como Soncó competia-lhe nunca esquecer a família, vivesse ele onde vivesse Deus lhe daria a graça de o saber que também pertencia ao Cuor e àquela família.
Ouvimos toda esta exposição em silêncio, havia algo de irreal, todos aqueles episódios pareciam arrancados a uma imaginação fértil, distantes da nossa cultura.
Alguém fez a sugestão de se ligar a televisão, e tempos depois voltámos para a mesa, o Paulo fez chocolate e chá para acompanhar aquelas iguarias, alguém trouxera bolos um tanto parecido com os nossos, com frutas cristalizadas e frutos secos, deram-lhe o nome de bolo-rei e a um outro sem as frutas cristalizadas chamaram-lhe bolo-rainha. A família partiu de madrugada, uma série de prendas ficaram depositadas à volta de um pinheirinho, havia para ali um presépio com toscas figuras de barro, o Paulo prometeu que o almoço estaria pronto aí pelas duas da tarde, como aconteceu.
Sinto-me tão feliz na companhia deste homem, aproveitei esta pausa para te escrever, como sabes iremos trabalhar em Bruxelas no dia 5 de janeiro, creio que a 6 tu partes para Dusseldórfia e eu para Lille, para mim é mais simples, posso sair de casa pelas 7 da manhã, cerca de hora e meia depois estarei no local onde irá decorrer uma conferência.
Feliz mas melancólica, tudo tem corrido da melhor maneira na nossa relação, o Paulo reitera constantemente que não sente obstáculos em vivermos como vivemos à distância, mas acontece que a vida que eu levo em Bruxelas, mesmo com a felicidade de me dar bem com os meus filhos, faz-me sentir muito só, eu já me resignara ao estatuto de mulher só. Tu conheces muito bem a nossa estimada colega, a Nelly Alter, que habita perto de Namur, e que se ocupa muito bem no seu estatuto de mulher só, faz parte de organizações de passeios pedestres, não perde uma exposição, vai aos concertos, viaja, e confessa que já lhe parece impossível admitir pôr alguém lá em casa, ela tem uma idade próxima da nossa, considera inaceitável ter que fazer concessões para viver a dois, sente-se bem assim. Talvez eu tivesse um sentimento parecido com o da Nelly, já me considerava estar pronta para ter umas amizades, saídas em grupo, visitar amigos, etc. E de repente apareceu-me um senhor numa conferência, pediu-me para conversar com ele, tinha a ideia de escrever um romance em que o tema central passaria pela experiência da guerra que ele viveu, encontrara no estrangeiro alguém com quem mantinha uma intensa relação e ele então ia descrevendo cronologicamente toda essa vivência da guerra, e enquanto tudo isto se passava surgiu, como um rasto de luz, a descoberta do amor. E imagina tu, Julien, que quando ele me visitou e descobrimos que havia qualquer coisa de especial na atração recíproca, ele me assegurou que já tinha um título para o livro, como tu sabes moro na Rua do Eclipse, acho que foi fulminante a escolha para o título da obra, porquê não sei, mas que a nossa vida entrou numa nova constelação, não tenho dúvida alguma, mesmo com esta dor que é estar semanas e semanas sem nos vermos, sem nos tocarmos, amar o Paulo foi descobrir que no acaso podemos encontrar, com absoluta naturalidade, o fim da escuridão ou da ilusão de que viver só depende da aceitação.
Peço desculpa pelo atabalhoado desta carta, mete comida de Natal, falei-te de Lisboa e da Guiné, tu és o meu porto seguro para desabafar, dentro de dias o Paulo leva-me ao aeroporto, sei que tudo vai continuar, tenho esperança que um dia será diferente, há que aprender a mitigar a distância e também por isso conto com a tua amizade.
Até breve, em Bruxelas, Annette, a tua amiga do coração. Missirá flagelada em 22 de dezembro de 1966, imagem enviada por Henrique Matos para o nosso blogue. Vemos o alferes Marchand, então comandante do destacamento
Nota do editor
Último poste da série de 13 de novembro de 2020 > Guiné 61/74 - P21537: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (27): A funda que arremessa para o fundo da memória