Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Guiné-Bissau > "Região de Tombali > Cumbijã >Este vídeo gravado em 4 de maio de 2025 na tabanca de Cumbijã, foca o jogo de apresentação da nova equipa de futebol dos "Tigres de Cumbijã" e a sua maravilhosa paisagem envolvente" (diz o João Reis Melo, ex-1º cabo cripto, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74)...E eu acrescento: tem um maravilhoso tema musical, como fundo, "Guiné, nha tera".
1. Obrigado, João Reis Melo, grande "Tigre do Cumbijã". Aquela terra "verde-rubra" (sem conotações saudosistas...) ficou-te no coração. A ti e a nós... Parabéns pelo vídeo, é uma ternura da tua parte... E depois tem algo de extraterrestre: nunca tinha visto um jogo de futebol.... a partir do céu e com uma moldura de verde como essa. Um efeito f seantástico, tens muito talento para fazer vídeos e vejo qu estás bem equipado!
Mas deixa-me dizer-te que foi pena não teres identificado, no final do vídeo, na ficha técnica, o autor e os intérpretes do tema que escolheste como música de fundo ... Temos a obrigação de divulgar a música guineense, ajudar os seus músicos e respeitar os seus direitos de autor. (Se fossem músicos europeus ou americanos, o You Tube já te tinha silenciado o vídeo; por isso estou também grato ao autor e intérpretes da música pelo seu contributo para este vídeo maravilhoso do João Reis Melo.)
Quis saber mais sobre o tema musical que escolheste para o teu vídeo. Confesso que a letra e a música "mexeram comigo", apanhei algumas frases em crioulo afrancesado, por parte da voz feminina... e fiquei rendido a essa belíssima e poderosa voz. Estava convencido que era de uma conhecida cantora da Costa do Marfim, a Moniquer Séka... Mas, não, o João Melo que também é uma"autoridade" no que diz respeito ao panorama atual da música da Guiné.Bissau, esclareceu-me sobre quem é que faz dupla com o Binham (n. 1977) nesta belíssima canção que é a "Guiné nha Tera", incluída no álbum “Lifante Pupa” (2015) (à letra: Beijo do Elefante) do grande músico da Guiné-Bissau, jácom uma notável carreira internacionakl
Cito, com agrado, o oportuna e pronto esclarecimento que ele me fez, logo que saiu este poste:
(...) "Cumpre-me informar que esta canção de autoria do Binham, que trás como sombra uma história de vida que daria com certeza um belo de um filme, nesta interpretação não está a fazer dupla com a Monique mas sim com a não menos e extraordinária Joss Stone !...
" Joss Stone, é uma artista e cantora Inglesa que eu muito admiro e que, na sua digressão mundial, que durou seis anos, em cada país que parava, tentava gravar com um artista representativo do país uma canção que fosse de autoria do próprio. Na Guiné-Bissau, encontrou-se com o Binham e, fizeram esta gravação junto ao Forte de Cacheu que ficou com um enquadramento espetacular!
"Tive ainda a oportunidade de, quando de uma das minhas visitas à Guiné-Bissau (2017 ou 2019), me ter deparado com uma exposição no Centro Cultural Francês em Bissau totalmente dedicada a estre extraordinário Binham!
"Existem muitos bons artistas que atualmente fazem músicas Guineenses que enchem a minha playlist e me acompanham no carro em viagens mais longas... Não somente amo aquela terra, como as suas gentes como as suas tradições e músicas!" (...)
"Guiné Nha Tera", do cantor guineense Binhan (n. 1977).
“Guiné nha Terra” (feat. Joss Stone)
É um tema de homenagem à Guiné-Bissau, que combina ritmos de kizomba/zouk com elementos tradicionais.
2. Binham é um cantor e compositor de temas intimistas mas também de intervenção social. Tem uma história de infància duríssima: com um ano, doente, foi considerado uma criança-irã e esteve condenado a morrer, por abandono nas margens do rio, por decisão paterna. Nasceu no Biombo, mas cresceu em Catió.
O infanticídio ainda é um problema ( de saúde pública, complexo, de etiologia multifactorial) na sociedade guineense, tal como o era na sociedade portuguesa até finais do séc. XIX.
(...) Binham (...) tem uma canção sobre o pai que nunca gravou na sua discografia: aquela em que conta como ele o quis matar quando ainda era bebé.
(...) Binham tinha um ano quando foi abandonado para ser levado pela maré porque, reza a tradição, algumas crianças são espíritos que têm que ser devolvidos à natureza.
A lei da Guiné-Bissau protege este costume e atenua a pena de quem matar bebés, seguindo a crença. Mas nem era preciso, porque as comunidades encobrem os casos logo à partida e nunca ninguém foi investigado ou julgado.
O pai de Binham encomendou a cerimónia ( ao curandeiro) porque o filho adoecia com frequência e estava a levar muito tempo para começar a andar, sinais de uma 'criança irã'.
Deficiência, convulsões e gémeos são outros motivos para abandonar bebés que são também 'bodes expiatórios' de 'coisas negativas', como 'a morte da mãe no parto', explica Filipa Gonçalves, 28 anos, psicóloga e coautora do estudo 'Crianças irã: uma violação dos direitos das crianças na Guiné-Bissau'. "(...)
Tradução do crioulo para português: LG + assistente de IA / ChatGPT
Binhan:
Se fores à Guiné,
se fores à minha terra, leva o meu pedido.
Se por acaso voltares,
quando voltares, traz-me resposta ao meu recado.
Também... O meu recado, sim, o meu recado.
Monique Séka:
Guiné-Bissau, tu és a minha terra, a terra que é minha. Guiné-Bissau, tu és a terra dos meus pais. Mas se Deus quiser, a Guiné vai levantar-se firme. Não vais ficar só a chorar.
A minha terra é de um povo cansado, mas se Deus quiser, Guiné, vais melhorar.
Eu não quero ver-te na tristeza. Eu não quero ver-te no sofrimento. Eu não quero ver-te na tristeza, ó Guiné, ó! Liberta os teus filhos, dá-lhes amor.
Amor, felicidade e harmonia para ti, Guiné. Amor, felicidade e harmonia para todos os filhos da Guiné.
Quem não quer ver-te feliz, ó Guiné, é porque está cansado, perdeu a esperança. Mesmo que queiras, às vezes não consegues mais viver, tens sede… o guineense luta até ao dia da morte. Ó Guiné-Bissau, ó minha terra, ó meu povo, sim!
Guiné-Bissau, se Deus quiser, vais sair desta tristeza. Deus há-de iluminar o coração dos teus filhos, filhos que hão-de tomar consciência para que o país volte a ter alegria.
Educação, luz, saúde, água — para que nada falte.
Ouvi, ouvi, ouvi bem! África, minha mãe, chora comigo, por favor! Fala alto, a mãe veio avisar, África, a mãe veio avisar do mal.
Refrão final:
Alô, alô, minha terra! Guiné, Guiné-Bissau! (Alô, alô, alô, Guiné!) Alô, alô, minha terra! (Eu quero ver-te, Guiné, feliz um dia!) Guiné, Guiné-Bissau! (O teu povo não vai parar, mesmo cansado!) Alô, alô, minha terra! Guiné, Guiné-Bissau!
Observação - A canção é uma mensagem de dor, amor e esperança pela Guiné-Bissau... Também uma oração para que o país supere o sofrimento e renasça. Binhan fala como filho da terra, e Monique Séka acrescenta uma dimensão pan-africana, chamando a “África mãe” a solidarizar-se com o povo guineense.
(...) Este era de facto um posto de “mala-posta", muito importante neste corredor de Guileje, onde os guerrilheiros descansavam e se alimentavam em trânsito para operações militares na região sul. Todo o arroz aqui apreendido dava para alimentar um exército durante vários dias.
O elevado número de moranças, os abrigos subterrâneos, bem camufladas na vegetação, a quantidade de arroz (as suas rações de combate), bem como a grande quantidade de tabaco e material de propaganda, era a confirmação de estarmos perante uma importante base do PAIGC no interior da Guiné. Esta ação foi em rude golpe na logística do PAIGC no abastecimento de parte da zona sul da região.(...)
Corredor de Guileje, corredor da morte, para as NT; carreiro do povo, estrada da liberdade, para o PAIGT... Cada um chamava-lhe o que lhe dava na real gana... Mas continua por fazer o "balanço final" dos combatentes que, de um lado e do outro, lá tombaram...
Nhacobá, que pretendia ser um marco luminoso da "estrada da liberdade da Pátria", ponto fulcral do "carreiro do povo", base logística do PAIGC...hoje não existe mais. É apenas um ponto do mapa do Google, perdido na mancha verde do coberto florestal, nas proximidades do mítico Cantanhez...
Nhacobá foi arrasada pelos "bulldozers" da engenharia militar... Por ordem de Spínola. A população, resignadda, aceitou, ser "reordenada" em Cumbijá, em 1973/74... E lá está até hoje com a "autoestrada" do sul a atravessar a tabanca, que até já tem uma equipa de futebol, os "Tigres do Cumbijã", e um patrocinador, "tuga", o João dos Reis Melo, de Alquerubim...
Que diria o homem grande, Amílcar Cabral, agora curvado sob os seus 100 anos, se ainda fosse vivo ?! ... Contra quem iria brandir a bengala de ancião ?... Os grandes homens, e os líderes (e o Amílcar Cabral foi um deles), são tão incapazes de ler o futuro como qualquer um de nós, pessoas comuns.
Afinal, o povo quer é pão e circo...Ontem como hoje e amanhã... Os sucessores de Amílcar Cabral não perceberam isso, que ideologia(s) não enche(m) barriga(s).
Na foto, ainda como Cabos Milicianos, à esquerda: Fur Mil Barros, já falecido; ao centro: Fur Mil João Ferreira, ambos da CART 6254/72 (Olossato e Dugal), e à direita: Fur Mil Silva da CART 6552/72 (Cacine e Cameconde), já falecido.
1. Na sequência da busca do Fur Mil Silva da CART 6552/72 pelo nosso camarada João Ferreira, ex-Fur Mil Art da CART 6254/74 (Olossato e Dugal, 1973/74), recebemos ontem, 26 de Outubro de 2025, a seguinte mensagem:[1]
Caro Carlos Vinhal
Foi com enorme tristeza que recebi do Manuel Domingos Ribeiro a informação do falecimento do meu amigo, já lá vão cinco ou seis anos.
Segundo ele, o Silva padecia de sérios problemas de saúde. Nunca pensei que a sensação de perda fosse tão amarga.
Estivemos longamente ao telefone a conversar sobre o Silva e os tempos de tropa, com a coincidência de termos pertencido os três ao mesmo pelotão, durante a especialidade na EPA de Vendas Novas, no calorento verão alentejano de 72.
Mais uma vez um muitíssimo obrigado pela tua disponibilidade.
O Blogue presta, efectivamente, um enorme apoio a todos os Camaradas que passaram por aquela enorme Tabanca, a GUINÉ.
Bem hajam.
Um óptimo domingo para todos e um forte abraço para ti.
João Ferreira
********************
2. Comentário do editor CV:
Caro João Ferreira,
Lamento profundamento o falecimento do teu amigo Silva.
Até eu, ao ler ontem o teu mail, não pude deixar de sentir uma enorme frustração. Tu apostavas tudo e tinhas muita fé em que nós te ajudássemos a reencontrar o amigo e camarada de armas que não vias há muito tempo.
Ainda bem que pudeste falar ao telefone com o Manuel Domingos Ribeiro, companheiro do malogrado Silva na CART 6552/72.
Deixo-te o nosso abraço solidário, e o convite para te juntares à nossa família de velhos combatentes da Guiné.
Se quiseres sentar-te à sombra do nosso poilão, é fácil, manda-nos uma foto tua actual e outra do tempo da Guiné (fardado), conta-nos uma pequena história e serás apresentado à tertúlia.
Mais tarde, dependendo da tua disponibilidade, poderás colaborar com as tuas memórias escritas ou em fotos para assim aumentares este fabuloso espólio.
Como pudeste comprovar por ti mesmo, foi através das memórias do nosso amigo Manuel Domingos Ribeiro que tivemos conhecimento da partida do teu amigo Silva para o Batalhão celestial.
Continuamos por aqui ao teu dispor.
Recebe um abraço
Carlos Vinhal
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1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Fevereiro de 2025:
Queridos amigos,
Feliz a hora em que o médico Adélio Martins convocou a malta do seu curso para pôr por escrito recordações da experiência de alferes miliciano médico, e num punhado de páginas ficamos a saber que um feiticeiro ganhou a um médico por saber pôr um elefante a defecar, houve alguém que soube da história de como se fazia uma armadilha em cruz, ouvido o estrondo estalou a alegria no aquartelamento e foram todos ver um espetáculo devastador naquela confusão de pedaços humanos, com tanta gente em regozijo por ter funcionado bem aquela arma mortífera; há quem venha contar o que era ser médico em Mueda e conviver com camaradas médicos já em estado de transtorno, um deles afeiçoado a um cágado; houve quem desertou e venha agora agradecer ao Antigo Regime ter um casamento que dura há cerca de 50 anos... Há quem esteve na região dos Dembos, quem vivesse no centro de Luanda e tenha sido confrontado com os tiroteios da guerra civil, e ouviremos de novo histórias do escritor Rui Sérgio, o médico Rui Vieira Coelho que tem aparecido regularmente no nosso blogue, são belos testemunhos, um enriquecimento nestas intervenções que nos põem sempre a pensar nas dívidas com que deles ficámos.
Um abraço do
Mário
Escritos de médicos que viveram a guerra colonial
Mário Beja Santos
O escritor Rui Sérgio tem tido a gentileza de me fazer chegar através da editora 5Livros.pt todos os seus escritos relacionados com as memórias como médico do BCAÇ 3872, sediado em Galomaro, leste da Guiné, que conheci nos bons tempos em que se ia de Unimog por toda esta região, é certo que armados, mas cientes de que a região estava pacificada, graças a um régulo destemido, o Tenente de 2.ª linha Mamadu Sanhá.
Acabo de receber um livro editado em 2020, também pela 5Livros.pt, foi um desafio que o médico Adélio Martins lançou a colegas de curso para escreverem um conto relacionado com as suas experiências em terras de África. O resultado é tocante, mas talvez valha a pena refletirmos que possuímos um legado de testemunhos de profissionais de saúde. Não vale a pena acrescentar mais ao muito que aqui se tem publicado sobre as nossas enfermeiras, o escritor João de Melo foi enfermeiro em São Salvador, daí resultou um notável romance Autópsia de um Mar de Ruínas (recomendo a 1.ª edição), os primeiros romances de António Lobo Antunes estão profundamente marcados pela sua vivência em território angolano, e é também bem merecedor de leitura a correspondência que travou com a sua mulher em tal período; na mesma época em que António Lobo Antunes se lançava na escrita, outro médico, Abílio Teixeira Mendes, publicou um escrito magnífico, deploravelmente esquecido; e continuo a pensar, ao nível de escritos de médicos, que as memórias de José Pratas, Senhor médico, nosso alferes, está no pódio de narrativas de médicos quanto à Guiné.
Quanto a estes contos de guerra coordenados por Adélio Martins, há quem chegue na noite de 24 de dezembro inesperadamente a casa, tocou campainha e “no ar havia o cheiro a doces e o vapor da água das panelas que em breve se encheriam para a ceia, noite de Natal inesquecível!” Há aquele cego na enfermaria que recalcitra por um camarada não o ter levado ao futebol, o outro responde que não o levou porque ele está cego, “estou cego mas podia ouvir”, isto passou-se na cidade da Beira; havia um enfermeiro que fazia desaparecer medicamentos para levar para a FRELIMO, mais concretamente ampolas de estreptomicina que faziam falta aos guerrilheiros; há aquela história de um médico chamado à pressa lá no Fingue, no norte de Moçambique, para fazer defecar um elefante, caso tal não acontecesse, seria mau presságio, o médico falhou, quem entrou em ação foi o feiticeiro.
Há um médico que reflete dolorosamente sobre a alegria que alguns sentiam quando as armadilhas desfaziam em pedaços os guerrilheiros da região. Houvera quem inventasse a armadilha em cruz. “Consistia num dispositivo que continha cargas explosivas ao longo do percurso da picada, e noutra linha, cruzando a picada, nova fila de explosivos, de maneira a formar uma cruz imensa, onde no centro era montado o sistema de detonação, ativado por um fio de metal que atravessava de um lado ao outro a picada, uns bons metros. Assim, em qualquer direção que se caminhasse, de norte para sul, pelo lado direito ou pelo lado esquerdo da picada, todos eram apanhados, mesmo que se viessem a caminhar mais na retaguarda. Era uma cruz imensa de explosivos, uma obra de arte, como dizia o meu camarada especialista em minas e armadilhas.”
A armadilha resultou, ao amanhecer, ouviu-se um estrondo, uma súbita alegria e gritos de contentamento encheram o aquartelamento, seguiu prontamente uma patrulha, o espetáculo era devastador, numa extensão de metros e metros inúmeros corpos jaziam espalhados e dispersos pelo chão, a alegria dos soldados é exuberante. “E eu olhava-me por fora de mim, ator e espetador da cena, cobarde por não sentir a alegria pela morte dos outros e por não sentir tristeza com a alegria deles. Amarrado neste paradoxo de ter de viver em simultâneo o agrado por dever e o desagrado por sentimento, sentia-me também preso nesta armadilha em cruz.”
Há quem descreva Mueda como uma fortaleza rodeada de arame farpado, com uma Base Aérea, Companhias de Engenharia, Serviço Jurídico, tropa fandanga, grupos especiais e um hospital de campanha com cinco médicos. O estado de espírito destes profissionais de saúde era pouco abonatório. “Um havia, que nos lia as cartas da mulher, em que ela pedia para tomarmos conta daquela alma frágil. Não era caso para menos. Cirurgião com medo de ir ao bloco, adotou um cágado, do tamanho de um palmo, por quem se afeiçoou.” Não esqueceu as suas deslocações a Ibo, Mocímboa da Praia e Mocímboa do Rovuma. O Natal de 1974 foi diferente, a ceia do bacalhau foi disputada com os guerrilheiros.
Há quem conte a sua deserção, um casamento que caminha para meio século com uma alemã. “Tenho de agradecer ao Antigo Regime a oportunidade que me deu ao obrigar-me a sair de Portugal por motivos de consciência. Não digo motivos políticos pois eu era nessa altura pouco maduro, fazia mais barulho que trabalho. O meu pai teve em Angola dois filhos, meus meios-irmãos, cerca de 20 anos mais velhos do que eu, ambos estavam no MPLA. O meu irmão Gino estava nas Forças Armadas e a possibilidade de ter pela frente um irmão inimigo era real.”
Há quem acordou com as balas a entrar pela janela do quarto, médico que apanhou a guerra civil ao rubro, há aquele médico a viver em Nambuangongo que conhecia por cópia datilografada aquele que eu considero o mais belo poema da guerra colonial, Nambuangongo, meu amor, viveu as peripécias de um parto inesperado, conta o que era viajar num Auster ou num DO, houve um episódio inesquecível, uma evacuação por fratura do úmero, o médico explica que o jovem soldado tinha o braço muito bem imobilizado com múltiplas ligaduras que o mantinha solidário com um triângulo de tábuas. A tábua vertical estava enfaixada ao tronco e a oblíqua obrigada o braço a estar esticado, como mandava a figurinha do manual de primeiros socorros da Segunda Guerra Mundial. Terá havido um alvoroço e uma precipitação por parte do piloto, o pobre soldado andou aos repelões, tudo se desconjuntou, o ferido bem penou até chegar ao hospital.
E chegou a vez de entrar em cena Rui Sérgio, lembra com muita saudade a Companhia Dulombi, jamais esqueceu as colunas de 18 km até Galomaro, ou vice-versa. Ele fazia a sua consulta militar num posto de saúde acompanhado por um furriel enfermeiro e havia um encarregado civil pela limpeza, o Jamba, homem de porte atlético, com uma face de quase riso permanente. Pois o Jamba em certa altura passou a andar acabrunhado, o médico ouviu confidencialmente, tinha havido um feitiço, já não era um homem, perdera a ereção, o médico deu-lhe uma mezinha, foi ao quarto e trouxe um comprimido efervescente de vitamina C. “Bebe Jamba, tudo de uma vez e daqui a cerca de uma hora vais à tabanca ver a mulher.”
Voltou duas horas depois, sorridente, voltara-lhe a força, tudo graças à eficácia psicológica de um comprimido efervescente de vitamina C.
Recordações magníficas, ficamos com estes médicos no coração.
Médico Rui Vieira Coelho, escritor Rui Sérgio
O Alferes-médico Defensor Moura quando se candidatou às presidenciais, tinha programa para os antigos combatentes
Alferes miliciano médico Manuel Vieira da Costa Neto, da CCAV 680/BCAV 682, Cruz de Guerra de 4.ª classe
Foto nº 1 > Deve ser mesmo de 100 litros a capacidade de cada barril de 'água de Lisboa'. Estes estão prontos a embarcar no cais de Pidjiguiti, talvez rumando ao porto de Lala. São à volta de uma dúzia de barris, perfazendo no total 1200 litros, 12 hectolitros. Com a ração diária de vinho a 0,5 litros, uma companhia, com cerca de 160 homens, estafada estes barris em... 15 dias (!).
Foto nº 2 > A bordo de uma LDM (Lancha de Desembraque Média). Assinalado com um círculo vermelho sou eu, de mãos na ancas, atento à descarga e que o fiel de armazém ia registando. Este é um braço do rio Grande de Buba.
Fotos nº 3 e 4 > LDM 311. Pormenores das descargas. Tudo passava de mãos em mãos e aos ombros até às viaturas, para evitar o contacto com a água, salvo os bidões e os barris que eram empurrados para o rio e ficavam a boiar.
Foto nº 5 > Ver canto inferior direito da foto com os bidões a boiar de: combustíveis, azeite e óleo de fritar. O mesmo acontecia com os barris do vinho.
Foto nº 6 > Depois da canseira da descarga o banho retemperador para a viagem de regresso ao quartel (que ficava a 6 km de Lala).
Foto nº 7 > Ao meio na foto, de t-shirt branca por causa dos mosquitos e assinalado com um retàngulo a amarelo, sou eu,acabado de saltar da LDM para a àgua com os braços bem levantados, para não molhar e danificar as guias de transporte. Foi-me dito, "ou saltas, ou vais passear até Bolama". È que a maré começou a baixar rapidamente e a tripulação não podia deixar a LDM pousar no solo.
Foto nº 8 > Regresso ao quartel. Na picada com o capim alto, era o local indicado para se lançar para o meio do capim, duas ou três caixas de cerveja e uma a duas caixas de batata, que o pessoal, dias mais tarde, com o propósito de ir à caça, iam recuperar os artigos desviados.
Foto nº 9 > Os meus domínios em Nova Sintra: Depósito de Géneros e Cantina. Atrás do Unimog era, é claro, o Depósito de Material.
Foto nº 10 > Os barris de vinho da foto ao lado,vazios, para, depois de desmanchados, se fazer cadeirões para o “descanso dos guerreiros”.
Foto nº 11 > Este era o galinheiro que serviu de adega (depósito dos barris), que o pessoal, mais expedito, com um berbequim furava os barris e com uma pequena
mangueira sugava a 'água de Lisboa'. Foi aqui que encontrei os tais três barris de aguardente (300 litros), que, supostamente, deviam ser de vinho.
Foto nº 12 > A madeira dos barris, as aduelas, serviam depois para fazer cadeiras para o "descansodos guerreiros". Nada se desperdiçava.
Guiné > Zona Sul > Região de Químara > Noa Sintra > CCAV 2483 (1969/70)
1. Texto enviado pelo Aníbal Silva, ex-fur mil SAM, CCAV 2483 / BCAV 2867, Nova Sintra e Tite, 1969/70). Tem informação complementar, originada pelo Poste P27347 (*). Decidimos, todavia, publicá-lo como "anexo" à sua notável série "Vivências em Nova Sintra" (**). O tema dos reabastecimentos a Nova Sintra já foi tratado, mas as fotos e legendas que publicamos acabam oro ser um valioso complemento sobre essa "pequena epopeia" que era levar a casa, todos os meses, a "nossa bianda de cada dia".
Data - sexta, 24/10/2025, 21:33
Assunto - A nossa guerra em números
Bom dia, caríssimo Luís
Hoje de manhã cedo, bem cedinho, depois de abrir o computador e ler o correio eletrónico, dei a habitual saltada ao nosso Blogue, o que faço diária e religiosamente e então dei de caras com o teu Poste 27347, no qual me identificas como o melhor assistemte de IA. Agradeço a nomeação mas devo dizer-te que estás a ser bondoso e benevolente para comigo. .
Ao ler o texto do Poste, verifico que fazes e ainda bem que o fazes, a transcrição da nossa conversa telefónica recente, relacionada com a nossa guerra em números, nomeadamente sobre o vinho e o “per diem”, que só agora fiquei a saber que se trata do valor da ração diária em géneros atribuída aos soldados.
Porque tinha dúvidas sobre dois assuntos, capacidade dos barris de vinho e o per diem, telefonei a dois camaradas vagomestres do meu tempo (69 – 70), o camarada Fausto, de Fulacunda e do meu Batalhão e o camarada Carlos Alberto que esteve em Moçambique.
Tanto um como o outro confirmam que os barris de vinho tinham a capacidade de 100 litros, acrescentando o Carlos Alberto que em Mueda, recebiam os barris, normalmente, com menos 20 litros, que o obrigava ir buscar água limpida ao rio Zambeze, para fazer o batizado e até o casamento.
Relativamente ao per diem, se não tinha certezas, talvez os 24,50 escudos por ti referidos, agora tenho menos certezas e maior confusão. Diz o Carlos Alberto que em Moçambique nas zonas de risco de 100% o valor era de 20,50 escudos e nas zonas de risco de 50% era de 18,50 escudos.
O Fausto diz que o valor era de 33 escudos, já em 69/70, o valor referido no relatório anual do Comando-Chefe / CTIG referente a 1971, como atualização do valor em causa. Perante estas divergências está instalada a confusão e desde já te peço desculpa por te ter metido nela. É muito importante que outros vagomestres dêem a sua opinião sobre o assunto, na perspetiva de encontrar o valor exato.
As fotografias do teu Poste referem-se a Fulacunda (72-74) do camarada Armando Oliveira. As que se seguem dizem respeito a Nova Sintra (69-70), mais própriamente ao “Magnífico Porto de Lala”, sobre o qual o meu Comandante de Companhia escreveu:
“Havíamos saído de Bolama às primeiras horas da manhã do dia 5 de Março (1969) e a lancha que transportava a Companhia já navegava pelo Rio Grande de Buba há umas boas horas, quando virou o rumo a bombordo e entrou por um canal mais estreito que viemos depois a saber que era conhecido por Lala. Ìamos na direção de Nova Sintra. A marcha da LDM era lenta e podíamos observar com pormenor as margens de ambos os lados cuja vegetação parecia impenetrável e onde não se vislumbrava qualquer indício de vida, nem sequer da possibilidade de qualquer abertura para o desembarque, quanto mais um porto...
De repente, quando o rio já se tornava preocupantemente mais estreito e o arvoredo das margens parecia querer vir dar-nos as boas-vindas, surge uma abertura na vegetação que mal dava para a monobra de um Unimog e lá estava.... o magnífico porto de lala. E se não estivessem lá os militares da Companhia que íamos render, meio escondidos pelo capim e meia dúzia de viaturas, teria passado, certamente, despercebido.”.
Preferencialmente era ao porto de Lala que íamos receber os reabastecimentos mensais. A distância era de 6 Km e nunca foi detetada qualquer mina. O mesmo não se pode dizer do porto/cais de S. João, fronteiro a Bolama, que distava 18 Km de Nova Sintra, numa estrada quase sempre minada e onde por duas vezes, devido ao rebentamento de minas anti-carro sofremos quatro mortos (2+2) e uma dezena de feridos graves.
Guiné > Região de Tombali > Sangonhá > CCAÇ 1477 (1965/67) > O José Parente Dacosta, 1º cabo cripto, CCAÇ 1477 (Sangonha e Guileje, 1965/67), junto ao monumento da CART 640 ("Quartel ocupado e construído pela CART 640, desde 21/5/1964. [CART] 640 / RAP2".
Há poucas fotos de Sangonhá, Cacoca, Cameconde, quartéis que ficavam na linha fronteiriça e que irão ser abandonados, em 1968.
Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > Carta de Cacoca (1960) (Escala 1/ 50 mil) > Posição relativa de Gadamael, Ganturé, Sangonhá, Cacoca, rio Cacine, fronteira com a Guiné-Conacri, parte do Quitafine/Cacine e do Cantanhez
Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025
O início da guerra (Armando Fonseca, ex-sold cond, Pel Rec Fox 42, mai 62 / jul 64)
Parte V - Depois de Ganturé, Sangonhá (mai/junho 64)
Depois de, em Ganturé, existirem as condições mínimas de sobrevivência para a instalação das tropas que aí permaneciam, o Pel Rec Fox 42 juntamente com tropas recém chegadas à Guiné [CART 640 ] e com um Pelotão de Milícias rumou até Sangonhá a 21 de maio de 1964 [e não março, como por lapso indica o autor ].
Petromax a petróleo marca Hipólito, modelo 350
Como de costume segue-se a capinagem, a vedação de arame farpado em volta da tabanca, que seria agora um quartel, a colocação de cavaletes para instalação dos candeeiros a petróleo (petromaxes), a que alguns “valentes” iam dar pressão de ar durante a noite, sempre que necessário.
Também era norma que, quando chegávamos a um novo local, não se consumia água da que ali existia sem ser certificado de que ela estava em boas condições de utilização, assim, recorria-se sempre ao aquartelamento mais próximo para nos abastecermos desse precioso líquido.
Então no dia 23 de maio de 1964, pela tarde lá vamos nós a Guileje encher os reservatórios de água regressando já ao lusco-fusco, âquela hora em que já não se vê muito bem mas também ainda não é preciso acender faróis.
Assim o IN que decerto nos vigiava não deu pela chegada dos carros da Cavalaria e entenderam ser muito fácil um ataque às tropas recem instaladas para mais que a maior parte tinha as pernas muito brancas, o que indiciava pouca experiência naquelas andanças e que se tornaria uma tomada do local com a maior das simplicidades.
E, então pelo meio da noite de 23 para 24, qual não é o espanto do sentinela que se encontrava do lado da estrada que ligava a Guiné à Guiné-Conacri, quando vê aparecer um grupo de guerrilheiros pela estrada acima, descontraidamente a aproximar-se da entrada trazendo uma metralhadora e outros armamentos, parecendo que passeavam.
Essa sentinela chegou a estar confundido sem saber se devia atacar ou esperar julgando que eles se vinham entregar às nossas forças.
Entretanto quando eles se encontravam a cerca de vinte metros do arame, a sentinela que se encontrava dentro do granadeiro, reagiu e fez uma rajada que despoletou um ataque feroz, à volta da aquartelamento.
Parece ser uma metralhadora pesada, de calibre 12.7 de origem soviética, a Degtyarev (DShK) m/938, com tripé
Havia mais duas metralhadoras iguais à que aquele grupo transportava, cuja foto envio, e várias outras armas mais ligeiras, aquelas "costureirinhas" que quase todos conhecemos.
As nossas tropas reagiram e o tal grupo procurou uma elevação no terreno e instalaram-se para fazer fogo sobre nós, mas como os nossos carros tinham um grande poder de fogo, depressa o anulámos, isto com a ajuda do comandante da milícia, visto que a certa altura devido à proximidade do IN não se sabia muito bem de quem eram os tiros, se das nossas tropas se do IN.
Depois de anulado esse grupo cuja maioria ficou lá assim com o respectivo armamento, que se encontra no museu militar, todo o ataque foi sendo anulado e o IN retirou em debandada.
Ao raiar da aurora fomos então fazer o reconhecimento, e do grupo que fora avistado estavam seis mortos, a metralhadora, pistolas-metralhadoras e pistolas e um rolo de corda.
Depois de examinados os outros locais de onde vieram os piores ataques, restavam montes de invólucros e os vestígios das metralhadoras terem sido arrastadas no final do ataque, pelo que se deduziu que o cordão encontrado seria exactamente para atar ao suporte da metralhadora para que um dos intervenientes recuasse para local seguro e puxasse a metralhadora no final do ataque, caso este corresse mal como foi o caso, só que neste caso não houve tempo para a execução dessa operação.
Passada esta primeira confusão, permanecemos em Sangonhá até 23 de junho [de 1964 ], continuando a manter as devidas precauções e a segurança das tropas aí instaladas, até que eles atingissem a maturidade para se defenderem a si próprios.
Depois de Sangonhá, seguiu-se Cacoca (...) (**)
(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)
2. Comentário do editor LG:
Há uma divergència de datas entre o texto acima reproduzido e a versão da CECA. O Armando Fonseca queria dizer "maio" e não "março", aliás de acordo com o final do poste anterior: "Permanecemos em Ganturé até 20 de maio. No dia seguinte fomos paraSangonhá(...) (**).
Excerto do livro da CECA (2014, pág. 250);
(...) Em 10Mai, forças das CArt 494 e 495 e Pel Rec Fox 42, com auxiliares Fulas, na região de Bomane, avistaram um grupo ln que e deslocava em direcção à fronteira. Montada uma emboscada e aberto fogo quando os guerrilheiros estavam a 5 metros, as nossas tropas provocaram 4 mortos ao ln e capturaram 1 prisioneiro e material diversificado.
No dia 21, conforme planeamento para controlar a fronteira sul, realizou-se a operação "Jacaré" com vista á ocupação de Sangonhá, em zona de intensa actividade inimiga.
Em 24, um grupo ln atacou, de todas as direcções, o estacionamento da CArt 494 [ou CART 640 ?, a CART 494, comandada pelo cap art Coutinho e Lima, estava em Gadamael, mas participou na Op Jacaré ] em Sangonhá, causando dois feridos; a reacção pronta das NT causou 5 mortos, 1 prisioneiro e ainda baixas não estimadas; capturada 1 metralhadora pesada e levantada 1 mina A/C "TM-46" na estrada para Gadamael Porto, além de numeroso material de guerra. (...)
Fonte: Excerto de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro I; 1.ª Edição; Lisboa (2014), pág. 250.
Observ - Sabemos, pela ficha de unidade, que a CART 640:
(i) chegou a Bissau em 3 de março de 1964;
(ii) após um curto período de permanência em Bissau, onde fez a IAO, destacou dois pelotões
para a realização de operações na região de Cuntima, a partir de 24Mar64, em
reforço do BCaç 512;
(iii) em 08Abr64, foi deslocada para Farim para actuação em operações nas regiões de
Jumbembém, Cuntima e Jabicó, em reforço temporário do BCaç 512 e depois do
BCav 490;
(iv) em 11Mai64, foi substituída pela CCav 487 e recolheu a Bissau até 20Mai64;
(v) em 21Mai64, um pelotão tomou parte na Op Jacaré para ocupação e instalação em Sangonhá, para onde a subunidade se deslocou, por fracções, entre 25Mai e 22Jun64, tendo repelido um forte ataque desencadeado em 24Mai64 e causado pesadas baixas ao inimigo;
(vi) em 25Jun64, na sequência da Op Veloz, ocupou também com dois pelotões, a localidade de Cacoca, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCaç 513 e depois do BCaç 1861.
(vii) pelo armamento e munições capturadas e baixas causadas ao inimigo, destaca-
-se a Op Gira na região de Bantael Silá e um golpe de mão efectuado à tabanca de Mareia em 24Ju165, entre outras;
(viii) em 08 e 14Jan66, foi rendida no subsector de Sangonhá, por troca, pela CCaç 1477 (...)
Guiné > Zona Sul > Região de Cumbijã > Cumbijã > BCAV 8531, 1972/74) > O destacamento (ou melhor..."acampamento") do Cumbijã.
Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > CCAV 8531 (Cumbijã, 1972/74) > Tabanca de Nhacobá, até então considerada "área libertada do PAIGC", ocupada num “golpe de mão” pela CCAV 8351 no dia 17 de maio 1973 no decurso da operação Balanço Final (17 a 23 maio 1973). Na foto, o Joaquim Costa. A cabra Joana era natural daqui, foi um dos "despojos de guerra", levados para o Cumbijã. A aldeia foi arrasada pelos "bulldozers" da engenharia militar e a população realojada num reordenamento.
Gondomar > Biblioteca Municipal > 9 de novembro de 2024 > Sessão de apresentação do livro "Crónicas de Paz e Guerra" ( Rio Tinto, Lugar da Palavra Editora, 2024, 221 pp.)
Três Tigres do Cumbijã: oo centro, o Joaquim Costa; à esquerda, o João Melo, ex-1º cabo cripto, das CCAV 8351 (Cumbijá, 1973/74); à direita, o Mendes (que veio de propósito da zona onde vive, na Serra da Estrela); um quarto Tigre, o Gouveia, não ficou nesta foto...
1. O Joaquim Costa Joaquim Costa, minhoto de V. N. Famalicão, conterrâneo da nossa senhora enfermeira pqdt Rosa Serra, vive em Fânzeres, Gondamar, perto da Tabanca dos Melros. É engenheiro técnico reformado.
Foi também professor do ensino secundário (os últimos 20 anos em Gondomar, como diretor escolar). Na outra "incarnação" foi Fur Mil Armas Pesadas de Inf da CCAV 8351/72, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74).
É autor da notável série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã" (que, em grande parte, já saiu em dois livros com a suas memorias, um em 2022 e outro em 2024).
A história da cabra Joana já foi aqui publicada no nosso blogue. Deu origem até a vários "passatempos de verão", com o pessoal escrever sobre esta "fábula" ( que, segundo o dicionário, é uma composição literária, em verso ou em prosa, geralmente com personagens de animais, com características humanas, e em que se narra um facto cuja verdade moral se oculta sob o véu da ficção).
A fábula da cabra Joana e do cão rafeiro Tigre do Cumbijá é afinal uma metáfora sobre aquela "drôle de guerre", uma expressão francessa intraduzível (a não ser com muitas explicações...), que a foi a nossa, que afinal não foi bem a nossa:
Portugal não estava oficialmente em guerra contra nenhum outro Estado soberano ou potência estrangeira;
não cortou relações diplomáticas com ninguém (nem com Cuba que mandou cubanos poara a Guiné para dar uma "ajudinha internacionalista" ao senhor engenheiro!);
uns diziam que lutávamos contra o "terrorismo", outros proclamavam que estávamos ali a "defender a civilização cristã e ocidental";
outros ainda, mais cínicos e calculistas, desvalorizavam aquela "drôle de guerre", chamando-a "guerra de baixa intensidade...
Para mim, que também a fiz, foi uma "merda de guerra", em que no fim todos perderam: voltando à fábula, não houve vencedores nem vencidos, mas perdedores, incluindo a cabra Joana e o cão rafeiro chamado Tigre do Cumbijã...
Saiu, entretanto, uma nova versão da história da cabra Joana, da autoria do Joaquim Costa, agora, inserida numa coletânea de poemas e contos "Anjos da Prosa e da Poesia: Volume V (Rio Tinto, Lugar da Palavra, 2025).
O autor mandou-ma em 4/10/2025, com a seguinte mensagem: "Porque hoje é dia do animal, resolvi lembrar a cabra Joana nascida e criada em Nhacobá e levada compulsivamente para Cumbijã. Este conto foi publicado numa coletânea sobre prosa e poesia."
Recorde-se o contexto: a cabra Joana de Nhacobá foi apanhada pelo pessoal da CCAV 8351, justamente em Nhacobá, tabanca até então controlada pelo PAIGC, no "corredor de Guileje", no decurso da Op Balanço Final (17-23 de maio de 1973). Nhacobá era um lugar de importância estratégica para ambos os contendores. Foi levada, a Joana, para Cumbijã, sendo obrigada a coexistir, pacificamente, com o cão rafeiro, o Tigre de Cumbijã, mascote do pessoal.
Estive hesitante em publicar esta versão na série "Humor de Caserna", mas achei, por fim, que ficaria melhor a dar continuidade à série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã", do Joaquim Costa...
Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 > O encontro, não muito amistoso, da cabra Joana que trouxemos de Nhacobá no dia da operação Balanço Final, com o “rei” do destacamento do Cumbijã, o cão rafeiro Tigre... Com o tempo lá foram partilhando o protagonismo. Foto: cortesia do Carlos Machado.
Era uma vez duas famílias que viviam numa terra distante, de uma beleza que se entranhava no corpo e na alma como o pó vermelho das suas picadas.
Aqui viviam, desavindas, ao que parece, por causa de uma bandeira.
Uma era a família IN, que vivia numa bonita bolanha, nas margens de um bucólico rio, com grandes plantações de arroz e lindas palmeiras, de seu nome Nhacobá.
A outra era a família Tigre, que vivia todos os dias com os olhos e a alma bem longe dali, que habitava uma aldeia próxima, que ela própria construiu, de seu nome Cumbijã, que odiou e... quase amou.
Os arrufos entre estas duas famílias eram constantes, com investidas ousadas a casa uns do outros, tentando a sua expulsão da região.
Entretidos nestes arrufos, os senhores da guerra (especialistas do pionés no mapa), decidiram (sem consultar ninguém, ) que os Tigres investiriam em força sobre a família IN, impondo a sua lei.
Assim foi, mas com perdas irreparáveis e inocentes de um lado e do outro.
Como era habitual, nas operações de alto risco, quase todos os soldados beijavam, à saída, o seu amuleto da sorte (o seu Anjo da Guarda): a foto da namorada ou dos pais, da(s) madrinha(s) de guerra, um santo devoto, uma folha arrancada à revista inglesa Penthouse e outros o seu inseparável mapa (mapa operações pontos de artilharia), que guardavam num dos bolsos do camuflado mais perto do coração.
Como é comum, desde os primórdios, quem vence tem direito aos despojos, neste caso: arroz, cigarros, fósforos cubanos e livros escolares (impressos na Suécia) com mensagens estilo Estado Novo (mas cujos heróis eram outros) e... uma cabra que chamou a atenção pela coragem demonstrada na defesa da sua aldeia, levantando as suas patas aos invasores e mostrando assim a sua indignação.
Esta irredutível cabra, como passou a fazer parte do despojos, acompanhou os Tigres de volta a casa.
Aqui quem reinava era o cão rafeiro Tigre, pelo que, no dia da chegada a cabra foi apresentada ao rei. Não foi um encontro fácil e só não se chegou a vias de facto dada a pronta atuação da guarda pretoriana.
Esta irredutível cabra, pela sua coragem e ousadia, ganhou a simpatia de toda a população, ou quase, já que em todo o rebanho há sempre a sua ovelha ronhosa!
Tinha esta irreverente cabra, a quem foi dado o nome de Joana, cinco predadores na aldeia:
o rei Tigre que nunca aceitou partilhar o protagonismo com este estranho animal, contudo, neste caso, não se sabia quem era o predador de quem;
o vagomestre, que tratava dos comes & bebes, que fitava a Joana com os olhos vermelhos de quem já a está a ver a ser esfolada e transformada em estilhaços de carne (coisa rara na aldeia) para o arroz;
os três agricultores improváveis do Cumbijã que, fartos de ração de combate, construíram hortinhas em pleno teatro de guerra.
A cabra Joana, tal como a burra no Alentejo, não resistia às viçosas alfaces, saltando a cerca das três hortinhas, lambuzando-se com a frescura das mesmas, com a compreensível indignação dos proprietários das plantações.
Na defesa da Joana passou a haver, 24 sobre 24 horas, um guarda-costas, armado de G3 com bala na câmara.
Só assim é que a mesma resistiu até ao dia em que os Tigres abandonaram a sua casa, no Cumbijã, a caminho do Bissau, para apanhar o avião que os levaria finalmente à sua terra de origem.
Todos, sem exceção, verteram uma lágrima, já com saudades da cabra Joana e do cão Tigre. Comove-me saber que uma e outro, provavelmente, também deixaram cair uma lágrima... salgada!
De um momento para o outro, sem que ninguém o decretasse, cessaram as hostilidades e as duas famílias promoverem festas conjuntas trocando prendas e abraços. Parecia que da noite para o dia o mundo tinha virado do avesso. Prova que a guerra não é solução para nada. Se quem a decreta fosse obrigado a combater nas linhas da frente, o mundo viveria eternamente em paz.
Estas maravilhosas criaturas, sempre que um grupo saía para o mato saltavam alegres e divertidas como desejando boa sorte. No regresso logo corriam para o cavalo de frisa (a porta de entrada) entusiasmadas com a sua chegada.
No dia em que definitivamente os Tigres abandonaram o Cumbijã, assistiram em silêncio a todo o seu frenesim e entusiasmo, como pressentindo o que estava para acontecer. Ao saírem do cavalo de frisa (agora porta de saída) em grande algazarra, estas ficaram imóveis, com o cão Tigre produzindo um ruído que parecia de choro e a cabra Joana levantando ligeiramente uma pata, vendo-nos desaparecer por entre a nuvem de pó vermelho da picada, como que dizendo: "E nós?"...
Não se sabe o que aconteceu depois, mas teme-se que esta história, pelos relatos que foram chegando, não teve um final feliz...
Ao que parece, nem os macacos se salvaram!..
In: Anjos da prosa e da poesia. Vol. V / Adelina Santos... [et al.] ; coord. Ana Maria Bessa, João Carlos Brito. - 1ª ed. - Rio Tinto : Lugar da Palavra, 2025. - 144 p. ; 23 cm. - ISBN 978-989-731-226-7, pág. 100.
(Revisão / fixação de texto: LG)
Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cumbijã > Maio de 2025 > Três vistas aéreas da atual tabanca
(...) Estes 3 jovens que estão na foto, informaram que fazem parte da “cultura balanta”, vieram das tabancas balantas da região de Bissorã, estes 3 são de Encheia.
Nesta época, final da campanha de caju, os camponeses têm algum dinheiro, para poderem fazer as suas cerimónias.
Há muitos “choros”, são precisas muitas vacas e porcos, as pessoas ficam com dívidas para pagar durante muito tempo, porque o dinheiro não chega e as festas são grandes, para não ficarem atrás das cerimónias dos amigos. (...)
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Guiné > Zona Leste > Regiáo de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > Destacamento e reordenamento de Nhabijões > 1970 > O furriel miliciano Henriques, da CCAÇ 12, junto a um dos locais de culto dos irãs (espíritos da floresta), conhecidos por "baloubas".. A população era maioritariamente balanta, animista. Era conhecida a sua colaboração com o PAIGG, sobretudo com as populações e os guerrilheiros de Madina/Belel, no limite do Cuor, a Noroeste de Missirá.
(...) A realização do Toca-Choro para os Mancanhas supõe a crença na imortalidade da alma e a ideia de valorização da solidariedade com os nossos ancestrais, pois o Toca-Choro nos permite manter esse laço de convivência simbólica entre o mundo dos vivos e dos mortos.
Por outro lado, (...) se o ritual do Toca-Choro não for feito, a alma da pessoa morta vagueia, pode voltar ao mundo dos vivos para fazer mal a família.
A cerimônia de Toca-Choro realiza-se logo após a morte e sepultamento de um falecido, por vezes, acontece um ano depois ou mais, depende das condições da família em conseguir os recursos necessários para a realização da cerimônia, de modo que, neste ritual, são sacrificados vários animais para comunhão (...).
(...) O Toca-choro é realizado através da cotização (abota) feito por parentes do falecido para ajudar na realização da cerimônia, de modo que se verifica a predominância de várias comidas e bebidas. Nesta cerimônia são sacrificados muitos animais, a exemplo de: vacas, porcos e cabras.
Normalmente, este ritual acontece durante três dias:
O primeiro dia se inicia com o toque de bombolom para comunicar o resto da família para participar na mesma cerimónia.
No segundo dia se começa com cântico e dança no momento de sacrificar os animais (karmusa).
O terceiro ou o último dia é marcado pela manifestação (festa) em que predomina a “música moderna”.
Também, se verifica carnes em quantidade e bebidas; tudo isso é criado por diferentes grupos participantes (mandjuandadi) (... ) no ritual.
Esse é um dia de muita animação em que são consumidas bebidas alcoólicas (carni ku binho mangadel), muita carne e vinho, isso em homenagem aos que já partiram.
Na prática de Toca-Chora existe sempre um indivíduo responsável pela realização da cerimônia de um falecido. Essa pessoa tem a função de fazer de tudo em colaboração com o restante dos familiares para realizar essa cerimónia, para poder garantir com que a sua cerimonia seja feita após a sua morte também e assim sucessivamente.(...)
Acrescenta o editor LG:
(...) Que me lembre, assisti numa tabanca balanta, nos arredores de Bambadinca, a um "choro"... Alguém tinha morrido umas horas ou um dia antes...
Havia já um grande ajuntamento de pessoas à volta da morança. E manifestações de dor, como em qualquer parte do mundo. Mas o que retive na memória foi o espetáculo, macabro, de um bando de "jagudis" (abutres), poisados na cobertura de colmo da morança...O "jagudi" sente o cheiro da morte à distância...
(...) Outro espetáculo macabro: num operação do outro lado do rio Geba (margem esquerda), entre o Enxalé e Portogole, num trilho, mas protegido por densa vegetação, encontrámos o cadáver de um guerrilheiro morto : já não era cadáver em decomposição, era um simples esqueleto, vestido de caqui amarelo (!)....
A morte teria ocorrido há uma semana, na opinião dos meus soldados... Mas já não havia um pedaço sequer de pele... As formigas e outros predadores limparam, literalmente, o cadáver... Na natureza nada se perde.. Mas este desgraçado não teve ninguém que lhe fizesse o "choro"...
(...) A propósito do "choro" na Guiné-Bissau...Lembro-me, há muitos anos, um médico guineense, meu aluno (mancanha ou brame), me dizer que tinha de ir à terra fazer o "choro" (a cerimónia do luto) da mãe...Já se tinham passado dois anos depois da morte da mãe... Nesses dois anos andou a trabalhar em Portugal para juntar dinheiro...
E quando lhe perguntei o número de pessoas que ia convidar para o "choro", lembro-me de ter ficado surpreendido: 200 pessoas numa "festa" de muitos dias...
(**) SILÁ, Aua. O povo Brame ou Mancanha da Guiné-Bissau: um estudo sobre ritual fúnebre Toca-Choro (Toka Tchur). 2019. 28 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Humanidades) - Instituto de Humanidades e Letras, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, São Francisco do Conde, Disponível em formato pdf em: https://repositorio.unilab.edu.br/jspui/bitstream/123456789/1482/1/2019_proj_auasila.pdf