quarta-feira, 25 de maio de 2016

Guiné 63/74 - P16132: Os nossos seres, saberes e lazeres (156): A pele de Tomar (6) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Fevereiro de 2016:


Queridos amigos,
Hoje deu-me para aqui, a justificar as diferentes harmonias entre a cidade e o campo, é uma realidade no casco histórico, o que já não acontece na cidade que se expandiu para lá do Nabão, em finais do anos 1940.
Tomar tem muito caráter no uso da pedra, nas sacadas das janelas e nos rendilhados do Convento de Cristo. Procuro juntar provas. Há mesmo um edifício do turismo que tem um cunho de palacete, entra-se como numa sala de castelo e quando se sobe para o andar das exposições fica-se com a sensação de que estamos dentro de formoso palácio.
Tento abonar que toda esta pele é um rico património que merece ser usado e abusado. A verdade é que os excursionistas daqui saem deslumbrados por tanta riqueza acumulada, não sem um travo de amargura por sinais gritantes de desleixo ou abandono.
Aqui fica o convite para virem acariciar a inesgotável pele de Tomar.

Um abraço do
Mário


A pele de Tomar (6)

Beja Santos

Começa digressão no Convento de Cristo, detenho-me em pormenores, encaro-os como muito valiosos. Ora vejam.



Visitar Tomar, tenho para mim, requer um estado de estado de espírito paradoxal: sentir que a cidade é bordejada pelo campo, que lhe talha um caráter meio citadino meio rural. Percorrer Tomar pressupõe abertura: para o grandioso do património monumental, para as vistas onde o verdejante dos campos sempre sobressai e convoca, até mesmo a comunicação urbana não é definitiva, pode muitíssimo bem acontecer que o nosso interlocutor quando se despedir parte para fora da cidade. Por isso me identifico tanto com uma frase que vem em "O Coro dos Defuntos", de António Tavares, Prémio Leya 2015, e penso em Tomar: “Na cidade, os espaços perdem-se por serem todos iguais. Ali, entre as ruelinhas de pedra rugosa, vive-se e observa-se o mundo em cada passada e percebe-se que a vida é feita deste gesto de andarilho que todos nascemos a saber fazer”. Então, subo ao Convento e fico a namoriscar alguns detalhes desta famosa pedra rósea por onde andaram escultores sublimes, é um lavrado da pedra de alguém que se enamorou pelo sítio, tanto ou mais como a encomenda que lhe fez o rei Venturoso, daí esta pedra não ter idade. Atenção, é uma arte exigente, pode gabar-se de exigir muita luz e peregrinação, a subir e a descer. Mas o produto final é um regalo para os olhos, é da melhor escultura do nosso Portugal.


Naquele primeiro andar estava o Comando do RI 15, até 1963, se não erro. Desculpem a petulância, a imagem é impressiva, as árvores parecem gritar, e talvez tenham razão, naquelas salas cumprimentaram-se, em jeito de despedida e em jeito de chegada, oficiais que partiram e que vieram da guerra, diferentes guerras. O chocante é que houve aqui um convento franciscano, maior mensagem de paz não podia haver. Hoje, este espaço é aprazível, tem um Museu dos Fósforos, trago aqui regularmente os meus amigos, e em frente artesãs delicadas fazem a sua arte de oleiras e ceramistas, que Deus as proteja.


Sai-se do Convento que já foi quartel e prantamo-nos na parede da igreja, sempre a honrar S. Francisco. É bem visível a urgência dos reparos, toda aquela humidade está a enfraquecer a construção. A parede em si nada tem a assinalar, são os contrafortes que dão a rijeza ao monumento que me impressionam, têm uma estranha delicadeza em construção tão austera. A hora não era muito boa para o que eu pretendia pôr em relevo e que se prende com o reparo deixado em cima, Tomar tem sempre a verdura a acenar-lhe, neste caso a Mata dos Sete Montes é uma vegetação de gala. Assim seja.


Quis o acaso ou fortuna que quando eu tinha sete anos vi nascer por inteiro a Avenida de Roma, em Lisboa, estávamos em 1952. Tudo impressionava: as linhas aerodinâmicas, as alturas, as sacadas, as portas maciças e um dado pormenor, as esculturas a encimar as portas, há mesmo um prédio que tem um trabalhador com um malho na mão, lembra a arquitetura dos tempos de Hitler e Estaline. Foi com muito agrado que descobriu uma escultorinha neste prédio, parece envergonhada, talvez enferrujada, é o símbolo de um tempo, aqui lhe deixo o meu agrado.


Nos anos 1930, em frente à Mata dos Sete Montes surgiu um belíssimo edifício heteroclítico que continua ao serviço do turismo. Alguém me disse que houve um presidente de câmara que repescou belas cantarias, tetos almofadados e outras preciosidades, e daí a sensação que persiste quando aqui venho obter informações ou ver uma exposição. Naquele dia abria a exposição da artista Romy Castro, o relato fica para depois. Pedi licença e, catrapus, captei um teto como não deve haver outro em oficinas de turismo em Portugal. Sei que há tetos muito belos em Tomar, ali bem perto na entrada do Instituto Politécnico é tudo um desfrute para o olhar.


É um dos meus esquinados favoritos, no centro da cidade, foi no princípio do dia, já havia cheiros de Primavera, um calor inusitado para as 10h30 da manhã, e aquela pedra terrosa parece que se desloca e aparta da alvura das paredes. O que me desgosta é a mistura de fios que desfeia a singularidade do património. Será que não havia outra solução para pôr estes cabos?


Quando por aqui passo, enamoro-me com as proporções entre largura e altura, mesmo aquela falta de pedra no lintel dá um ar de graça, parece uma Idade Média renovada, graciosa, e aquela roseira tudo humaniza, as plantas facilitam-nos o aprazimento do lugar, é o elemento simbólico do jardim que guardamos no olhar.



Sim, eu sei, são duas maneiras de viver, são dois prédios bem distintos, o primeiro tem mais ancestralidade, o que eu gosto do jogo de cores, prodigioso, um autêntico mano-a-mano entre a tinta e a pedra, é uma fachada cheia de classe. Mas gosto muito desta janela, aquele pormenor de a atirar para as alturas, aquela sacada que não tem mais nem menos do que precisa, e que se associa naturalmente ao conjunto. Chama-se a isto caráter, identidade, sopro criativo, gosto de viver, o conforto não se cinge ao que está intramuros, estas paredes falam, são o sinal permanente de que alguém assim construiu com um toque de personalidade, e comunicou satisfação de poder abrir a janela como se se abrisse para o mundo. Quem assim pensar até é capaz de ter razão, Tomar, nos seus momentos faustos, foi uma encruzilhada de muitos cruzados, foi uma janela que se abriu para o mundo, e não é por acaso que conserva a mais linda janela do nosso rincão, a do Capítulo.


Não vale a pena iludir o leitor, um portão aberto para dali chegar a uma varanda e deleitar a vista sobre jardim ou pomar, me encanta e assim remato a viagem garantindo que são estes jardins frondosos, este gosto pelo arvoredo, pelo colorido dos canteiros, o Nabão que por ali bordeja, as matas, o belo Mouchão e o seu murmurejar atravessando pontes, é isso que me encanta, não viver entre florestas de cimento mas de poisos humanos, naturalmente combinados entre o passado e o presente. É por isso que quando olhamos a cidade daquele balcão junto à igreja de Santa Maria dos Olivais temos a sensação que o património se acamou com a natureza, contemplando aquele fio de água que depois vai dar a Lisboa, por portas e travessas.

(Continua)
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Nota do editor

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