quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Guiné 61/74 - P17877: Historiografia da presença portuguesa em África (98): Bissau, em 1947, ao tempo de Sarmento Rodrigues, revisitada por Norberto Lopes, o grande repórter da "terra ardente"





1. Norberto Lopes (Vimioso, 1900-Linda A Velha, Oeiras, 1989) foi um notável jornalista e escritor, tendo estado entre outros ao serviço do "Diário de Lisboa", onde foi chefe de redação, desde 1921, cronista e grande repórter, além de diretor (entre 1956 e 1967). Saiu do "Diário de Lisboa" para cofundar em 1967 o vespertino "A Capital" (que dirigiu até 1970, ano em que se jubilou).

Mestre do jornalismo na época da censura, transmontano de alma e coração,. sempre se bateu pela liberdade de expressão, que considerou a maior conquista do 25 de Abril. Entre a suas obras publicadadas, destaque-se:"Visado pela Censura: A Imprensa, Figuras, Evocações da Ditadura à Democracia "(1975). Aprendeu a lidar com a censura e os censores e a escrever nas entrelinhas, como muitos jornalistas que viveram no tempo do Estado Novo,

Claro, conciso, preciso. objetivo e imparcial... são alguns dos atributos da sua escrita e do seu estilo como repórter da imprensa escrita, um dos maiores do nosso séc. XX português. Foi. além disso, um grande amigo da Guiné e dos guineenses. Tal como nós, também ele bebeu a água do Geba... Visitou aquele território pelo menos duas vezes. Esteve lá em 1927  e em 1947. Das suas crónicas de 1947, publicou o livro "Terra Ardente -Narrativas da Guiné" (Lisboa, Editora Marítimo-Colonial, 1947, 148 pp. + fotos). (*)

2. O trabalho de Norberto Lopes, sobre a Guiné ao tempo do governador geral Sarmento Rodrigues, cuja ação ele apreciava e elogiava publicamente, merece ser conhecido dos nossos camaradas, que fizeram a guerra colonial, entre 1961 e 1974. Quando fomos mobilizados para o CTIG, pouco ou nada sabíamos daquela terra e das suas gentes, da sua história e da sua geografia...

O livro de Norberto Lopes, "Terra Ardente - Narrati vas da Guiné", já não é de fácil acesso, para a generalidade dos nossos leitores (e muito menos para os nossos amigos da Guiné-Bissau) mas em contrapartida as suas reportagens, publicadas no "Diário de Lisboa", podem ainda ser lidas no portal Casa Comum, da Fundação Mário Soares.

Hoje reproduzimos, com a devida vénia, a segunda crónica que ele mandou para o seu jornal, justamente sobre Bissau, então em fase de grande crescimento. Foi publicada em 10/2/1947, há  70 anos, a idade por que rondam muitos dos nossos camaradas.

Apesar do "desenvolvimentismo" do governador-geral  Sarmento Rodrigues, havia já  problemas cuja solução se iria eternizar como, por exemplo, a projetada construção da ponte sobre o rio Mansoa, ligando a ilha de Bissau ao norte e ao sul da colónia... No nosso tempo, por exemplo, lá continuávamos a usar a velha jandaga em João Landim...

Não é indiferente saber que Bissau era uma povoação insalubre e insegura até ao tempo da I República...e que a fortaleza da Amura iria custar, além de 50 contos de réis, mais de um milhar de vidas (!), entre os seus trabalhadores, "vitimados pelo gentio, pelo escorbuto e pela malária"...

Em 1947 aguardava-se a projetada construção do porto de Bissau...Foi o  governador Carlos [de Almeida] Pereira quem, em 1913, deu início ao processo de desenvolvimento urbanístico de Bissau, então vila e depois  cidade (a partir de 1914), derrubando a famigerada muralha (um muro de tijolo de 4 metros de altura, e antes uma tosca paliçada...) que ia de um dos baluartes da fortaleza da Amura até ao cais do Pigiguiti, separando brancos e pretos, neste caso a colonos (europeus e cabo-verdianos) e o "chão de papel"...Era um muralha protetora com valor mais simbólico do que físico...Foi este gesto iconoclasta que acabou por dar origem à moderna Bissau que nós ainda iríamos conhecer.

Considerando que terá sido eventualmente um erro a transferência da capital, em 1941, por ter ferido de morte a histórica cidade de Bolama, o jornalista três décadas e tal depois. da ação decisiva do governador republicano, Carlos Almeida Paredes (outubro de 1910-agosto de 1913), dava  conta de (e descrevia em detalhe) os notáveis progressos de Bissau "onde se rasgaram largas avenidas paralelas ao eixo central formado pela Avenida da República" [, hoje, av Amílcar Cabral]...

3. Enfim, a cidade começava a ter uma "fisionomia europeia" (**)... O clube de ténis é local de encontro das  senhoras,  brancas e cabo-verdianas, tão raras ainda nos anos 20. Para os homens ficava reservada a bola ( e as paixões da bola). O campeonato de futebol da Guiné estava ao rubro: "Vi jogar os Balantas de Mansoa contra o Sport Lisboa e Bolama, em Bissau. Azuis e vermelhos lutaram com a mesma ralé [, garra, raça, vigor...] dos clubes lisboetas"... Enfim, duas boas equipas, constituídas, na curiosa expressão do autor, por "indígenas assimilados à civilização europeia"  (sic)...

E o repórter cita largamente o escritor Fausto Duarte (1904-1953), o autor de "Auá" (1934), de origem cabo-vrediana, funcionário da admimnistração colonial, que foi  testemunha privilegiada dessas mudanças históricas... Para Fausto Duarte, o coração, os pulmões, os braços e as pernas de Bissão estavam no Pigiguiti, nas suas embarações e nos seus estivadores... Onde Norberto Lopes parece ser menos preciso é quando escreve que a construção da primeira ponte-cais de Bissau, a "maior obra de engenharia da colónia",  foi atribuída a uma empresa inglesa.  Tanto quanto sabemos, a construção da ponte-cais do porto de Bissau, em betão armado, foi feita pela empresa Moreira de Sá & Malevez (1910-1913) (segundo informação de Luís Calafate, bisneto de Moreira Sá) (***).

A última crónica (ou "narrativa da Guiné") de Norberto Lopes será a do elogio público da obra e da personalidade do enérgico transmontano Sarmento Rodrigues, futuro ministro das colónias (e depois do Ultramar).  (***) (LG)





























Recorte do "Diário de Lisboa" (diretor: Joaquim Manso), nº 8694, ano 26, segunda  feira, 10 de fevereiro de 1947, pp. 1 e 9.

Cortesia de portal Casa Comum > Fundação Mário Soares > Arquivos > Diário de Lisboa / Ruella Ramos >  05780.044.11045

Citação:

(1947), "Diário de Lisboa", nº 8694, Ano 26, Segunda, 10 de Fevereiro de 1947, CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_22342 (2017-10-18)

[Seleção, montagem dos recortes, edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

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Notas do editor

(*) Vd. poste de 21 de setembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17785: Historiografia da presença portuguesa em África (92): quando a Guiné do tempo de Sarmento Rodrigues tinha uma "boa imprensa": Norberto Lopes, o grande repórter da "terra ardente"

(**) Sobre o planeamento e o desenvolvimento urbanístico de Bissau, bem como  da sua arquitectura colonial, vd. entre outros os  postes de:

12 de julho de  2014 > Guiné 63/74 - P13392: Manuscritos(s) (Luís Graça) (36): Revisitar Bissau, cidade da I República, pela mão de Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura e urbanismo da época colonial (Parte VII): O melhor edifício da cidade, a Associação Comercial, hoje sede do PAIGC, projeto do arquiteto Jorge Chaves, de 1949-1952
20 de junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13312: Manuscritos(s) (Luís Graça) (33): Revisitar Bissau, cidade da I República, pela mão de Ana Vaz Milheiro, especialista em arquitetura e urbanismo da época colonial (Parte VI): O novo bairro da Ajuda (1965/68), um "reordenamento" na estrada para o aeroporto...





A ponte de Ensalmá que que veio permitir
a ligação de Bissau a Mansoa
Vd. também os postes de Mário Dias:

9 de Fevereiro de 2006 >  Guiné 63/74 - P495: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite



Bissau, 1908, antiga ponte cais em madeira: desembraque de
tropas
27 de março de 2008 > Guiné 63/74 - P2691: Memórias dos Lugares (6): A Bissau dos anos 50, que eu conheci (Mário Dias)

4 comentários:

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Acredito que Bissau, no início do séc. XX, não fosse propriamente muito amigável para a rapaziada que vinha da metrópole... Não era só o mito: a Guiné era uam espécie de antecâmara do inferno... Quantos não deixaram lá os ossos!,,.

De resto, eram poucos e "pouco recomendáveias" os que se aventuravam por aquelas paragens. Os 500 anos de civilização são uma tanga!,,, Os europeus só "descobriram" África há cento e tal anos... E fizeram muita merda... Podia ter sido doutro jeito ? Não sei, em história não dá para fazer o exame duas vezes...

A máquina administrativa portuguesa devia ser "cabo-verdiana" até muito tarde... E os militares metropolitanos, "pocos, pero locos"... O Teixeira PInto nem sequer era metropolitano, era um verdadeiro "africanista"...

Sabemos, e esta reportagem vem reforçar a ideia, que nunca fomos um grande país colonizador....Nunca fomos colonizadores, e quando o fomos, éramos "pocos, pero locos"... Mas tiro o chapéu a homens com visão e grande patriotismo como Carlos Pereira e Sarmento Rodrigues...

Insisto na ideia, foi pena o Amílcar Cabral ter casado com uma portuguesa, devia ter casado com uma bijagó...

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Em dia de fuytebol, está tudo com as antenas viradas para outros lados...

Ninguém leu ou entendeu a minha provocação:

"Amigos e camaradas, antes de irmos para a 'vala comum do esquecimento', façamos uma derradeira viagem, de canoa nhominca, e vamos lá descobrir os Bijagós!... Não é Bolama nem Bubaque,,, É Caravela, é Orango, é o ilhéu de Qeuré (ou Keré...). No tempo da guerra, não havia tempo para fazer turismo, muito menos ecoturismo... Há muito que o Patrício Ribeiro, o 'pai dos tugas', deambula por lá, em trabalho e em lazer... Daqui a 50 anos os Bijagós podem ter desaparecido com a subida do nível da água do mar... E com eles, o bom povo bijagó, e os seus hipopótamos de água doce e salgada... Foi o único sítio onde não houve guerra, na Guiné, no nosso tempo!... Porque lá eram as mulheres quem mais mandavam e escolhiam os maridos...O Amílcar Cabral infelizmente casou com uma portuguesa, não com uma bijagó"...

Valdemar Silva disse...

Pois... grande treta.
Então os civilizadores cristãos e ocidentais?
Novos mundos ao mundo... tráfico de escravos e colónias penais.
Vá lá, uma igreja cristã 450 anos depois.
Agora, ao menos, viva a Ilha de Keré.
Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

A Guiné Bissau,devido à sua dimensão geográfica, podia servir para fazer uma biópsia a toda a África sub-sariana, colonizada pela europa.

(Devemos sempre com esta(s) minha(s) afirmação habitual, exceptuarmos, África do Sul e Rodésia (Zimbábué).

As muitas centenas de quilómetros de fronteiras que conheci de Bissau e Angola: Senegal, G.Conacry, Congo Belga, Zambia e Namibia,vi sempre os pretos tão escuros e encarapinhados como do nosso lado, apenas estas poderiam ter uma pequena diferença, aqui e ali, que seria por exemplo, duas casas de banho, uma para brancos e outra para pretos.

Do nosso lado, nada, porque teriam que ser três, porque os mestiços também eram filhos de Deus.

Ó Valdemar, e essa de uma igreja apenas, na Guiné, se achas pouco, vê a dimensão da Guiné, imagina quantas teriam que ser construídas no Brasil e Angola para estas não ficarem a perder.

Ainda se fizeram as fortalezas de Bissau e Cacheu um exagero em território tão pequeno.

Naquelas fronteiras que conheci bem, os pretos eram tão pretos e encarapinhados como do nosso lado.

Talvez o ferro de desfrizar (desfilizar)possa ter ido para lá quando os pastores protestantes, os jesuítas eram mais retrógrados, levaram-no mais tarde, mas também foi.

Mas no fundo, não se julgue que os portugueses apenas mataram os índios todos do brasil e trouxeram todo o ouro, e não deixámos nenhuns indios para os brasileiros matarem nem ouro para os brasileiros roubarem, como aprendem nos bancos da escola.