1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Outubro de 2017:
Queridos amigos,
Temos aqui o testemunho de um confrade nosso cuja vida foi brutalmente flagelada por um AVC, tinha ele 55 anos. É uma narrativa de alguém que nunca aceitou desistir e que hoje, apesar de limitações, se sente autodeterminado, tem carro adaptado, convive, escreve, não pára de sonhar, quer ser útil.
É um testemunho muito sentido, minucioso, um confronto entre um inesperado pesadelo e a subida íngreme para a autonomia, apesar de tudo.
Este livro é um hino à vontade de viver.
Um abraço do
Mário
José Saúde e um AVC contado na primeira pessoa
Beja Santos
José Saúde
O livro intitula-se “AVC, Recuperação do Guerreiro da Liberdade, Uma vitória no mundo dos silêncios”, por José Saúde, Chiado Editora, 2017. A substância do testemunho é um AVC que deixou aos 55 anos o nosso confrade José Saúde entre a vida e a morte. É uma descrição detalhada, que não escusa o íntimo, desses momentos de descalabro em que não se sabe contabilizar o volume das perdas até à recuperação em que se reganha a dignidade e autonomia, graças a uma resiliência inabalável.
Tudo começou na madrugada de 27 de Julho de 2006. A vontade superou as marcas físicas e reversíveis, o acidentado tornou-se uma pessoa motivada, dispõe de um carro adaptado às suas deficiências, move-se a pé pelas ruas da cidade de Beja, e faz um apelo genuíno a quem sofreu de um abalo tão demolidor: “As nossas mazelas, sendo evidentes, não podem, tão-pouco devem, servir de obstáculos a uma vivência rica em experiências inolvidáveis. O nosso ego propõe-nos conquistas num território armadilhado mas incansavelmente superadas”.
O que ele testemunha é que se considera um homem livre, que rejeita o coitadinho, a despeito das sequelas a nível dos membros, superior e inferior, do lado direito. “A minha mão não mais mexeu e a perna mostrou sinais de vitalidade mas de acordo com a extensão do dano. O membro inferior superou o possível e permitiu-me, em certa ocasião, deixar a cadeira de rodas, depois a bengala, apetrechos que muito ajudaram a ultrapassar uma condição considerada deprimente”. Teve alta em 11 de Agosto de 2006, saiu do hospital em cadeira de rodas. Começou o processo da recuperação. Logo a fala, não conseguia emitir sons percetíveis, começou um trabalho insano. Fazia frequentemente análises clínicas. Vivia inquieto: que será feito de mim, qual o meu futuro, será que voltarei a conviver com os meus amigos, como será a minha reintegração no processo familiar, será que vou sair da cadeira de rodas?
E disserta sobre o AVC e depois a fisioterapia, o uso do standing frame, um aparelho que proporciona uma alternativa posicional a quem está sentado numa cadeira de rodas, aprendeu tarefas conducentes a uma maior autonomia, a fazer a sua higiene, a respeitar escrupulosamente os alertas. Passou a olhar para o mundo de modo diferente, aprendeu com as limitações físicas e a reconhecer como é bom saudar a vida com prazer. E faz novo apelo: “Lembro, para ajudar alguém que é portador de um acidente vascular cerebral, tem primeiramente que recolher informações concisas sobre a forma de como lidar com o prejuízo que nos subjuga”. Adaptar é a palavra de ordem, toda a casa, a adesão à fisioterapia, o ganhar paulatinamente, deixando a cadeira de rodas, contando com a bengala, ganhando lutas com as pedras da calçada, a dominar a ansiedade, e assim se chega ao que é hoje: “Tomo banho, desfaço a barba, visto-me e calço-me, abotoo os botões, faço máquinas de roupa, estendo-a e apanho-a, passo-a a ferro, tomo o meu café, almoço a janto, trabalho no meu computador, passeio, convivo com os amigos. Ajudas, só em caso de extrema necessidade. Abdico da faca pela inércia da mão direita. Em casos pontuais solicito auxílio".
Superou o desapontamento quando um médico lhe disse que não podia voltar a conduzir, lutou e obteve um atestado médico, abriu nova porta de liberdade. Conta histórias dos altos e baixos, caso das injeções de botox, havia promessas de melhorar os músculos afetados, José Saúde entendeu desistir do medicamento e escolheu ser internado no Centro de Medicina e Reabilitação do Sul, em S. Brás de Alportel, sentiu-se compensado.
Com o tempo, voltou à praia, apreciou sentir a aranha macia, retomou a vida social, retomou o gosto da escrita, em 2013 publicou um livro sobre as suas memórias da Guiné-Bissau, chamou à atenção para os “filhos do vento”, aqueles frutos de amores espúrios entre militares e mulheres guineenses. Sente hoje muito mais força anímica contratando pessoas. Continua vigilante: “Dissecando a doença que atormenta, e não entrando exclusivamente por saberes dos técnicos de saúde, o meu problema, embora estável, não é seguro. Assumo essa inevitável certeza”.
Também para ajudar os outros acidentados pelo AVC, recorda o papel da mente na recuperação, a descoberta das imensas capacidades que mantemos ocultas, como, pela inversa, não devemos ignorar as taxas de insucesso, um terço das pessoas que sofreram um AVC ficaram incapacitadas. Apelando a que ninguém desanime, lança-lhe uma consigna: “Tropece e erga-se de imediato”.
Para os leigos, explica que há dois tipos de AVC, o isquémico e o hemorrágico, quais os tratamentos e a recuperação, bem como as sequelas. Depois do AVC, muitas coisas mudam na vida e os cuidados para a alimentação ganham prioridade. Testemunhando na primeira pessoa explica como supera os engasgos, as vantagens da natação, a recuperação da afazia. Leva mais de dez anos depois do AVC, conseguiu a autodeterminação, integrou-se na vida familiar, com maior pujança, alinha, a título de aviso que há comportamentos que têm que mudar. O médico fisiatra de José Saúde compraz-se com a alegria de viver que ele transmite, a alegria como sistema de vida, como esquema tático, bola para a frente e fé em Deus, prognósticos só no fim do jogo e esse ainda vem longe.
Um muito bonito testemunho de quem saiu vitorioso do mundo dos silêncios.
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Nota do editor
Último poste da série de 14 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17861: Notas de leitura (1004): “Casa dos Estudantes do Império, Subsídios para a História do seu período mais decisivo (1953 a 1961)”, por Hélder Martins; Editorial Caminho, 2017 (Mário Beja Santos)
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