Por sugestão do tertuliano Afonso M.F. Sousa (que andou a fazer pesquisas sobre a Teixeira Pinto / Canchungo):
Texto de Carlos Lopes (1) > A dimensão africana
A relação entre um grafema e fonema é algo que me suscita as maiores curiosidades. Como qualquer intelectual globalizado, o meu cosmopolitismo manifesta-se pelo conhecimento de várias línguas. Já não é fácil saber qual é a mais apropriada para cada sujeito em discussão. Dependendo da vivência associada ao tópico pode ser o francês, espanhol, mas também o inglês ou rudimentarmente o italiano, o alemão e até o grego. Por ter sido exposto de uma maneira ou outra a este leque de criações europeias, sou obrigado a caracterizar-me como um europeizado.
Paradoxalmente é o português que me aproxima da minha dimensão africana, porque ele serve de alimento a uma outra língua -o kriol- que é a raiz da contemporaneidade guineense.
Do português interessam-me muitas coisas, a começar pela relação específica que existe em qualquer língua entre grafema e fonema. Em nenhuma outra língua, nem mesmo em kriol (devido à sua jovem normalização), me sinto tão à vontade. Aqui posso emprestar as palavras mais densas, os verbos mais aristocráticos, as sílabas mais estridentes, as expressões mais amargas, sem qualquer hesitação fonética. É um atributo que me aproxima da língua de tal forma que ela se torna minha, propriedade pessoal, privada, individualizada... capaz de projectar os sentimentos mais egoístas e introvertidos.
E, no entanto, eu sei... eu tenho plena consciência que ela também é propriedade de milhões de pessoas de Braga a Canchungo, de Londrina a Bakau, de Newark a Lobito, de S. Vicente à Beira, de Penang à Ilha do Príncipe, muito para além das capitais de quem se atribui a lusofonia. É essa riqueza, que atravessa firmemente todas estas civilizações da língua portuguesa, que me emociona e me permite reconhecer, aqui e ali, nos mais diferentes espaços e contextos, o sentimento de que não estou só... no mundo.
18/04/1997
Fonte: © 1998 Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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(1) Sociólogo e escritor guineense, nascido em Teixeira Pinto/Canchungo, em 1960 . É um intectual africano de prestígio internacional. É actualmente um quadro superior das Nações Unidas.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
É também por isso que o nosso (dos falantes da língua portugesa, embora ele fosse bilingue...) Fernando Pessoa dizia, com propriedade, que "a língua é a minha pátria"...
Este texto do Carlos Lopes é, de facto, de antologia. Deixem-me, também aqui, expressar o o meu regozijo pela continuidade do projecto (único no espaço lusófono) que é o Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, de cujo sítio sou fã, desde a sua criação. A sua viabilidade (e nomeadamente financeira) acaba de ser garantida pelo apoio de empresas portuguesas ligadas às telecomunicações (CTT, Vodafone) e à edição (Texto Editora)... Ainda bem que o sentido de responsabilidade social das empresas não é uma mera figura de retórica...
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