quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Guiné 63/74 - P3238: Antropologia (12): O Crioulo da Guiné. Mário Beja Santos.

O Crioulo da Guiné-Bissau (IV)

Património do Crioulo Guineense

Provérbios, adivinhas, contos
Beja Santos

O crioulo guineense é uma singularidade cultural que ainda não está bem estudada: língua veicular entre as populações nativas, foi sobranceiramente tratada pelo colonizador como uma algaraviada que a língua portuguesa se encarregaria de deitar para o caixote do lixo da História.

Em “O Crioulo da Guiné-Bissau, Filosofia e Sabedoria”, publicado em 1989, Benjamim Pinto Bull lançou luz sobre a imensidão da riqueza linguística desse crioulo que se adaptou ao longo dos séculos e que faz comunicar os guineenses no Cantanhez ou no Monte Abraão, tal o seu vigor da sua originalidade.

Os provérbios guineenses que Pinto Bull conseguiu inventariar abarcam um universo onde cabem o divino e a providência, a casa e a família, a constelação das relações humanas, os múltiplos elementos naturais que envolvem o agricultor ou o pescador, mas também o cosmopolita e também as viagens e as deslocações. Da análise a este rico inventário, Benjamim Pinto Bull reflecte sobre o seu enraizamento na vida quotidiana do guineense, são provérbios que falam de recados, mensagens de prudência ou avisos morais, é uma ordem das coisas não introduzindo clivagens brutais entre os islamismo e o animismo mas não escondendo contradições aparentes no seu discurso proverbial, designadamente entre a religião e as superstições.

No tocante ao divino, há sempre a aceitação do juízo de Deus e seu inefável poder e misericórdia do tipo: sabe Deus o que faz; quem nada tem, Deus o mantém; quem cospe para o céu, na cara lhe cai.

Digamos que esta sabedoria não sai de qualquer classificação do que é o respeito pelo divino ou o convite ao seu acatamento. O que denuncia a profunda riqueza do provérbio em crioulo tem a ver com a vida doméstica e familiar: Recomenda-se prudência e fala-se no baga-baga (“Bu sinta riba di baga-baga, bu na rui cõ”, ou seja, estás sentado em cima de uma baga-baga e estás a dizer mal do solo, por outras palavras conversas com uma pessoas e dizes mal de alguém que até pode ser familiar ou amigo do criticado, recomendo-te toda a prudência).

Mas há mensagens de valor universal, do tipo “filho de peixe sabe nadar”, “de pequenino se torce o pepino”, “quem feio ama, bonito lhe parece”.
Os valores familiares, como sabemos, são quase místicos para quase todos os africanos, como nos lembra este provérbio: “Kasamentu ta kaba, ma kuñadadia ka ta kaba” ou seja pode haver separação, divórcio ou morte mas a cunhadia não acaba.
A moralidade africana fala da hospitalidade, da amizade inseparável (“Sila ku Prera dus kurpu nu korsõ”, Sila e Pereira, dois corpos num só coração), o auxílio mútuo, a compreensão, a tolerância e a verdade (“Bardadi e suma malgeta, e ta iardi” ou seja a verdade é como o piri-piri, arde).

Encontramos provérbios que nos referem a desavença, a vingança, a astúcia, a curiosidade, mas também a confiança, a solidariedade, a injustiça, a longa experiência e os aspectos práticos da vida.
Os provérbios crioulos envolvem animais como as fábulas de La Fontaine: a pintada (galiña di mato), a tartaruga, o mangusto e o abutre. Um outro aspecto colateral ao valor dos provérbios tem a ver com a fé no divino, a saúde e o sofrimento, o uso de fórmulas invocativas e esconjuratórias do crioulo, que acabam por pesar nas sentenças, sobretudo as que têm a ver com as superstições e o sincretismo religioso.

Igualmente as tradições e os costumes carecem de análise, pois vão ser usados recorrentemente na abordagem dos grandes valores da cultura guineense: o respeito pelos velhos, o culto dos mortos e as respectivas cerimónias, por exemplo.
O espaço ocupado pelas adivinhas não é fácil de mapear. Como observa Pinto Bull, na mesma adivinha há muitas vezes duas ou três palavras que nos podem levar a integrá-la em categorias diferentes; como nos provérbios, certas letras maiúsculas precedem a adivinha crioula e no final há um comentário sucinto. Obviamente que a fórmula é sempre a mesma: Qual é a coisa? Qual é ela? As adivinhas constituem um rico manancial da narrativa oral.
Os anciãos, sobretudo à noite, à volta da fogueira, empolgam as crianças com estes jogos de adivinhas que falam de mistérios, trabalhos agrícolas e das relações morais que vinculam as comunidades.

Como escreve Pinto Bull, a maior parte das adivinhas da Guiné tem as suas raízes profundas nas aldeias, na vida quotidiana do trabalhador guineense, por isso falam de abóboras, arroz, mandioca, porco ou rio. A adivinha é um exame, instiga à conversação e o diálogo, toda a pergunta tem solução.

Todo este entrelaçado da filosofia e da sabedoria tem o seu ponto alto nos contos ou stória: Deus e os animais, os homens e os animais, os animais entre si, um único, dois ou três animais como personagens principais. A lebre pode pedir a Deus para que lhe dê mais esperteza. Deus pode chamar a lebre e mandá-la pela floresta à procura da pele de jibóia para fazer sandálias; um caçador vai à caça encontra um crocodilo, este suplica-lhe para ele não lhe tirar a vida, começa aqui a moralidade; a lebre pode conversar com o hortelão? O jambatutu, o rei dos pássaros, terá de aparecer nestes contos, terá a sua imagem maltratada, o falcão pode conversar com o abutre, a lebre com a perdiz ou com a hiena, esta com a coruja, o camaleão com o elefante, ou então a lebre, o elefante e o hipopótamo, mas também o cão, a cabra e a vaca.
A estrutura do conto tem grande plasticidade o importante são a motivação e as ligações, pode recorrer a antagonistas, uma vítima e um caçador, é indispensável que o processo narrativo consagre o diálogo, alguém que peça clemência, há um momento de tensão ou maldade, segue-se a reparação e a moral da história.
Segundo Pinto Bull é em torno destas stória que o crioulo brilha mais alto. É uma língua engenhosa, exalta o direito à diferença, a protecção do mais fraco, o saber vencer e derrubar todos os obstáculos. É neste estrutura narrativa que o contador educa e alerta o auditório para os valores da justiça, da solidariedade, da hospitalidade, do respeito pelas tradições, os exemplos de coragem.

Com mensagem à guisa de conclusão, Pinto Bull insiste que o português continuará a ser a língua de expressão oficial mas o crioulo a língua que corporiza a unidade dos povos da Guiné, é e será a língua da nação que cimenta uma comunicação entre tão díspares línguas maternas.

Para Pinto Bull, a lusofonia é exactamente isto: complementaridade, uma unidade dentro da diversidade, um convívio linguístico sincero e fraterno. E o autor despede-se dos seus leitores com mais de dois mil vocábulos crioulos de um glossário comparando-os com o português e francês já que estas duas línguas são indispensáveis para estudar mais profundamente o que é a essência do crioulo da Guiné-Bissau.
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Notas de vb:

(1) Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), autor de "Diário da Guiné": 1968-1969: Na terra dos Soncó. Lisboa: Temas & Debates. 2008. Uma obra de que o nosso blogue se orgulha de apoiar e de ter visto nascer. Começou por ser uma série, publicada semanalmente no nosso blogue, ao longo do ano de 2007. Está prevista a saída do 2º volume, em Novembro próximo com o título provisório: Diário da Guiné: 1969-1970: Tigre Vadio. Disponível também no Círculo de Leitores. (Luís Graça)

(2) artigos relacionados em 14 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3206: Antropologia (11): O Crioulo da Guiné. Mário Beja Santos.

1 comentário:

Anónimo disse...

A lingua dos PALOPS é a Lingua de Camões.
OS PALOPS querem que a língua de Camões seja oficializada na ONU.
Quem é quem? Tão fracturante, ao insinuar que Camões e os PALOPS deitaram o Crioulo da Guiné para o caixote do lixo da História? Quantas línguas há na Guiné para além do Crioulo?
A Tabanca Grande é para dividir ou para unir?

Para toda a Tabanca o abraço da união maior que o Cumbijã

Mário Fitas