O nosso camarada António Graça de Abreu, "disfarçado de mandarim", no Palácio Imperial, em Pequim. Ele viveu e trabalhou na China entre 1977 e 1983. É um notável poeta e tradutor de poesia, nomeadamente chinesa clássica. Neste preciso momento, ele está em Pisa, Itália, num encontro internacional de poesia, de onde nos manda um abraço para toda a Tabanca Grande.
O A. Graça de Abreu, "em traje comunista", em Shanghai.
Fotos: © António Graça de Abreu (2009). Direitos reservados
Os Seres, Saberes e Lazeres (8) > Du Fu (712-770), um poeta chinês, e a nossa Guiné (*)
por António Graça de Abreu (**)
Há umas três semanas atrás, quando da apresentação do site da Guerra Colonial, da Associação 25 de Abril, na Academia Militar, disse ao nosso comandante e tertuliano-mor Luís Graça que me diluo pelos dias atarefado, assoberbado com as esplendorosas dificuldades de traduzir mais um dos maiores poetas da China, de nome Du Fu (leia-se Tu Fu).
Esta é a minha quinta tradução, depois dos Poemas de Li Bai (701-762), Poemas de Bai Juyi (774-846), Poemas de Wang Wei (701-761) e Poemas de Han Shan (sec. VIII), todos editados em Macau, excepto o último que aguarda publicação.
Mas o que é que isto ver com a nossa Guiné?
Du Fu, o poeta que agora traduzo, nasceu em 712. A primeira parte da sua vida estendeu-se por uma existência de simples e depurados prazeres, anos requintamente vulgares. Depois, a partir de 750 e até 765 - Portugal então não existia, andávamos às voltas com os visigodos nos espaços que hoje são Aveiro, Santarém, Beja, etc. - o império chinês viveu uma das mais cruentas guerras da sua História. Du Fu testemunhou tudo isso.
A China contava com 56 milhões de almas, e nesse período, as rebeliões, os grandes combates, (chegavam a morrer cem mil homens numa só batalha!), mais a fome e a miséria do povo provocaram 12 milhões de mortos.
Qualquer semelhança com a nossa guerra da Guiné é estulta e insensata, quer dizer, está demasiado longe das realidades que vivemos em África.
Mas, com muitos séculos de permeio, homens made in China ou made in Portugal, todos somos gentes do mundo.
Traduzi o mês passado mais um poema de Du Fu, falecido em 770, e lembrei-me dos nossos camaradas da Guiné, e do álcool que então bebíamos às pázadas, era o nosso modo bem português de, fodidos, refodidos, “dar de beber à dor”.
Fernando Pessoa (1883-1935) dizia: “Boa é a vida, mas melhor é o vinho.” Como a nossa vida não era boa, o álcool era excelente.
Leiam o poema de Du Fu escrito em 754, e digam-me se estas palavras já com treze séculos têm ou não a ver connosco, camaradas da Guiné. E, mais importante do que todas as guerras, têm ou não a ver com a amizade que nos une.
Este (meu) poema de Du Fu (712-770), vai com dedicatória para os camaradas da Tabanca de Matosinhos.
Um forte abraço, meus amigos!
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Bêbado, uma canção
Muitos ascenderam ao topo da hierarquia,
tu, meu amigo, continuas a padecer ao frio.
Nas grandes mansões, empanturrados com iguarias,
tu, meu amigo, mal consegues uma malga de arroz.
A tua filosofia, um coração cristalino, pouca ambição,
o teu talento, superior ao dos letrados do passado.
Respeitado pela tua virtude, condenado, sem glória,
a deixar o teu nome para além dos séculos.
És um rústico que não é desta terra,
de cabelos finos, motivo de mofa e zombaria.
Queres arroz, vais ao celeiro imperial,
obténs ainda cinco colheres por dia,
mas se queres abrir o coração,
vem ter comigo, meu amigo.
Quando ganho umas tantas moedas,
cuido de ti, vamos gastá-las em vinho.
Que nos interessa a pompa, o luxo, as cortesias,
somos gente simples, descuidada e livre!...
Meu mestre, enchemos, bebemos as taças até ao fim,
em silêncio na noite da Primavera.
Lá fora, a chuva fina como flores
caindo dos telhados, apagando as lanternas.
Entoamos cânticos, animados, iluminados
por espíritos a montante, a jusante do rio.
Para quê pensar tanto no destino?
Sim, a fome, e por túmulo, uma vala qualquer.
Outrora, um grande poeta lavava canecas de vinho,
um ilustre letrado lançou-se de uma torre.
Quem somos nós, no fim de tudo?
Melhor retirarmo-nos cedo, voltar a lavrar a terra,
cuidar dos telhados de colmo, dos caminhos, do musgo.
Os ensinamentos de Confúcio, afinal para que servem?
Sábio, salteador de estradas, todos regressam ao pó.
Para quê tanta tristeza, tanto queixume?
Estamos vivos, vamos beber umas taças de vinho.
Du Fu (712-770)
(tradução: António Graça de Abreu)
__________
Notas de L.G.:
(*) Vd. últimpo poste da série > 7 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3579: Os Nossos Seres, Saberes e Lazeres (7): A Toque de Caixa, com o Abílio Machado, ex-baladeiro de Bambadinca (Luís Graça)
(**) O António Graça de Abreu nasceu no Porto, em 1947, tendo-se licenciado em Filologia Germânica. É também Mestre em História pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa.
Entre 1977 e 1983 leccionou Língua e Cultura Portuguesa nas Universidades de Pequim e Shanghai. Investigador da presença portuguesa na China, foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e da Fundação Oriente.
Tem uma dúzia de livros publicados na área da Sinologia, da poesia e dos estudos luso-chineses. Vive no Estoril. É actualmente professor, na Escola de Ensino Secundário José Saramago, em Mafra. Disse-me recentemente que ia (ou estava a) tratar da reforma.
Traduziu para português O Pavilhão do Ocidente (1985), teatro clássico chinês, e os Poemas de Li Bai (1990) - Prémio Nacional de Tradução do Pen Club Português e da Associação Pirtuguesa de Tradutores, 1991 - , além dos Poemas de Bai Juyi (1991) e Poemas de Wang Wei (1993). É autor de China de Jade (1997), China de Seda (2001), Terra de Musgo e Alegria (2005) e China de Lótus (2006).
Na área da história, é co-autor de Sinica Lusitana, vol. I e II, (2000 e 2003). Escreveu também a biografia de D. Frei Alexandre de Gouveia, Bispo de Pequim, (1751-1808), Lisboa, Universidade Católica, 2004.
Pertenceu, entre 1996 e 2002, à direcção da European Association of Chinese Studies (Heidelberg e Oxford). Também eccionou Sinologia na Universidade Nova de Lisboa (1986/88) e no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (1997/99).
Como alferes miliciano, teve uma visão privilegiada da escalada da guerra da Guiné, entre 1972 a 1974, a partir do CAOP 1 a que pertenceu (Teixeira Pinto ou Canchungo, Mansoa e Cufar). Dessa sua experiência, do seu diário e dos mais de 300 aerogramas que escreveu, resultou o seu 12º livro, Diário da Guiné - Lama, Sangue e Água Pura, lançado em 2007. (Lisboa: Guerra e Paz, Editores. 2007. ISBN: 9789898014344. Preço: € 22.
Na resposta a um pergunta sobre os seus heróis, do famoso questionário de Proust, conduzido pelo PEN Clube Português de que é sócio, o António respondeu:
- Os soldados que morreram a meu lado na guerra da Guiné. (***).
Li Bai, poeta chinês do Séc. VIII (701-762), é um dos seus poetas preferidos, a par de Camões e de Wang Wei.
É casado com uma médica chinesa, de quem tem um filho, hoje estudante universitário. A mulher da sua vida não é, pois, a mesma a quem escreveu centenas de aerogramas quando estava na Guiné.
Tive o grato prazer de conhecer pessoalmente em 28 de Abril de 2007, em Pombal, no 2º encontro da nossa tertúlia. Depois disso, temos já nos encontrámos várias vezes. O António autografou-me e ofereceu-me boa parte dos seus livros, distinção que me honra, como camarada e amigo. Disse-me, na altura em que o conheci, que não desejava voltar à escrita sobre a guerra da Guiné, o que não é inteiramente verdade, já que o António tem sido um atento leitor do nosso blogue e um activo colaborador.
(***) Vd. Pen Clube Português > 30 PERGUNTAS A PARTIR DO QUESTIONÁRIO DE PROUST:
1. O que é para si a felicidade absoluta?
R- Paz, serenidade, amor
2. Qual considera ser o seu maior feito?
R- A minha tradução dos Poemas de Li Bai (701-762), Prémio Nacional de Tradução1990.
3. Qual a sua maior extravagância?
R- Amar.
4. Que palavra ou frase mais utiliza?
R- Não sei.
5. Qual o traço principal do seu carácter?
R- Generosidade, ingenuidade.
6. O seu pior defeito?
R- Teimosia.
7. Qual a sua maior mágoa?
R- Amores desavindos
8. Qual o seu maior sonho?
R- Amores não desavindos.
9. Qual o dia mais feliz da sua vida?
R- Aldeia Branca, início de Junho de 1985.
10. Qual a sua máxima preferida?
R- Se conheces, actua como homem que conhece, se não conheces, reconhece que não conheces. Isso é conhecer. (Confúcio disse!)
11. Onde (e como) gostaria de viver?
R- Canedo, Vila da Feira, numa casa sobranceira a um regato, na floresta com a mulher da minha vida.
12. Qual a sua cor preferida?
R- Verde.
13. Qual a sua flor preferida?
R- Lírios, rosas.
14. O animal que mais simpatia lhe merece?
R- O panda.
15. Que compositores prefere?
R- Beethoven, Mozart, Débussy.
16. Pintores de eleição?
R- Greco, Leonardo, Miguel Ângelo, Goya, Ingres.
17. Quais são os seus escritores favoritos?
R- Eça, Camilo, Cao Xueqin,
18. Quais os poetas da sua eleição?
R- Camões, Li Bai, Du Fu, Wang Wei.
19. O que mais aprecia nos seus amigos?
Honestidade, alegria de viver.
20.Quais são os seus heróis?
R- Os soldados que morreram a meu lado na guerra da Guiné.
21. Quais são os seus heróis predilectos na ficção?
R- Becky, de Tom Sawyer, (Mark Twain), Bao Yu do Sonho do Pavilhão Vermelho de Cao Xueqin (sec. XVIII).
22. Qual a sua personagem histórica favorita?
R- D.João II.
23. E qual é a sua personagem favorita na vida real?
R- Wang Hai Yuan.
24. Que qualidade(s) mais aprecia num homem?
R- A honestidade, a coragem, a lealdade.
25. Que qualidades mais aprecia numa mulher?
R- As mesmas, mais a beleza.
26.Que dom da natureza gostaria de possuir?
R- Uma enorme aptidão para ler e falar bem chinês.
27. Qual é para si a maior virtude?
R- A honestidade.
28. Como gostaria de morrer?
R- Em paz, de repente, concluídos todos os grandes trabalhos.
29. Se pudesse escolher como regressar, quem gostaria de ser?
R- Um grande mandarim chinês do século XVIII.
30. Qual é o seu lema de vida?
R- Amar, trabalhar, descansar.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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7 comentários:
Vi o "Expresso da Meia-Noite" e entrei noite dentro em leituras de busca.Curiosamente demorei-me no Sun Tzu. Hoje, ainda não desperto, manhã alta, leio o Post. Passei ao correr do rato o Questionário de Proust. Para depois, mais devagar e atento. È como a leitura do Diário da Guiné.
Depois da Tempestade a Bonança... não sei de quem é...de Confúcio não certamente. Leio devagar e vou descobrindo...por isso as questões do Proust para logo. Se tiver arte e engenho escreverei. Prometido já estava e o erro ultrapassado...
Um abraço Amigo, outro aos Editores e ainda mais um a todos os Tertulianos. Bom fim-de-semana.
Torcato
Já li as respostas ao Quest/ de Proust. Agora, lentamente vou pelo Diário. Depois mando um e-mail...
Já imaginaste a Grande Muralha á volta do nosso País? Era espiral...
AB do TM
- A Torre não cai e não é defeito; é feitio. Há gentes assim.
Caro António,
Abri o teu livro ao acaso.
E não resisti!
NOSSO FADO
Sufocar a alegria,
enredá-la em cintilantes roupagens de pranto,
na viagem pelo logro aberto das palavras,
carpir no disfarce extremado da tristeza.
Ai, este gosto de fingir tantas penas,
de tão fingidas e falsas, verdadeiras!..
Ai, este fado tão magoado,
esta malfadada lamúria lusitana,
mesmo num tempo sereno,
com céu azul nos olhos
e girassóis na alma!
(In "Cálice de Neblinas e Silêncios" de António Graça de Abreu)
Sempre!
O velho abraço do nosso Cumbijã
Mário Fitas
Li o poema, mas confesso, nao sou amante de poesia, mas acho que me caiu uma coisita vinda dos olhos mesmo antes de acabar. A serenidade, a filosofia do povo chinês, na insignificancia do meu conhecimento, acho que está bem espressa na tradução do meu caro conterrâneo António. Que pisou também um pouco dos terrenos onde esporidicamente passei.
Em nome da Tabanca de Matosinhos não vou, não posso, nem devo sequer tecer qualquer consideração. Mas em meu nome pessoal, agradeço este momento lindo que me deu a conhecer.
Jorge Teixeira
Apenas para deixar um abraço camarigo dos grandes ao António.
Joaquim Mexia Alves
António: Obrigado por esta pérola literária. É um hino à amizade, à camaradagem, à solidariedade, à humanidade.
É isso, meu caro Du Fu, meu António Graça de Abreu, meus amigos e camaradas da Guiné, estamos vivos, vamos beber a taça de vinho da amizade e da camaradagem!
Tudo tem uma data,um tempo e um
lugar..A POESIA não!Intemporal e
Universal fala-nos da Guerra.
Diferente?Mudam as armas.E os Homens?
Um Abraço.
Jorge Cabral
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