sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3918: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (10): Bula-Janeiro de 1971

1. Mensagem de Luís Faria, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 16 de Fevereiro de 2009:

Amigo Vinhal

Segue mais uma estória de “Viagem à volta das minhas memórias” que relembra situações de um mês atribulado.

Um abraço extensivo ao Luís e ao Virgínio e a toda a Tertúlia
Luís Faria


Bula – Janeiro de 1971

O Natal de 1970 passei-o ao relento com o meu 2.º GComb, saboreando a ração de combate, sob um manto de estrelas vigilantes como nós, numa emboscada preventiva a um inimigo que nesse noite e dia não compareceu.

O Dezembro findou e sem que tenha qualquer lembrança da Passagem do Ano, entrei no Janeiro de 1971 com mudanças na Força, tendo o 4.º GComb sido deslocado para Teixeira Pinto logo nos primeiros dias, com missão de protecção (creio) à construção da estrada Teixeira Pinto - Cacheu. E com ele lá foram o Fontinha, o Chaves e outros amigos e companheiros.

Por Bula fiquei com a restante 2791, na rotina das emboscadas de segurança e patrulhamentos de intercepção, nas laterais da estrada Bula - S. Vicente e outras.

Tudo corria normalmente até que no dia 19 de Janeiro a coluna auto que transportava o GComb da CCaç 2790 (GComb do Alf António Matos) é emboscado, creio que ao K12 da estrada de S. Vicente, causando a morte a um Furriel e dois Soldados da Companhia açoriana e o segundo morto extemporâneo e sem nexo da 2791, o Soldado Condutor Auto que conduzia a viatura, António Ferreira. Era a segunda morte, estúpida, da Companhia no curto espaço de um mês!

Não sei se por causa deste acontecimento, o meu 2.º GComb é enviado na noite seguinte para Ponta Matar com objectivo de interceptar o grupo In que não teria passado para Choquemone.

O pessoal sai, outra vez os olheiros e a bicha de pirilau percorre a distância durante a noite sem luar até ao K10 (julgo) onde inflectimos para oeste, em direcção a Ponta Matar.

Não tínhamos ainda chegado à orla da mata e começa o embrulho. Na altura ia a meio do Grupo o que não era normal e o espassamento do pessoal era curto por causa da visibilidade na noite. Ouvia as chicotadas e alguns clarões dos disparos. Os tiros eram baixos, estávamos em campo praticamente aberto e eles estavam na orla da mata. O pessoal ripostou como pode, orientando-se pelos clarões dos disparos.

Acabado o confronto e com um ferido ligeiro que não obrigou a evacuação, há que reunir e pedir ao Comando ordem para abortar a operação, pois considerávamos que a continuar íamos de certeza ter problemas prolongados e muito graves. Por fim o Comando aceitou, abortou-se a operação e regressámos ao quartel.

Nessa tarde e como de tantas outras vezes, fui dar uma volta pela Vila e beber umas cervejas no Silva onde às tantas, no meio de uma conversata um civil referindo-se à nossa operação diz mais ou menos isto:

- Então logo Furié vai p’ra lá outra vez?! - Não liguei, estava em conversa da treta.

Regressado ao quartel, sigo os rituais normais, umas leituras, uns toques de viola, umas conversas com os amigalhaços, até que chega a hora do briefing onde me é e ao Castro comunicada a ordem de preparar o Grupo para à noite arrancarmos de novo para a zona de Ponta Matar! Do subconsciente passou ao consciente a boca da tarde: - Logo vai p ’ra lá outra vez! Fiquei estupefacto e encara… como era possível?! E contei o que se tinha passado. Reclamei, protestei, argumentei… mas sem resultados. Eram ordens do Comando… e passada uma dúzia de horas de termos regressado, lá sai de novo o 2.º Grupo em direcção a Braque, Belibar e Ponta Matar (por inclusão considerava-as matas de Ponta Matar) com o objectivo de patrulhamento, detecção de acampamentos, intercepção do IN que andava na zona, com intuito eventual de passagem para Sul ou preparação de ataque a Bula.

Era uma operação arriscada, pois concerteza iriam estar à nossa espera. Os cuidados foram redobrados e os soldados nada sabiam da conversa, pois não era preciso mais aviso do que o que acontecera umas horas antes. A entrada na mata fez-se por sitio diferente e a corta-mato

Estas matas eram, ao que lembro, muito mais densas do que as do Choquemone, com zonas arbustivas em que os ramos se entrelaçavam de tal maneira que era praticamente impossível penetrar, entremeadas por embondeiros de grande porte e árvores normais para além do capim que muitas vezes era mais alto do que nós. Nelas estive em zonas onde o sol quase não entrava, e a lembrança do cheiro a que eu chamava cheiro a formigas mortas, ainda hoje me estimula a pituitária.

Entrados na mata, o corta-mato cauteloso continua sempre que possível e quando o amanhecer chega, já estamos bem embrenhados na vegetação sem haver sinal de termos sido detectados nem de presença IN.

A evaporação da humidade do solo é bem visível, formando uma espécie de neblina. Os sentidos estão alerta e atentos ao ambiente envolvente. Sempre que se pressente algo, pára-se, observa-se, escuta-se, por vezes aproveita-se para comer algo da ração, já que nas operações não fazíamos estacionamento. O Choquemone tinha-nos ensinado!

Numa dessas paragens, a manhã já ia alta, grande parte do patrulhamento está feito e estou sentado entre as raízes(?) de um embondeiro (cabaceira). Ouço um tiro próximo à minha esquerda, logo de seguida um outro. O pessoal ficou em silencio absoluto. Chamo o Augusto (o meu sobrinho por ser mais baixo, olhos azuis, cabelo loiro e bigode estilo o meu) e digo-lhe:

- Consegue trepar a essa árvore? - Tendo assentido, disse-lhe para o fazer, ver o que se passava e caso começassem os tiros para descer de imediato. Ouço outro tiro, desta vez mais longe e pela minha frente, no sentido da nossa progressão. O Augusto não vê ninguém e desce. Estou convencido que detectaram tardiamente o trilho da nossa entrada e patrulham. Instantes depois arrancámos seguindo na direcção do último tiro e nada encontrámos, nada aconteceu.

Inflectimos em direcção à estrada para regresso e começa o fogachal de que a única coisa que recordo é de ter sido com grande intensidade e pela primeira vez ter distinguido as morteiradas a caírem próximas.

Não tivemos feridos e do IN não vi vestígios. Mais tarde, talvez por informações, soube que tinham sofrido nas duas operações mortos e bastantes feridos?!

Regressado ao quartel, reentro na rotina e assim ando até 28 de Janeiro, dia em que o Urbano me concede a tal balda por doença (!?!) que me permite um dia de descanso.

Nesse mesmo dia o quartel é flagelado com 6 foguetes 122 que não atingem o objectivo e caem na zona da pista, por detrás do quartel. Às peripécias deste dia farei referência mais tarde.

Um abraço a todos
Luís Faria

Bula - Luís Faria em Ponta Matar

Foto: © Luís Faria (2009). Direitos reservados.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 10 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3867: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (9): Periquito quase depenado

3 comentários:

Júlio César Ferreira disse...

Caro e querido amigo
Como é bom recordar as histórias passads na Guiné. Quem me dera ter a tua verve!Infelizmente, muitas das minhas memórias foram-se aquando a minha doença em 1975, quando entrei 12 dias em coma no hospital de S. João.Quanto lastimo...
Continuaa deliciar toda a gente com as "aventuras" da tua 2791, que palmilhou Teixeira Pinto, Capó, Cacheu e outros lugares miticos da "nossa" Guiné. Lembras-te daquelas marchas por Teixeira Pinto, com os Páras, fuzas e outros, contra o Rafael Durão? E os celebres jogos de Quino, para ganhar dinheira pró cinema?

Um abraço do teu conterraneo e amigo

Júlio César

Anónimo disse...

Estimado conterrâneo e Amigo Júlio

Um grande abraço e a promessa de um dia destes nos juntarmos numa "cerimónia"
Obrigado pelos teus dizeres,mas... Tu, que foste e és mentor daquela singela mas bonita reunião anual dos Veteranos da Guiné,do vale de Vizela, que tem um dos seus momentos altos(e comovedores)junto a esse singelo mas expressivo Monumento aos nossos mortos ; tu que convives quase diariamente com ex-combatentes e conheces muitas das suas estórias,para além das tuas próprias; tu ,que com a tua observação fotográfico - jornalística perspicaz e crítica , sabes captar como poucos, imagens das coisas estecticamente belas ou nem por isso; tu,que és um divulgador brioso dos Ícones da tua / nossa terra, Vizela; tu, que andas um tanto arredado dos escritos para este blogue, recomeça e dá-me (nos) o prazer das tuas narrativas.

Um grande abraço
Luís S Faria

Lembras-te da cmaroada lá no bar da tua guerra?!

Anónimo disse...

Continua.Por breves meses, os nossos caminhos descruzaram-se.Retomamo-los em T.Pinto e aí, temos estórias inesgotáveis.Lá chegaremos os dois, com relatos, alguns bem gostosos.
Até lá...

Jorge Fontinha