domingo, 15 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3894: O cruzeiro das nossas vidas (13): S.O.S., fogo a bordo do Carvalho Araújo (Luís F. Moreira)

1. Mensagem de Luís F. Moreira (*), ex-Fur Mil TRMS da CCAÇ 2789/BCAÇ 2928, Bula, 1970/72, com data de 13 de Fevereiro de 2009: Complemento do escrito do António Matos e a sua viagem para a Guiné, com todo o respeito e consideração por tudo quanto tem escrito. Obriga-nos a retirar das gavetas das nossas memórias recordações envelhecidas. A nossa atribulada viagem para a Guiné Dia 25 de Novembro de 1970, cerca das 10.00 horas, tudo a postos para embarcar mais uma carga para a Guiné. Todas as cerimónias habituais, ninguém ligou nada. Portaló colocado ao navio e começaram a entrar os militares que pertenciam às Companhias, em seguida aqueles que iam em rendição individual, (era o meu caso), e quando toda a gente pensava que íamos seguir viagem, começaram a chegar carrinhas militares, mas celulares. Imediatamente surgiu um boato, constava que tinha havido distúrbios a bordo e que os tropas envolvidos já não iam seguir connosco, mas iriam presos. Passado algum tempo tudo se clarificava, as carrinhas começaram a encostar ao navio e a descarregar os presos que transportavam, eram militares que iam de facto para a Guiné de castigo e com a indicação de serem colocados em locais de maior porrada. Recordo apenas um ou outro pormenor. Vinham de diversos quartéis; um deles tinha a alcunha do gaiolas e o seu crime tinha sido pegar num jeep do Quartel do Batalhão Caçadores 9, em Viana do Castelo e num fim-de-semana que não tinha passaporte foi para casa e só veio quando o foram buscar. Posto isto, o Carvalho Araújo zarpou barra fora. Nos primeiros dias os enjoos do costume e quase toda a gente a não conseguir comer, por isso a não preservar os instrumentos que lhe iriam fazer falta nos dias que a fome apertasse e o enjoo passasse. Era ver pelo convés garfos, facas copos e pratos abandonados, houve até quem os atirasse ao mar. No terceiro dia, houve simulacro de incêndio, para cada um saber o que fazer em caso de emergência e qual a baleeira que lhe era atribuída em caso de evacuação. Todos ficámos espantados com as camadas de tinta que tinham os cabos das roldanas que deveriam estar soltos para levarem as mesmas para a água. No quarto dia, cerca das 4.00 horas, foi dado o alarme de incêndio a bordo e que cada um deveria ocupar os lugares previamente distribuídos, todos pensamos que seria mais um simulacro e portanto não tínhamos nenhuma pressa, ainda por cima de madrugada. Tomámos consciência da realidade quando vimos a tripulação já de coletes vestidos, atrapalhados e a não saber o que fazer. Verificou-se que existia uma fuga de fuel na cozinha e que ia escorrendo a arder para dentro dos porões, local onde eram acomodados os soldados, em beliches feitos em madeira. Estava o pânico instalado, os que estavam dentro dos porões queriam sair, e quem queria apagar o fogo tinha que entrar. O acesso era apenas uma mísera escada de madeira com um corrimão. Eis que surgem os nossos salvadores, autênticos bombeiros de primeira qualidade, eram os militares que tinham chegado nas carrinhas celulares, que pondo em perigo as suas próprias vidas se lançaram heroicamente contra tudo e contra todos a apagar o incêndio que já estava a tomar proporções incontroláveis. Ao fim de pouco tempo tudo estava resolvido, mas sem nenhuma dúvida graças a esses corajosos companheiros, que com a sua generosidade e alguma loucura resolveram a situação. Reunidos os comandantes das tropas e do navio, decidiram de imediato propor um louvor a todos esses presidiários. De novo eles tornaram a surpreender. Todo o equipamento que havia na parte exterior do navio foi por eles atirado ao mar, e não mais houve cadeiras ou bancos para alguém se sentar a apanhar um pouco de sol. Escusado será dizer que o louvor ficou apenas pela proposta. O Carvalho Araújo estava mesmo muito mal e ao sétimo dia voltou a incendiar, desta vez com menos violência e a tripulação resolveu o problema. Toda a gente queria era chegar depressa à Guiné, pois morrer por morrer que fosse em terra. Finalmente chegámos em 04 de Dezembro de 1970. Regressou a Lisboa e penso que aí sim foi dado por incapaz e não mais voltou a navegar. Muito ele durou, pois falava-se que o mesmo já estava arrumado para abate, mas foi recuperado para transporte de tropas. Carvalho Araújo, N/M da Empresa Insulana de Navegação. Tinha lotação para 354 passageiros. Foi abatido em 1973. Imagem extraída de navios porugueses. Com a vénia devida. Frente e verso da Ementa do primeiro jantar servido a bordo do Carvalho Araújo A bordo do Carvalho Araújo > Saida da Barra de Lisboa > Da Esq para a Dta. > ???, Luís Moreira, ??? e ex-Fur Vaguemestre Cameiro da CCAÇ 2789 que esteve em Bula de 5 de Dezembro de 1970 a 29 de Setembro de 1972, natural de Rio Maior, penso que, infelizmente, já falecido. Um abraço a toda a caserna. Luís Moreira __________ Notas de CV: (*) Vd. poste de 12 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3876: Tabanca Grande (116): José F. Moreira, ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 2789/BCAÇ 2928 (Bula, 1970/72) Vd. último poste da série de 23 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3345: O cruzeiro das nossas vidas (12): Uíge, 5 de Fevereiro de 1969, destino Guiné (António Varela)

7 comentários:

Anónimo disse...

Muito me contas acerca do Carvalho Araújo, porque eu viajei nele no regresso da Guiné em Abril de 1970 e pensei que, por ter condições péssimas e navegar tombado ou inclinado, não faria mais viagem nenhuma, afinal ainda navegou até Dezembro. Um dia contarei essa minha viagem no âmbito da História da C. Caç. 2402, mas também não fica mal no âmbito da História da Carvalho Araújo. Um abraço,
Raul Albino.

Luígi disse...

Olá Luis, vieste inesperadamente recuperar fixeiros perdidos na RAM do meu cérebro.Também participei nesse filme (C.Caç.2797-Cufar).
Abraço.
Luis de Sousa

Anónimo disse...

Luis Moreira
Realmente o C Araújo foi um "paquete" histórico e estórico.Só aquele cheiro a nafta que parecia ligar-se à comida fez com que na minha viagem não provasse practicamente a carne!E aquela inclinação?? e os divertimentos??Era realmente um "Paquete de luxo"!!!

Depois de em Setembro deixar 2791,a 2789 a 2790 na Guiné,informaram-me que no regresso à Metrópole lhe tinha rebentado uma caldeira,acabando com a sua carreira.
Pelos vistos ainda teve tempo para mais umas estórias

Fico contente por haver no Blogue um homem da 2789 para alem do A.Matos da 2790 , que há já uns tempos não se pronuncia e que a meu ver faz falta,seja pelo estilo dos escritos,seja pelos temas mais ou menos polémicos que possa abordar,seja pelo contraditório que possa desenvolver

Um abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

Já em Maio de 70 quando regressei a Lisboa com a CART2412, no dito Carvalho Araújo, que navegava de lado,era o peso da idade, se dizia que era a sua derradeira viagem. Mas não, logo no mesmo mês e poucos dias depois,foi á Guiné levar a BART2917. Entre esta data e a do vosso regresso não sei o que andou a fazer. Era interessante que alguém contasse a sua história, desde o tempo em que transportava gado de e para os Açores, até á altura em que passou a transportar carne para canhão,(que me desculpe o meu/nosso camarada Canhão/Manuel). Mas a sua epopeia prolongou-se, segundo se consta, até pelo menos Setembro de 72, quando regressou a Lisboa com a CCAÇ2791. Alguém que se dedique a elaborar o percurso deste mítico "paquete" no transporte da dita carne ...p'ra canhão, seria interessante. cumprim/jteix veterano de guerra ex-Furriel Milº Art CART2412 68/70 Bigene-Guidage-Barro

Anónimo disse...

Sem querer confirmar ou desmentir, e sem poder afirmar, creio que a C.Caç. 2791 veio de avião no fim da comissão. Refiro isto, apenas porque a C.Caç. 2789 veio de avião em 29 de Setembro de 1972, e apenas por anologia suponho que o mesmo terá acontecido com todo o Batalhão. No blog e pelos escritos referidos, depois de chegar a Bissau em 04 de Dezembro de 1970, regressou a Lisboa carregado com militares. Saiu de novo para Bissau em 19 de Dezembro com chegada em 29 de dezembro de 1970. Luis Moreira

Anónimo disse...

Realmente a CCaç 2791 regressou à Metrópole em Setembro de 1972 a bordo do Boeing da FA.
Creio que foi a ou das primeiras Companhias a regressar de Avião.Recordo de a bebida ser transportada em cafeteira de aluminio e de ao chegar a Figo Maduro , antes de desembarcar entrarem no avião uns gajos com um pulverizador tipo"Sheltox"espargindo-nos com algo que devia ser "desinfestador"
dos "bifes sobrados das carnes de canhão" !!
Luis Faria

Anónimo disse...

Caro Luís Faria, caros camaradas.
A CART 2732 regressou à Metrópole no dia 19 de Março de 1972 em avião dos TAM e não foi seguramente a primeira a fazê-lo.

Com respeito à desinfecção feita à chegada ao aeroporto, Luís, não exageres, essas desinfecções são vulgares e necessárias, não para pulverizar as pessoas, mas para precaver que qualquer insecto tropical, por exemplo, "consiga imigrar clandestinamente".
Carlos Vinhal