Meus caros Luís, Carlos e Eduardo:
Também eu, um dia, fui soldado-letrista. Mas o resultado não foi brilhante. As suas repercussões não passaram muito para lá do meu umbigo!
Vai aqui a "estória".
Se nela acharem alguma piada para poder ser publicada, ficam ao vosso critério, que muito respeito, o modo e os possíveis cortes que porventura achem por bem fazer.
Um afetuoso abraço
Manuel Joaquim
MEMÓRIAS DE MANUEL JOAQUIM
10 - Tombe la pluie
Tenho uma “estória” sobre uma canção famosa de Adamo, a “Tombe la Neige”
Bissau, inícios de Setembro de 1965, Quartel de Sta. Luzia.
Tinha comprado, há pouco tempo, um rádio-gravador que, de imediato, se tornou um “companheiro” imprescindível. A primeira coisa que nele gravei foi o que me apareceu à mão, quatro canções de Adamo, de entre elas a “Tombe la neige” (Cai a neve), muito na berra naquela altura.
Numa noite chuvosa passada em serviço de “sargento de dia” na Casa da Guarda ao lado da Porta de Armas, ouvindo e reouvindo Adamo, achei piada à discrepância entre as palavras da canção “Tombe la neige” (Cai a neve) e a realidade do clima tropical quente e húmido que estava a suportar naquele momento. Ao som da chuva a cair logo surgiu um título alternativo, “Tombe la pluie” (Cai a chuva). E assim arranjei um belo motivo para me ajudar a passar a noite. Umas horas depois já tinha o rascunho de uma versão da letra, adaptada ao local onde vivia.
Tempos mais tarde pedi ajuda na messe de sargentos a um furriel que por ali via frequentemente a ler em francês e lá fizemos uma versão “definitiva” que depois tentei implantar nos momentos de convívio “cantoral” mas os resultados foram desanimadores. Só se percebiam uma ou duas vozes cantando a nova letra, o resto eram confusos “lalalás” da maioria. A maior parte do pessoal não sabia o suficiente de francês para apreender o texto e assim não se saía do básico “Tombe la pluie, lalalalala …lalalalala …”. Mesmo desmotivante.
Pensei, então, em arranjar uma versão em português mas o entusiasmo passou e o interesse foi-se diluindo na variedade de chamarizes existentes em Bissau para nos preencher os tempos livres. De vez em quando, na camarata, ao ouvir-se o original saído de algum aparelho, lá vinha um “tombe la pluie” ou um “e cai a chuva” sem continuação. E a chuva como tema da canção acabou por morrer.
Adamo foi substituído no gravador por outro(s) intérprete(s) e canções. A folha com esta nova versão em francês ficou perdida, dei por isso mais tarde, entre as folhas de um livro de Jorge Amado, “Mar Morto”, livro que emprestei ao furriel Henriques, camarada da CCaç 1419, aquando duma sua “viagem” de barco a Bedanda em serviço de segurança a um batelão de abastecimentos. Entretanto a estação das chuvas foi chegando ao fim, a CCaç 1419 saiu de Bissau para Bissorã e a letra de “Tombe la pluie” andou a “marinar” no “Mar Morto” que me foi devolvido já em Bissorã, exalando um forte e especial cheiro. É que o livro tinha viajado com o saco do bacalhau que a secção do Manuel Henriques levou para comer durante a viagem. As suas folhas ficaram de tal modo impregnadas que ficaram durante muitos meses a cheirar fortemente a bacalhau, de tal modo que o seu título ficou mesmo a condizer com o objecto, cheirava a “mar morto”.
Ao retomar o livro, encontrei dentro dele a folha com a “Tombe la pluie”, folha que tinha servido para o Henriques marcar a página de leitura. Foi guardada com uma leve esperança de ainda poder vir a ser utilizada na futura estação das chuvas para reavivar a canção com a malta de Bissorã. Qual quê! Tão quietinha ficou entre outros papéis que nunca mais me lembrei dela até uns largos anos mais tarde quando, ao procurar bases para a redacção de um texto sobre a guerra colonial para o semanário “O Jornal”, a encontrei.
Achei muita graça ao facto, até pelas memórias que me trazia. Ofereci tal “obra” à minha esposa, com um bom beijinho a condizer com os termos em que está redigida. E ela gostou muito! Até me sugeriu a compra do original “Tombe la neige” para lembrar melhor os passos da canção, coisa que eu fiz. E assim demos nova vida à “Tombe la pluie”. Ainda hoje, naqueles dias chatos de chuva, nos salta um “Tombe la pluie et mon coeur s’habille de noir”.
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 25 DE NOVEMBRO DE 2012 > Guiné 63/74 - P10722: Memórias de Manuel Joaquim (9): Na guerra, nunca dei um tiro!... (só dei um)
4 comentários:
Como foi possível desaparecerem do mapa os cançonetistas e músicos em francês, e mesmo em italiano e e até em espanhol, que eram e ficaram nas nossas cabeças para sempre?
Não é só o Manuel Joaquim que traz esta do Adamo, como outros já referiram muitos outros em francês, italiano e espanhol que não foram apagados, nem por Sinatra, nem Beetles, nem Elvis conseguiam apagar.
Será que esses artistas bons aos nossos ouvidos, acabaram quando acabou a nossa guerra e não foram substituídos?
Terá sido mera coincidência?
É que também se notou a falta de certo cinema francês e italiano e até espanhol, que não perdíamos.
Deve ter sido uma coincidência histórica o desaparecimento do último império colonial, com o fim dessa categoria de artistas.
Virou tudo para o americano.
Curioso que também coincidiu com a divulgação da SIDA.
Cumprimentos
Para o Manuel Joaquim
PARABENS por estes textos de revivalismo e de sensibilidade.
Para o António Rosinha
Não há dúvida, "tornou-se" TUDO americano (ou brasileiro...). Já quase ninguém usa o verbo "tornar-se". Tudo "vira". Mas há mais, muitas mais!
Um abraço para os dois.
Alberto Branquinho
Ó Manuel Joaquim.
Que pena não teres deixado ficar estes versos em Bissorã.
Se o tivesses feito, e deixado ao meu cuidado, ter-me-iam servido para fazer um figuraço, enviando-os, dedicando-os,l a alguém que, em França, muito os iria apreciar.
O meu próximo texto para o blog levantará o véu que este comentário possa sugerir.
armando pires
Olá Manel!
O mau tempo retirou algum brilho às protecções dos batelões do bacalhau, às condições das viagens, ao confrccionar das refeições, e outras eventuais memórias que possas ainda reter.
Mas acrescentaste o poema do tombe la neige, e já inspiraste ao Armando a interpretação ao ritmo lusitano do fado. Já sou todo ouvidos. Que tal reservarmos a estreia para o próximo encontro da Magnífica?
Abraços fraternos
JD
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