Reprodução de um precioso folheto da DGS - Direção Geral de Saúide, do ínício dos anos 70, guardado pelo nosso camarada António Tavares [ex-fur mil, CCS/BCAÇ 2912,Galomaro, 1970/72]...
Repare-se no averbamento, na capa, do nº do processo individual (155/4/72) do António Tavares, na subdelegação de saúde de Gondomar, nos Serviços de Higiene Rural e Defesa Anti-Sezonática (sic), criados em 1938...
Em março de 1972, o Tavares regressou da Guiné e em abril terá tido uma crise aguda de paludismo, o que o levou a consultar aqueles serviços de saúde (*). Vou mandar uma cópia para o Museu da Saúde do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, que são meus vizinhos e amigos.
Um outro pormenor interessante é a correspondência em língua francesa, a vermelho, das expressões "Defesa anti-sezonática" ("Servives antipaludiques", serviços antipalúdicos) e "Assistência aos Imigrantes" ("Vigilance antiparasitaire", vigilância antiparasitária). (LG).
Fotos ©: António Tavares (2014). Todos os direitos reservados [Edição: LG]
1. Regiões onde se produz arroz, em particular na bacia hidrográfica do Sado e do Tejo, como o vale do Sado (Alcácer do Sal), no Alentejo, ou o Vale do Sorraio (Corucbe), já no Ribatejo, sempre foram muito palúdicas, e como tal pouco propícias à fixação de populações. Daí o recurso à mão de obra escrava, africana, que se adaptava melhor melhor às águas estagnadas, à dureza das condições do trabalho nos campos de arroz, e que sobretudo resistia melhor às picadas da Anapholes e às temíveis sezões.
O que é feito destes africanos ? Misturaram-se na população, sendo o fenótipo africano ainda hoje visível nas populações sobretudo da Ribeira do Sado. Atente-se na letra de uma canção, do cancioneiro popular de Alcácer do Sal, que é também uma homenagem, inesperada, às... bajudas da Guiné que por cá ficaram na leva dos escravos...
(...) Ribeira do Sado,
Ó Sado, Sadeta.
Meus olhos não viram
Tanta gente preta.
Quem quiser ver moças
Da cor do carvão
Vá dar um passeio
Até São Romão. (..:)
Serve este preâmbulo para se falar do paludismo (ou , melhor, sezonismo) (*), endémico em Portugal, até tarde (para lá de meados do séc. XX) e fazer aqui uma homenagem à saúde pública e a um homem que foi o primeiro diretor da Escola Nacional de Saúde Pública (, morreu em 1994, mas não o cheguei a conhecer pessoalmente). E, além disso, diretor da OMS- África (1954-1964)... Quem já tinha ouvido falar dele ? É um português ilustre que merece ser aqui recordado, sobretudo pelo seu contributo para a erradicação da malária em Portugal e em África.
Meus olhos não viram
Tanta gente preta.
Quem quiser ver moças
Da cor do carvão
Vá dar um passeio
Até São Romão. (..:)
Serve este preâmbulo para se falar do paludismo (ou , melhor, sezonismo) (*), endémico em Portugal, até tarde (para lá de meados do séc. XX) e fazer aqui uma homenagem à saúde pública e a um homem que foi o primeiro diretor da Escola Nacional de Saúde Pública (, morreu em 1994, mas não o cheguei a conhecer pessoalmente). E, além disso, diretor da OMS- África (1954-1964)... Quem já tinha ouvido falar dele ? É um português ilustre que merece ser aqui recordado, sobretudo pelo seu contributo para a erradicação da malária em Portugal e em África.
2. O Instituto de Malariologia e o papel pioneiro do prof Francisco Cambournac (Sintra, Rio de Mouro, 26/12/1903 - Lisboa, 8/6/1994)
Eis um bre ve resumo do seu currículo profissional:
(i) Médico epidemiologista e tropicalista, Francisco José Carrasqueiro Cambournac (1903-1994) destacou-se sobretudo no campo da malariologia, área em que deu um grande contributo à medicina portuguesa e á saúde pública; formou-se em medicina em 1929;
(ii) foi membro-fundador e diretor do Instituto de Malariologia de Águas de Moura (1939-1954), sito do concelho de Palmela;
(iii) esteve nas colónias portugueses nos anos 40 em várias missões médicas; foi também director da OMS África (Organização Mundial da Saúde para a região africana), durante dez anos, entre 1954 e 1964;
(v) começou, em 1931, a sua carreira no campo da medicina tropical, em geral, e da mariologia, em particular, médico auxiliar da Estação Experimental de Combate ao Sezonismo de Benavente; posteriormente daria seguimento aos seus trabalhos na Estação Anti-sezonática de Alcácer do Sal;
(vi) Em 1933, como director do laboratório instalado na Estação de Benavente, Cambournac participou no Inquérito para determinação das zonas de endemia sezonática, suas características e estabelecimento de um plano de combate que a Direcção-Geral da Saúde (DGS) em colaboração com a Fundação Rockefeller realizou em todo o continente português;
(vii) e convidado a ingressar na Fundação como dirtor de campo de uma unidade de investigação sobre sezonismo que se previa criar em Portugal, tendo a partir de Março de 1934 iniciado os seus estudos na «Estação para o Estudo do Sezonismo», acabada de fundar pela Fundação Rockeller em Águas de Moura;
(ix) integra, ainda em 1937, a comissão responsável pela elaboração das bases para a nova Lei sobre a cultura do arroz, onde colaborou no estudo de todas as regiões orizícolas de Portugal numa perspectiva higiénico-sanitário e agrícola;
(x) presentou as bases para a organização dos Serviços Anti-Sezonáticos (posteriormente criados sob a direcção de Fausto Landeiro) e pronuncia-se sobre o diploma que regulava a cultura do arroz sob o aspecto higiénico-sanitário;
(xi) em 1938 representa Portugal no III Congresso de Medicina Tropical e Malária, que teve lugar em Amesterdão;
(xii) ainda em 1938, a Fundação Rockefeller (, a conhecida ONG norte-americana, criada em 193 pelo magnata do petróleo John Rockefeller), em colaboração com a DGS, constroi em Águas de Moura o Instituto de Malariologia, para substituição da Estação para o Estudo do Sezonismo; a nova institituição dedicada à investigação e ao ensino da malariologia, é dirigida por Roll Hill, tendo Cambournac como diretor adjunto;
(xiii) em dezembro de 1939, é nomeado diretor do Instituto de Malariologia, pela Fundação e por despacho do Ministro do Interior (que tutelava a área da saúde), alcançando assim um lugar de prestígio no âmbito da investigação e do ensino da malariologia.
(xiv) é no novo Instituto que se realizam numerosos estudos sobre a distribuição dos Anopheles (, os mosquitos vectores da malária, ) e da endemia sezonática em todo o país, bem como estudos sobre a epidemiologia da malária, os quais contribuíram para a erradicação da malária em Portugal;
(xv) é sobretudo a a partir do trabalho de Francisco Cambournac publicado em 1942, sobre a epidemiologia no sezonismo em Portugal, que se desenhou o plano da campanha anti-malárica que levou à erradicação da doença;
(xvi) o seu nome está igualmente ligado à erradicação do paludismo em Cabo Verde; (também, ia comn frequência à Guiné-Bissau, segundo o testemunho de Francisco George que com ele privou);
(xvii) ainda no campo das doenças infecciosas, Cambournac efectuou estudos sobre a epidemiologia da febre amarela, da oncocercose, da cólera, e de uma maneira geral das grandes endemias tropicais (de que é exemplo a criação e direção da Missão de Prospecção de Endemias em Angola, posteriormente transformada em Instituto de Investigação Médica);
(xix) nessa qualidade, prepara o primeiro relatório da OMS sobre o paludismo no continente africano (" Le Paludisme en Afrique Equatoriale") [, versão em inglês, disponível aqui];
(xx) em 1946, representa Portugal na Conferência Internacional de Saúde realizada em Nova Iorque pela Organização das Nações Unidas (ONU);(xxi) é o o primeiro português a participar numa reunião da ONU e tem um papel ativo na criação da OMS (1948);
(xxii) a partir de 1954, e durante 10 anos, exerceu o cargo de diretor regional da OMS para África;
(xxiii) em 1942, iniciou funções no Instituto de Medicina Tropical, como professor auxiliar da cadeira Higiene, Climatologia e Geografia Médica; passa a ser professor titular da cadeira em 1944;
(xxiv) em 1964, é nomeado director do Instituto de Medicina Tropical;
Francisco Cambournac (1903-1994) |
(...) Infelizmente, Francisco Cambournac não era muito conhecido em Portugal. Fenómeno quase incompreensível quando comparado com a notoriedade que outros colegas seus adquiriram na mesma época. Um dia, a título de justificação, sua Filha, Graça Cambournac, explicou-me que Salazar não gostava dele porque os princípios que guiaram a sua acção como Director em África eram distantes da política colonial do regime. Aliás, a segunda vez que Cambournac foi eleito para director regional da OMS (sublinho eleito pelos países africanos) recebeu os votos dos novos Estados que recentemente tinham conquistado a independência. (..,)
(...) "Uma outra altura, ao jantar, também em Bissau, Cambournac contou-me que a seguir à II Grande Guerra, logo depois da Organização Mundial da Saúde ter sido criada em 1948, foi incumbido de preparar um relatório para propor uma capital Africana para acolher a instalação da sede regional da OMS. Descrevia com detalhe e com visível orgulho esta sua missão. No final das visitas efectuadas, apontou Brazzaville, no antigo Congo Francês, porque concluiu que era a cidade com padrão de vida mais humanista onde não existiam sinais chocantes de apartheid, ao contrário, por exemplo, de outras grandes cidades anglófonas como Nairobi. O seu relatório foi decisivo na opção de Brazzaville. A Sede foi, então, instalada no alto de uma colina nos arredores da cidade, no Haut de Joué. As antigas casas que tinham sido projectadas para residência dos engenheiros da barragem que ali os franceses construíram, foram adequadamente adaptadas e aproveitadas. Ainda bem que assim aconteceu, não só pelas boas infra-estruturas, mas, sobretudo, pela vista panorâmica deslumbrante sobre os rápidos do imenso rio Congo".(...)
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Nota do editor:
(*) Vd. I Parte do psote > 27 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 . P13804: A propósito de paludismo... Ou melhor, do sezonismo, que era o termo que tradicionalmente se usava entre nós, na metrópole, até finais dos anos 60 (Parte I) (Luís Graça)
Vd. também Mónica Saavedra, « Malária, mosquitos e ruralidade no Portugal do século XX », Etnográfica [Online], vol. 17 (1) | 2013, posto online no dia 13 Março 2013, consultado no dia 27 Outubro 2014. URL : http://etnografica.revues.org/2545 ; DOI : 10.4000/etnografica.2545
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Nota do editor:
(*) Vd. I Parte do psote > 27 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 . P13804: A propósito de paludismo... Ou melhor, do sezonismo, que era o termo que tradicionalmente se usava entre nós, na metrópole, até finais dos anos 60 (Parte I) (Luís Graça)
Vd. também Mónica Saavedra, « Malária, mosquitos e ruralidade no Portugal do século XX », Etnográfica [Online], vol. 17 (1) | 2013, posto online no dia 13 Março 2013, consultado no dia 27 Outubro 2014. URL : http://etnografica.revues.org/2545 ; DOI : 10.4000/etnografica.2545
(...) Este artigo é parte de uma tese de doutoramento (Saavedra 2010).
(...) O termo “sezões” era, até ao desaparecimento da malária em Portugal, na segunda metade do século XX, a designação popular para esta doença.
(...) A designação “antissezonáticos”, oficialmente atribuída aos serviços dedicados ao tratamento e controlo da malária, resultou da palavra “sezonismo”, adotada por Ricardo Jorge, cerca de 1903, como a melhor para nomear a malária (IGSS 1903) (...)
5 comentários:
Dois grandes amigos da Guiné-Bissau, Francisco Cambournac e Francisco George... Infelizmente não cheguei a conhecer o primeiro... Mss é justo que se faça referência a ele, neste blogue dos camaradas e amigos da Guiné...
Eu também apanhei o paludismo cá na Metropole, e também fui a essa clinica e tenho também esse cartão, aliás vários cartões pegados entre si, como as cartas de condução antigas.
Pois sim senhor, as sezões era realmente a forma como eram conhecidas as 'febres' que as pessoas contraíam principalmente nos arrozais.
Refere-se Alcácer, e também Coruche, onde ainda hoje esse tipo de cultura se faz (ou fazia, já não sei) mas tenho ideia que também há ou havia arrozais no vale do Mondego...
O Luís foi directo ao assunto mas deixou a pontinha do véu sobre como se terá dado a 'absorção' dos 'pretinhos da Guiné' na sociedade portuguesa...
Outro aspecto interessante é que, pelo menos nessa época, havia uma experiência acumulada e um 'saber' que poucos podiam igualar, em termos de lidar com as chamadas doenças tropicais. Quem sabe se tivéssemos sabido continuar não estaríamos hoje já com a solução testada e afinada para o famoso ébola...
Quanto ao Instituto da Rua da Escola Araújo, ali à Estefânea, naturalmente também fui cliente e lá foi feita a despistagem relativamente ao paludismo e aos parasitas intestinais. Bom trabalho.
Abraço
Hélder S.
Posteriormente foi criado o Instituto de Higiene e Medicina Tropical ao lado do H.Egas Moniz /antigo H. do Ultramar.
Foi e ainda é uma referência mundial.
Existiam várias delegações por todo o País.
A designação popular era não só de "sezões"mas ainda de "maleitas" e febres "terçãs ou quartãs", consoante a febre aparecia de 3 em 3 dias ou de 4 em 4, devido ao ciclo reprodutor.
O paludismo pode dar recaídas até 60 anos após se sair de zona endémica se se for infectado pelo plasmodium malarie.
A razão reside em que fica alojado no fígado (esporozóitos), e em qualquer altura pode sair para a circulação sanguínea, daí as recaídas.
Durante o tempo colonial o paludismo foi erradicado não só em Caboverde mas também em S. Tomé e Príncipe..hoje novamente uma zona endémica e com o p. falciparum (o mais grave) em força.
Este f.p. é resistente a quase todos os antipalúdicos.
O Dr. Francisco Cambournac foi um dos grandes vultos da medicina portuguesa na área da medicina tropical e reconhecido também internacionalmente.
Quase ninguém conhece!!..pois é típico da forma de ser "tuga"..os media é mais "telenovelas" e C.Ronaldo que aliás eu gosto de ver jogar, diga-se.
C.Martins
Obrigado, C.Martins...
Porque o saber, e nomeadamente o saber nos campo da saúde, das ciências da saúde e da nossa história, não ocupa (ou não deve ocupar) lugar, aqui vão mais umas linhas sobre a "escola de medicina tropical", criada em 1902, e de que o Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) é herdeiro ...
(i) a Escola de Medicina Tropical foi criado a 24/4/1902, por carta de lei do rei D. Carlos;
(ii) desde 1887, o ensino da medicina tropical era feito na Escola Naval, destinando-se sobretudo aos médicos do Ministério da Marinha e das Colónias;
(iii) o objetivo da nova escola era ministrar o ensino e melhorar o conhecimento científico e técnico dos problemas relacionados com as doenças tropicais, em geral, e com a saúde pública nas nossas colónias, em particular;
(iv) em 1935, a Escola passa a chamar-se Instituto de Medicina Tropical (IMT);
(v) em 1958, é inaugurada a sua nova sede, o moderno edifício construído de raíz, junto ao Hospital do Ultramar (hoje Hospital Egas Moniz);
(vi) o hospital do ultramar (originalmente hospital colonial) era especializado em doenças tropicais, servindo de apoio ao IMT;
(vii) em 1966, é criada a Escola Nacional de Saúde Pública e de Medicina Tropical (ENSPMT), integrando o IMT (Decreto-Lei n.º 47 102 de 16 de julho de 1966);
(viii) em 1972, já no consulado de Marcelo Caetano, a ENSPMT é dividida em duas instituições: a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), e o Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT) (Decreto-Lei n.º 372/72 de 2 de outubro);
(ix) O IHMT manteve-se na dependência do Ministério do Ultramar até à extinção deste;
(x) Em 1980, o IHMT é integrado na Universidade NOVA de Lisboa (UNL);
(xi) Por sua vez, a ENSP ficou sob a tutela do Minist+erio da Saúde, até passar para a educação, sendo integrada em 1994 na UNL.
(xi) A ENSP e o IHMT são, pois, duas das nove unidades orgânicas (faculdades) da NOVA.
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