1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Outubro de 2015:
Queridos amigos,
António Carreira é indiscutivelmente o primeiro obreiro
nas investigações acerca do tráfico de escravos nos rios da Guiné, tendo-as
confrontado com o seu impacto no arquipélago de Cabo Verde. Este estudo
privilegia o período crítico da abolição da escravatura, decidida pelas
grandes potências que estavam a postos para entrar em África. Carreira
remonta a sua análise a séculos anteriores e mostra como a nossa presença
era tão débil que os negreiros estrangeiros por ali circulavam impunemente.
E abolida a escravatura, as autoridades de Londres matraqueavam
constantemente Lisboa para que fizesse algo que impedisse o tráfico ilícito.
Ficamos igualmente a conhecer quem eram os grandes traficantes instalados na
Guiné, antes e após a abolição da escravatura. Estes escravos foram
predominantemente para o Brasil (Maranhão e Pará) e para as Antilhas,
preferencialmente para Cuba.
Um abraço do
Mário
O tráfico de escravos nos rios de Guiné e ilhas de Cabo Verde
(1810-1850)
Beja Santos
Em 1981, a Junta de Investigações Científicas do Ultramar dava à estampa um ensaio a que o seu autor, António Carreira, denominou “subsídios para o seu estudo” do tráfico de escravos, no momentoso período da abolição da escravatura e do controlo praticado pelas autoridades britânicas.
Carreira tinha à sua disposição uma matéria-prima indiscutível, os livros alfandegários. Porque os navios que se dirigissem àquelas paragens, quer dos contratadores, quer dos traficantes, teriam obrigatoriamente de registar a entrada na Alfândega da Ribeira Grande, de Santiago, e aí receber o língua (intérprete) para então rumar aos rios. E completada a carregação do navio, este era obrigado a voltar à Ribeira Grande a fim de fazer o despacho, pagar os direitos e então seguir para os portos de destino. Nas praças da Guiné fazia-se o controlo da saída de escravos, era deste modo que se assegurava os recursos financeiros derivados da ocupação das ilhas de Cabo Verde, procedimento que não agradava às autoridades dos rios, e muito menos aos traficantes. A Coroa tinha plena consciência do papel da Ilha de Santiago no apoio ao comércio dos rios e à navegação de longo curso para o Brasil.
Após a Restauração, surgiu a ideia de autorizar o despacho dos navios nos portos de carregamento em vez de irem fazê-lo a Cabo Verde. Há um despacho do Concelho Ultramarino que nos permite saber que “antes da aclamação de El-Rei D. João IV saíam todos os anos de Cacheu para as Índias de Castela 2 ou 3 mil escravos e agora não chegavam 600”. E assim se legalizou a saída direta dos rios da Guiné para o Brasil dos navios de escravos. Aumentou o tráfico clandestino, era impossível a quem estava em Cacheu, Ziguinchor e Bissau inspecionar tão vastíssimas águas. Em litígio com Espanha, o monarca português pretendia dificultar ao máximo o fornecimento de escravos às Índias de Castela, fazendo desviar a corrente do tráfico para o mercado do Brasil. Mas não foram medidas as consequências de que tal medida vibrava um duríssimo golpe a toda a economia de Cabo Verde. Entretanto, a Coroa pretendeu dar alguma autoridade à Praça de Cacheu: criaram-se cargos de Provedor da Fazenda Real, de Feitor e de Escrivão; passou a exigir-se a rigorosa escrituração dos direitos cobrados e, ainda, que “os navios que saírem de Cacheu, em direção ao Brasil serão obrigados a apresentar certidão do número de escravos despachados naquela praça”. Logo a seguir, outra lei procurou corrigir ou atenuar os efeitos da anterior, isentando pessoas que da Guiné embarcassem escravos para Cabo Verde a pagar direitos. Como observa Carreira, a medida foi habilmente aproveitada pelos traficantes sediados em Cabo Verde que passaram a comprar escravos nos rios, traziam-nos para o arquipélago e depois exportavam-nos para as Antilhas e o Brasil. No final do século XVII, deu-se ordem à Companhia de Cacheu e Cabo Verde a construir a fortaleza de Bissau.
Voltando à questão das taxas de direitos a incidir sobre escravos, os regimentos e provisões mostravam-se formalmente rigorosos: a proibição de qualquer tipo de comércio com estrangeiros; a perseguição dos tangomaos nos rios da Guiné; a fiscalização rigorosa de todos os escravos e marfim antes dos navios partirem.
É nestas consultas que Carreira consegue apurar números sobre os escravos. No período de 1756 a 1777 em que o setor dos rios de Guiné e Cabo Verde esteve sob a administração direta da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão esta empresa exportou mais de 20 mil escravos para o Maranhão, para o Pará e para Cabo Verde. Carreira adianta que os números compulsados andarão longe da realidade, terão saído mais escravos do que os registados.
Em fins do século XVIII, o governo criou a Sociedade do Comércio Exclusivo das Ilhas de Cabo Verde e Rios da Guiné, era a sucessora da Companhia do Grão-Pará. Pouco se conhece da sua atividade. Conhecem-se os direitos de saída exatamente no momento em que se prepara a abolição da escravatura. A tabela pela entrada estipulava o seguinte: escravo lotado, 1800 réis; mascavado, 1200 réis; mulecos, 900 réis, mulecos fêmeas, 800 réis; mulecos mascavados, 400 réis.
A economia cabo-verdiana afundava-se, e a agravar o estado geral da crise sobreveio a grande fome em 1772-1774 que vitimou cerca de 22 600 pessoas numa população de 70 000. A economia das ilhas apoiava-se no apanho da urzela e da tecelagem de panos da terra. A urzela dora desde sempre o produto-base de exportação para a Europa, onde se aplicava na tinturaria de tecidos finos. Mas a economia portuguesa não podia absorver tanta urzela e a coroa declarou-se incapaz de acudir à crise de negócios nas ilhas e deu o monopólio a um negociante, o Sargento-Mor Manuel António Martins, monopólio que durou 19 anos. Outros acontecimentos políticos, na aurora do liberalismo, avassalaram Cabo Verde. As autoridades de Lisboa deportaram sob a acusação de miguelista o Batalhão de Infantaria n.º 21, afeto a D. Miguel, que o vulgo alcunhou de “Batalhão Caipira”, iniciava-se um período de tumultos, que acabou com fuzilamentos.
Os rios da Guiné, o comércio geral decaía, a navegação estrangeira por ali andava impune. E nos rios da Guiné estalaram os conflitos étnicos que se irão prolongar até aos últimos anos do século XIX, o principal acontecimento foi a derrota dos Mandingas face aos Fulas. É um período que possibilitou a proeminência de algumas famílias abastadas como Carvalho de Alvarenga e João Marques de Barros. Carreira apresenta uma folgada lista de reinóis (naturais do reino) e cabo-verdianos, e dá-nos conta das atividades de duas importantes figuras: o Coronel Joaquim António de Matos, reinol, e Caetano José Nosolini, cabo-verdiano.
Após o Congresso de Viena, a proibição da escravatura entrou na ordem do dia, mas foram décadas em que o tráfico prosseguiu, inclusive os navios espanhóis apoiados em Cabo Verde navegavam com a bandeira portuguesa. Teve expressão o apresamento, Carreira dá os números, são impressionantes. As exigências diplomáticas de Londres eram muito fortes, é o caso da carta que em Maio de 1835 o embaixador inglês Howard de Walden comunicou ao ministro português o apresamento de uma escuna transportando a bordo 164 escravos pertencentes ao governador de Bissau. Num relatório do diretor de Alfândega de Bissau, datado de 22 de Dezembro de 1857 e dirigido ao Visconde de Sá da Bandeira, afirma-se que em 1842 se cessou a exportação de escravos de Bissau e Cacheu. Não terá sido assim, pois em 1849 há uma nova carta britânica emanada do ministério dos Negócios Estrangeiros referindo que continua a ter lugar a presença de navios negreiros. E Carreira termina dizendo que embora esta questão não tenha sido posta num tom altamente admoestador, tudo indica que tinha havido um recrudescimento do tráfico ilícito nos rios da Guiné.
E quando o tráfico desapareceu completamente, havia que descobrir outras potencialidades para o desenvolvimento económico. É nesta altura que se olha a sério para a Guiné como forte fornecedor de alguns produtos agrícolas.
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Nota do editor
Último poste da série de 6 de Janeiro de 2017 > Guiné 61/74 - P16924: Notas de leitura (917): A Libertação da Guiné, de Basil Davidson, Penguin Books, 1969 (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
"Conhecem-se os direitos de saída exatamente no momento em que se prepara a abolição da escravatura. A tabela pela entrada estipulava o seguinte: escravo lotado, 1800 réis; mascavado, 1200 réis; mulecos, 900 réis, mulecos fêmeas, 800 réis; mulecos mascavados, 400 réis."
Mário, obrigado por esta recensão. O tema do esclavagismo é uma parte da nossa história (portuguesa e europeia) que conhecemos mal e com que lidamos mal (por "má consciência civilizacional")...
Já agora, era importante termos alguns valores de referência para poder avaliar o valor dos "direitos alfandegários" (!) cobrados por cada escravo em finais do séc. XVIII:
1800 réis, por escravo "lotado" (leia-se, adulto, robusto, de boa saúde, ou se quisermos de 1ª categoria);
1200 réis, por escravo "mascavado" (leia-se;: com defeito, ou seja "refugo");
900 ou 800 por crianças ("mulecos"), conforme o sexo... Metade do valor, se fossem "mascavados"...
É uma "linguagem" (e uma realidade) que hoje nos choca... Mas será que o sistema económico global mudou muito ? Quanto a hora de trabalho de um criança numa fábrica de têxtil no Bangladesh ?
Aproveito para recordar, aqui, que foi inaugurado, em 8 de junho do ano passado, o Memorial de Escravatura e Trafico Negreiro de Cacheu, projeto a que se dedicou de alma e coração o nosso querido e saudoso amigo Pepito (1949-2014), e teve o apoio, entre outros, da União Europeia e da Fundação Mário Soares.
http://cacheu.adbissau.org/
"A economia cabo-verdiana afundava-se, e a agravar o estado geral da crise sobreveio a grande fome em 1772-1774 que vitimou cerca de 22 600 pessoas numa população de 70 000."...
Estamos a falar de 1/3 da população, bolas!
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