1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2020:
Queridos amigos,
As efemérides em torno de figuras consagradas devem merecer uma organização que permita desvelar olhares renovados sobre o pensamento e ação do dito consagrado. Este fórum Amílcar Cabral que teve lugar na cidade da Praia em 2013 tem muita parra e pouca uva, muito salamaleque e pouca visão repercutente de como o pensamento de Cabral continua a ser atual em África. Do desapontamento de tanta comunicação deslavada, com o mais do mesmo, chama a atenção a capacidade reflexiva de Carlos Lopes, a investigação cuidada do historiador Julião Soares Sousa, o mais influente biógrafo de Cabral, que desvela o realismo e a profundidade da visão do líder do PAIGC que jamais ignorou que conduzia uma luta em que não podia dar muitos exemplos edificantes do sucesso da era pós-colonial, o PAIGC alargava-se enquanto novas nações viviam atormentadas por elites cúpidas e corruptas, prometendo unidades e desunindo-se rapidamente, o historiador, bem documentado, olha para a África de hoje e pondera que o pensamento de Cabral, hoje, tem a mesma frescura que há mais de cinquenta anos atrás, lamentavelmente.
Um abraço do
Mário
Cabral, o pensamento revolucionário no mundo contemporâneo (1)
Mário Beja Santos
Por Cabral, Sempre, comunicações e discursos apresentados no Fórum Internacional Amílcar Cabral, em janeiro de 2013, na Praia, com organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016, tinha como tema central a leitura do pensamento de Amílcar Cabral à luz da contemporaneidade. Para além da sessão inaugural, das mensagens, dos discursos e dos anexos, ao longo de mais de quinhentas páginas discorre um bom punhado de oradores, lê-se tudo do princípio ao fim à busca de tratamentos inovadores, olhares refrescados sobre o líder político ainda hoje considerado como figura de pódio do pensamento revolucionário, há um travo amargo de muita parra e pouca uva, muito incenso e pouca convicção, bastante retórica e palavreado fácil, mais escória do que metal sonante. No entanto, impõem-se três nomes com comunicações que apraz registar e fazer a síntese da essência do que ficou registado: Carlos Lopes, Julião Soares Sousa e Miguel de Barros com Redy Wilson Lima.
Carlos Lopes ventilou o temário “Amílcar Cabral como promotor da ideia pan-africana”. Foi aos primórdios da ideologia pan-africanista e como esta afetou os jovens africanos oriundos das colónias portuguesas. Equiparando a pujança intelectual de Cabral com a de Frantz Fanon, escalpeliza três conceitos dominantes no seu pensamento: a definição de unidade, a falta de ideologia em África e o combate pelo lugar na História. Muito cedo os novos estados emergentes do pós-colonial, com a boca cheia de promessas de unidade, desentenderam-se e fragmentaram-se. Cabral justificava a unidade Guiné – Cabo Verde em congruência com o pan-africanismo, não ignorando a corrente refratária em Cabo Verde de um sentimento de hostilidade na Guiné, por razões históricas, em relação a Cabo Verde. Assumiu a unidade como um compromisso com o pan-africanismo, não iludindo que precisava de promover uma defesa anticolonial contabilizando aquilo que ele chamava a história em comum. Serviu-se da cultura como elemento primordial que daria no decurso da luta armada a identidade da nova nação. Pouco dado a ilusões, nunca deixou de supor que a sua luta triunfasse mas não se mentia com os tremendos riscos postos, alcançada a independência. Como observa Carlos Lopes no termo da sua comunicação:
“Desde cedo, Cabral e Mário de Andrade, alertados pelas derivas totalitárias de Sékou Touré, Nkrumah e Kenyatta, se preocuparam com a utilização identitária como forma de construção de uma ideologia travesti do pan-africanismo. Para proteger os movimentos a que estavam associados tais perigos, multiplicaram os apelos à democracia popular e direta. Esta revelou-se, porém, ser uma muito débil resposta a tendências que se revelaram fortíssimas.
A famosa chamada de atenção de Cabral para o suicídio da pequena burguesia deve ser entendida como um eufemismo para confessar a impossibilidade de conter as derivas dos movimentos nacionalistas, ou o seu aproveitamento para fins menos nobres. Na realidade, trata-se de uma confissão indireta de que o processo histórico, expressão tão usada nos anos 60, tomaria o seu rumo. Para mal do pan-africanismo e do próprio projeto nacional”.
Mais adiante, Julião Soares Sousa discreteou sobre “Os desafios da construção do Estado em África: uma releitura do pensamento de Amílcar Cabral na perspetiva da contemporaneidade". O historiador propôs-se analisar os desafios atuais da construção do Estado em África mediante uma releitura contemporânea do pensamento de Cabral. Cabral advogava uma proposta de rutura radical com a herança político-administrativa colonial, era imperativo barrar o caminho de qualquer modalidade de neocolonialismo ou criar elites negras prontas a repetir as mesmas táticas dos colonos. Daí ter sempre tratado a luta de libertação como um ato de cultura, a necessidade de o novo Estado se pautar pela autonomização económica e daí a sua permanente advertência para o desenvolvimento da agricultura, dizia repetidamente que era imprescindível a descentralização dos ministérios e que esta devia ser implementada de acordo com as necessidades das massas camponesas. Cabral também foi premonitório sobre os perigos da elite política se concentrar em Bissau, seria um íman para atrair e empolar o centro urbano em detrimento do desenvolvimento dos campos. Realista, punha em destaque os objetivos sociais e as necessidades básicas da população, atormentando assim os ideólogos de pacotilha quando asseverou: “Lembrar-se sempre de que o povo não luta por ideias, por coisas que estão na cabeça dos homens. O povo luta e aceita os sacrifícios exigidos pela luta, mas para obter vantagens materiais para poder viver em paz e melhor, para ver a sua vida progredir e para garantir o futuro dos seus filhos”. A luta armada foi crescendo enquanto África continuava à espera de uma verdadeira revolução, Cabral tinha consciência dos problemas da Nigéria, mesmo tendo sido contrário à secessão do Biafra, tinha plena consciência das diferenças gritantes entre os detentores dos cargos públicos e o povo, era profundamente crítico das novas cliques políticas que rapidamente se enriqueciam e pavoneavam com carros luxuosos, indiferente a um povo pobre e desgraçado. Igualmente se mostrava apreensivo com a má gestão dos dinheiros públicos, do mesmo modo como tecia considerações para os golpes de Estado que assolaram África entre 1965 e 1966, um caráter golpista que se prendia com o tribalismo, a ganância do poder e a tentação neocolonial. Como observa o historiador Julião Soares Sousa, foi um processo eivado de contradições em que se tentou forjar o desenvolvimento do sentimento nacional perseguindo chefes tradicionais, ficcionando tentativas de golpes de Estado, gerando estados de terror entre as populações, afastando-as de todo e qualquer sentimento revolucionário. Não era por acaso que Cabral insistia na questão da pequena burguesia e de que lado ela iria estar, ou na contrarrevolução. O historiador aborda o contexto de uma rutura epistemológica essencial dada pela crise do socialismo e pela chegada em pleno do liberalismo económico a África que acarretou novos quadros de instabilidade e a anomia do Estado. Como ele escreve, “Em África muitos Estados, nomeadamente os frágeis, não têm conseguido cumprir com alguns critérios básicos devido às fracas ou nulas infraestruturas do poder, que nem sempre penetram toda a sociedade, associadas a outras importantes dimensões internas (fraco controlo sobre o território e sobre a população e ausência de estudos e de estatísticas) e externas (excessiva dependência do exterior)”.
Em jeito de epílogo, Julião Soares Sousa pondera a pouca eficiência dos Estados, o modelo de boa governação, regressando ao pensamento de Cabral e foca diretamente o que se tem passado na Guiné: “Como a classe política tem tentado encobrir, ao longo do tempo, a sua grande responsabilidade, criando a ilusão de que de facto os reais problemas residem nas Forças Armadas. A elite política tem-se aproveitado da situação de instabilidade por ela criada para acumular riqueza proveniente das ajudas internacionais, proventos ilícitos e até submergir o Estado em negócios obscuros ou transformando-o numa autêntica máfia (…) Cabral afirmava que deveriam ser os melhores filhos a assumir a liderança do processo de reconstrução nacional na era pós-colonial. Isto é, todos aqueles que, pela sua conduta moral e política, entregassem todo o esforço, sacrifício e capacidade ao serviço do povo (…) Na sua perspetiva, o dirigente deveria ser ‘o intérprete fiel da vontade e das aspirações da maioria revolucionária e não dono do poder, o senhor absoluto que se serve do Partido e não serve o Partido. Caberia ao Partido [entenda-se Estado] expressar a vontade popular no âmbito da democracia revolucionária, isto é, as aspirações do povo livremente expressas’.”
E de seguida, iremos dar a palavra a um curiosíssimo trabalho sobre o pan-africanismo de Cabral na música de intervenção juvenil na Guiné-Bissau e em Cabo Verde.
(continua)
Carlos Lopes
Julião Soares Sousa
____________Nota do editor
Último poste da série de 18 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23794: Notas de leitura (1519): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (4) (Mário Beja Santos)
1 comentário:
Nenhum caboverdeano, nem nenhum guineense, que fosse seguidor das ideias de Amílcar Cabral, nos consegue explicar que tipo de Estado seria a Unidade Guiné-Caboverde, que Cabral preconizava.
Como diz Beja Santos, é sempre muita parra, pouca uva.
Seriam dois Estados e um partido único? tipo União Europeia?
Seria um Estado único e um Partido Único? tipo União Soviética?
É que o congresso do PAIGC que ia consagrar essa Unidade Guiné-Caboverde não se realizou porque uma ou duas semanas antes o Nino Vieira estragou tudo no 14 de Novembro de 1980.
O que deu a sensação nesse dia, pela reação de caboverdeanos e guineenses, ao golpe de Nino, é que tiraram um grande peso da consciência de Amílcar Cabral.
Não é preciso explicar o que ninguém compreenderia.
Só Portugal poderia fazer tal Unidade, como fez com Angola e Cabinda por exemplo.
E que já no tempo do Honório Barreto estava a Unidade quase concluída.
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