quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23808: Historiografia da presença portuguesa em África (344): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Março de 2022:

Queridos amigos,
A história deste avião desaparecido tem foros de tragicomédia, o palco principal foi o chão Felupe, tudo começou com um avião desaparecido, as autoridades senegalesas consideraram que se despenhou no mar devido a um tornado, a viúva moveu o céu e a terra para haver inquérito in loco, temos três peças fundamentais para analisar o assunto. Primeiro, o que escreve René Pélissier na sua História da Guiné, 1841-1936, volume II, Editorial Estampa, 1997, houvera rebelião Felupe no início da década de 1930, aparentemente contida, refere os aspectos caricatos e mitológicos do canibalismo Felupe, entramos depois no desaparecimento de 30 de junho de 1933 que vai levar a interrogatórios duríssimos à palmatória, os inquiridos disseram tudo o que o inquiridor pretendia, nasceu a confusão de que o avião teria caído em chão Felupe na Guiné portuguesa, nada se comprovou, certo e seguro foi o registo de declarações contraditórias e por vezes delirantes; segundo, a documentação elaborada pelo capitão Jorge Vellez Caroço em que se encontra nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa, o oficial também desmonta as inverdades e aproveita a oportunidade para criticar abertamente a intrusão missionária francesa e responsabilizar os missionários portugueses de não estarem cabalmente a cumprir o seu múnus. Iremos ver seguidamente o que já aqui se escreveu sobre o relatório do BNU da Guiné, em 1933, não se possui mais documentação sobre este caso.

Um abraço do
Mário



L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (2)

Mário Beja Santos

Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia aparecem dois relatórios com a assinatura do Capitão Jorge Frederico Torres Velez Caroço, Diretor dos Serviços e Negócios Indígenas, em que apresenta ao Governador Carvalho Viegas o resultado das pesquisas desenvolvidas por uma comissão de inquérito que envolveu autoridades francesas e portuguesas para apurar se um desaparecido avião francês tinha aterrado em solo colonial português, houvera denúncias que testemunharam que tal tinha acontecido. São documentos de leitura obrigatória e contribuem, a seu modo, para introduzir uma nova abordagem ao extenso comentário do historiador René Pélissier no seu trabalho "História da Guiné, portugueses e africanos na Senegâmbia 1841-1936", Editorial Estampa, 1997; acontece igualmente que o assunto aparece tratado também no ano do desaparecimento do avião (1933), num relatório enviado pela delegação do BNU na Guiné para a sede em Lisboa, e que consta do meu livro "Os Cronistas desconhecidos do canal de Geba, o BNU da Guiné", Húmus, 2019.

Fez-se referência no texto anterior a um conjunto de diligências associadas ao desaparecimento de um avião francês, o relatório oficial de Dacar dava-o como desaparecido no mar, por efeito de um tornado, a mulher do aviador não estava conformada, apelou às autoridades francesas, seguiu-se um conjunto de diligências, não conduziram a coisa nenhuma.

Vejamos agora o relatório dos Serviços de Negócios Indígenas, referente ao ano de 1934, assinado pelo Capitão Velez Caroço, este tivera grave contencioso com o governador, houve mesmo apreciação em Lisboa do seu comportamento, processo arquivado, daí poder entender-se o cuidado da sua escrita sobre o Caso Gaté. Observa que toda a sua ação dentro da colónia foi a de conseguir o regresso dos indígenas refugiados em território francês e procurar a pacificação da região com a cooperação das autoridades de Ziguinchor. Tinha acompanhado o jornalista Didier Poulain na sua visita à região dos Felupes e, igualmente, enquanto membro da Comissão Internacional sobre o Affaire Gaté procurara desempenhar da melhor maneira a sua missão tanto em território nacional como em território francês. E dirige-se ao governador do seguinte modo:
“Brevemente serei afastado desta Direção de Serviços. Apenas terei de dizer a V. Exª que deixo com eles a saudade de não poder levar ao fim dos problemas, que era meu desejo concluir, saindo com a consciência tranquila de que trabalhei quanto pude o mais e melhor que sei”. A data deste relatório é de 30 de março de 1935, Bolama.

Convirá ter-se em atenção, neste acervo que está nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia a outros documentos, logo o aditamento que o dito Capitão Jorge Velez Caroço fez ao relatório sobre a visita à região dos Felupes do jornalista Didier Poulain, a data é de novembro de 1934:
“Na visita ao Administrador Superior do Casamansa, Mr. Chartier, foi-me revelado que o órgão parisiense Le Journal, largamente subsidiado por Madame Gaté vinha proceder a investigações sobre a queda do avião tripulado pelo marido e para tal incumbira o jornalista e aviador Didier Poulain. Depois da sua estada na região, o referido jornalista tinha a convicção de que o aeroplano caíra na região dos Felupes. O jornalista do Le Matin chegara a conclusões totalmente opostas. O guia de Didier Poulain, de nome Mussá, apenas pôde informar ter visto um avião sobre Carabar, não garantia a data em que o avião fora visto, tendo, no entanto, apurado que as horas a que foi visto esse avião não condiziam com as do voo do avião de Gaté, o avião teria sido visto a uma hora em que o aviador Gaté nem sequer tinha ainda levantado voo. Este Didier Poulain prestou informações falsas a Madame Gaté. O administrador do Casamansa informou o seu governo que o avião de Gaté não podia ter caído na nossa Guiné, mas sim nos mares, e possivelmente bem perto do ponto de partida. Vários aviadores se tinham pronunciado que nem as condições atmosféricas nem a quantidade de gasolina que continha o depósito do avião de Gaté lhe permitiam o voo tão longo, não podendo atingir a Guiné Portuguesa. O jornalista Didier Poulain visitou Jufunco e toda a região dos Felupes e se não viu mais foi porque não quis ver”.

Igualmente há que ter em conta o relatório sobre a visita à região dos Felupes de Didier Poulain, feito igualmente pelo Capitão Jorge Velez Caroço, datado de outubro de 1934. A missão era a de acompanhar o jornalista na sua visita a Jufunco, procurando indagar dos fins com que essa visita se fazia e características especiais que a definiam.

“Didier Poulain era capitão aviador e combateu na Grande Guerra. Encontra-se presentemente ao serviço do Affaire Gaté. Diz-se interessado nos usos e custos indígenas. O Capitão Rouxel voara anteriormente sobre território português sem respeito pelas condições que haviam sido estabelecidas pelo governo da colónia. O Capitão Rouxel agira incorretamente. Madame Gaté fora acompanhada na sua visita à região Felupe por Mr. Figuier, um comerciante que afirmara ao signatário que pouca importância mereciam as informações de Madame Gaté. Cheguei à conclusão de que o avião Gaté não aterrou na Guiné Portuguesa. A receção dos Felupes aos visitantes franceses foi muito cordial. O guia de Madame Gaté fora habilidoso a pôr todos os indígenas a dizer que sim a todas as perguntas de Madame Gaté. Apareceu extemporaneamente um pedaço de tela de avião conforme mostrou o Sargento Chambon, que acompanhara Madame Gaté.
As próprias autoridades francesas tinham concluído não haver provas da queda do avião Gaté. Didier Poulain criticava o facto de o governo francês ter consentido sempre que Madame Gaté procedesse a investigações particulares. Didier referiu a versão que Madame Gaté fez correr de que o marido estava nos Bijagós prisioneiro dos alemães”
.

E vai tecer mais considerações que tem a ver com a missão e extrapolam, fala sobre o problema missionário em que era escandalosa a intrusão francesa preparando indígenas da nossa colónia. Os missionários franceses ensinavam os nossos indígenas a exprimirem-se em crioulo. Criticava igualmente as missões portuguesas que só procuravam instalar-se nos grandes meios, fugiam às duras provas de trabalhar no interior do mato.

Temos agora o relatório da comissão internacional franco-portuguesa com vista a encontrar os restos do avião desaparecido em 30 de junho de 1933, no decurso de um voo experimental que tinha na tripulação o Piloto-ajudante Gaté e como passageiro o Sargento Brée. Portugal fazia-se representar pelo Capitão Jorge Velez Caroço e pelo Administrador Arrobas Martins, responsável pela região dos Felupes em Susana; a França fazia-se representar pelo Capitão Dendoid, reuniram-se em 18 de dezembro de 1934 em Ziguinchor e começaram as suas pesquisas em 22 de dezembro. Nos Bijagós Madame Gaté pretendia que o seu marido estava prisioneiro numa companhia alemã, concessionária num grupo que fazia a exploração do óleo de palma. A comissão visitou várias ilhas sem qualquer resultado. E acontece que a empresa alemã a que Madame Gaté fazia referência tinha capitais mistos portugueses e alemães. Não fazia qualquer sentido que aquela empresa retivesse como prisioneiros dois aviadores que teriam sidos transportados por mar, já que o avião não tinha combustível para chegar aos Bijagós. O governador português também deu conta da informação que lhe fora prestada pelo Coronel do Regimento de Atiradores Senegaleses, em Dacar, ele tinha a convicção de que o avião caíra no mar. O governador pedia que se verificasse a informação antes de começarem as pesquisas na região dos Felupes.

Temos agora outro documento, o relatório da Comissão Franco-Portuguesa constituída para encontrar os restos do avião Potez-Salmson n.º 821, desaparecido em 30 de junho de 1933 no decurso do voo experimental acima de Cabo Verde. Dá-se a constituição do grupo, do lado português estão presentes o Capitão Velez Caroço e também o Administrador Martins. Apareceu, segundo se ouviu dizer, um pedaço de tela em território Felupe, na Guiné portuguesa, mas a testemunha ouvida pela Comissão Franco-Portuguesa não conseguiu obter informações precisas por quem inicialmente fizera tal declaração, Moussa N’Doyle, estava em Dacar e de lá não saía. Dava-se um prémio da região Felupe do Senegal a quem entregasse uma peça do avião desaparecido ou informações que permitissem encontrar o aparelho. Madame Gaté trouxera uma grande quantidade de tela para a Guiné e distribuiu-a pelos indígenas. Velez Caroço escreve o seguinte: “nós encontrámos 1 m2 em Bolama e cerca de 3-4 m2 em Susana. Esta tela não pode de modo algum ser considerada como proveniente do avião de Gaté”. Para Velez Caroço tinham sido 15 dias de inquéritos inúteis na região Felupe, o Coronel Comandante do 7.º Regimento de Atiradores Senegaleses era perentório de que o avião tinha sido atingido por um tornado. Foram ouvidos outros depoimentos e a questão do tornado era uma constante. Em 8 de fevereiro de 1935 Velez Caroço faz o seu relatório, é profundamente cáustico: nascera a lenda dos aviadores devorados pelos antropófagos de Jufunco; contradiziam-se as declarações de quem vira e de quando um avião, até já se falava na fronteira da Gâmbia e do Senegal; eram completamente fantasiosas as declarações de Moussa N’Doyle; chegara-se ao cúmulo de alguém ter dito que vira uma peça grande metálica, de forma cilíndrica, que se assemelhava ao motor do avião, veio-se a descobrir que não passava de uma caldeira de alambique; fizera-se um reconhecimento aéreo na região Felupe, sem quaisquer resultados, embora houvesse ali locais onde o avião pudesse aterrar; e alerta o governador para casos de indisciplina, desobediência e agressão às autoridades administrativas portuguesas em região Felupe. Concluído a consulta deste acervo, vamos dar a palavra ao chefe da delegação do BNU, enviou relatório sobre toda esta questão para Lisboa.

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23789: Historiografia da presença portuguesa em África (343): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1) (Mário Beja Santos)

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