1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Março de 2022:
Queridos amigos,
A história deste avião desaparecido tem foros de tragicomédia, o palco principal foi o chão Felupe, tudo começou com um avião desaparecido, as autoridades senegalesas consideraram que se despenhou no mar devido a um tornado, a viúva moveu o céu e a terra para haver inquérito in loco, temos três peças fundamentais para analisar o assunto. Primeiro, o que escreve René Pélissier na sua História da Guiné, 1841-1936, volume II, Editorial Estampa, 1997, houvera rebelião Felupe no início da década de 1930, aparentemente contida, refere os aspectos caricatos e mitológicos do canibalismo Felupe, entramos depois no desaparecimento de 30 de junho de 1933 que vai levar a interrogatórios duríssimos à palmatória, os inquiridos disseram tudo o que o inquiridor pretendia, nasceu a confusão de que o avião teria caído em chão Felupe na Guiné portuguesa, nada se comprovou, certo e seguro foi o registo de declarações contraditórias e por vezes delirantes; segundo, a documentação elaborada pelo capitão Jorge Vellez Caroço em que se encontra nos Reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa, o oficial também desmonta as inverdades e aproveita a oportunidade para criticar abertamente a intrusão missionária francesa e responsabilizar os missionários portugueses de não estarem cabalmente a cumprir o seu múnus. Iremos ver seguidamente o que já aqui se escreveu sobre o relatório do BNU da Guiné, em 1933, não se possui mais documentação sobre este caso.
Um abraço do
Mário
L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (2)
Mário Beja Santos
Nos Reservados da Biblioteca da Sociedade de Geografia aparecem dois relatórios com a
assinatura do Capitão Jorge Frederico Torres Velez Caroço, Diretor dos Serviços e Negócios
Indígenas, em que apresenta ao Governador Carvalho Viegas o resultado das pesquisas
desenvolvidas por uma comissão de inquérito que envolveu autoridades francesas e portuguesas
para apurar se um desaparecido avião francês tinha aterrado em solo colonial português,
houvera denúncias que testemunharam que tal tinha acontecido. São documentos de leitura
obrigatória e contribuem, a seu modo, para introduzir uma nova abordagem ao extenso
comentário do historiador René Pélissier no seu trabalho "História da Guiné, portugueses e
africanos na Senegâmbia 1841-1936", Editorial Estampa, 1997; acontece igualmente que o
assunto aparece tratado também no ano do desaparecimento do avião (1933), num relatório
enviado pela delegação do BNU na Guiné para a sede em Lisboa, e que consta do meu livro "Os
Cronistas desconhecidos do canal de Geba, o BNU da Guiné", Húmus, 2019.
Fez-se referência no texto anterior a um conjunto de diligências associadas ao
desaparecimento de um avião francês, o relatório oficial de Dacar dava-o como desaparecido no
mar, por efeito de um tornado, a mulher do aviador não estava conformada, apelou às
autoridades francesas, seguiu-se um conjunto de diligências, não conduziram a coisa nenhuma.
Vejamos agora o relatório dos Serviços de Negócios Indígenas, referente ao ano de 1934,
assinado pelo Capitão Velez Caroço, este tivera grave contencioso com o governador, houve
mesmo apreciação em Lisboa do seu comportamento, processo arquivado, daí poder entender-se o cuidado da sua escrita sobre o Caso Gaté. Observa que toda a sua ação dentro da colónia foi
a de conseguir o regresso dos indígenas refugiados em território francês e procurar a pacificação
da região com a cooperação das autoridades de Ziguinchor. Tinha acompanhado o jornalista
Didier Poulain na sua visita à região dos Felupes e, igualmente, enquanto membro da Comissão
Internacional sobre o Affaire Gaté procurara desempenhar da melhor maneira a sua missão tanto
em território nacional como em território francês. E dirige-se ao governador do seguinte modo:
“Brevemente serei afastado desta Direção de Serviços. Apenas terei de dizer a V. Exª que deixo
com eles a saudade de não poder levar ao fim dos problemas, que era meu desejo concluir,
saindo com a consciência tranquila de que trabalhei quanto pude o mais e melhor que sei”. A
data deste relatório é de 30 de março de 1935, Bolama.
Convirá ter-se em atenção, neste acervo que está nos Reservados da Biblioteca da
Sociedade de Geografia a outros documentos, logo o aditamento que o dito Capitão Jorge Velez
Caroço fez ao relatório sobre a visita à região dos Felupes do jornalista Didier Poulain, a data é
de novembro de 1934:
“Na visita ao Administrador Superior do Casamansa, Mr. Chartier, foi-me
revelado que o órgão parisiense Le Journal, largamente subsidiado por Madame Gaté vinha
proceder a investigações sobre a queda do avião tripulado pelo marido e para tal incumbira o
jornalista e aviador Didier Poulain. Depois da sua estada na região, o referido jornalista tinha a
convicção de que o aeroplano caíra na região dos Felupes. O jornalista do Le Matin chegara a
conclusões totalmente opostas. O guia de Didier Poulain, de nome Mussá, apenas pôde informar
ter visto um avião sobre Carabar, não garantia a data em que o avião fora visto, tendo, no
entanto, apurado que as horas a que foi visto esse avião não condiziam com as do voo do avião
de Gaté, o avião teria sido visto a uma hora em que o aviador Gaté nem sequer tinha ainda
levantado voo. Este Didier Poulain prestou informações falsas a Madame Gaté. O administrador
do Casamansa informou o seu governo que o avião de Gaté não podia ter caído na nossa Guiné,
mas sim nos mares, e possivelmente bem perto do ponto de partida. Vários aviadores se tinham
pronunciado que nem as condições atmosféricas nem a quantidade de gasolina que continha o
depósito do avião de Gaté lhe permitiam o voo tão longo, não podendo atingir a Guiné
Portuguesa. O jornalista Didier Poulain visitou Jufunco e toda a região dos Felupes e se não viu
mais foi porque não quis ver”.
Igualmente há que ter em conta o relatório sobre a visita à região dos Felupes de Didier
Poulain, feito igualmente pelo Capitão Jorge Velez Caroço, datado de outubro de 1934. A missão
era a de acompanhar o jornalista na sua visita a Jufunco, procurando indagar dos fins com que
essa visita se fazia e características especiais que a definiam.
“Didier Poulain era capitão aviador e combateu na Grande Guerra. Encontra-se
presentemente ao serviço do Affaire Gaté. Diz-se interessado nos usos e custos indígenas. O Capitão Rouxel voara anteriormente sobre território português sem respeito pelas condições que
haviam sido estabelecidas pelo governo da colónia. O Capitão Rouxel agira incorretamente.
Madame Gaté fora acompanhada na sua visita à região Felupe por Mr. Figuier, um comerciante
que afirmara ao signatário que pouca importância mereciam as informações de Madame Gaté.
Cheguei à conclusão de que o avião Gaté não aterrou na Guiné Portuguesa. A receção dos Felupes
aos visitantes franceses foi muito cordial. O guia de Madame Gaté fora habilidoso a pôr todos os
indígenas a dizer que sim a todas as perguntas de Madame Gaté. Apareceu extemporaneamente
um pedaço de tela de avião conforme mostrou o Sargento Chambon, que acompanhara Madame
Gaté.
As próprias autoridades francesas tinham concluído não haver provas da queda do avião
Gaté. Didier Poulain criticava o facto de o governo francês ter consentido sempre que Madame
Gaté procedesse a investigações particulares. Didier referiu a versão que Madame Gaté fez correr
de que o marido estava nos Bijagós prisioneiro dos alemães”.
E vai tecer mais considerações que tem a ver com a missão e extrapolam, fala sobre o
problema missionário em que era escandalosa a intrusão francesa preparando indígenas da
nossa colónia. Os missionários franceses ensinavam os nossos indígenas a exprimirem-se em
crioulo. Criticava igualmente as missões portuguesas que só procuravam instalar-se nos grandes
meios, fugiam às duras provas de trabalhar no interior do mato.
Temos agora o relatório da comissão internacional franco-portuguesa com vista a
encontrar os restos do avião desaparecido em 30 de junho de 1933, no decurso de um voo
experimental que tinha na tripulação o Piloto-ajudante Gaté e como passageiro o Sargento Brée.
Portugal fazia-se representar pelo Capitão Jorge Velez Caroço e pelo Administrador Arrobas
Martins, responsável pela região dos Felupes em Susana; a França fazia-se representar pelo Capitão Dendoid, reuniram-se em 18 de dezembro de 1934 em Ziguinchor e começaram as suas
pesquisas em 22 de dezembro. Nos Bijagós Madame Gaté pretendia que o seu marido estava
prisioneiro numa companhia alemã, concessionária num grupo que fazia a exploração do óleo de
palma. A comissão visitou várias ilhas sem qualquer resultado. E acontece que a empresa alemã
a que Madame Gaté fazia referência tinha capitais mistos portugueses e alemães. Não fazia
qualquer sentido que aquela empresa retivesse como prisioneiros dois aviadores que teriam
sidos transportados por mar, já que o avião não tinha combustível para chegar aos Bijagós. O
governador português também deu conta da informação que lhe fora prestada pelo Coronel do
Regimento de Atiradores Senegaleses, em Dacar, ele tinha a convicção de que o avião caíra no
mar. O governador pedia que se verificasse a informação antes de começarem as pesquisas na
região dos Felupes.
Temos agora outro documento, o relatório da Comissão Franco-Portuguesa constituída
para encontrar os restos do avião Potez-Salmson n.º 821, desaparecido em 30 de junho de 1933
no decurso do voo experimental acima de Cabo Verde. Dá-se a constituição do grupo, do lado
português estão presentes o Capitão Velez Caroço e também o Administrador Martins. Apareceu,
segundo se ouviu dizer, um pedaço de tela em território Felupe, na Guiné portuguesa, mas a
testemunha ouvida pela Comissão Franco-Portuguesa não conseguiu obter informações precisas
por quem inicialmente fizera tal declaração, Moussa N’Doyle, estava em Dacar e de lá não saía.
Dava-se um prémio da região Felupe do Senegal a quem entregasse uma peça do avião
desaparecido ou informações que permitissem encontrar o aparelho. Madame Gaté trouxera
uma grande quantidade de tela para a Guiné e distribuiu-a pelos indígenas. Velez Caroço escreve
o seguinte: “nós encontrámos 1 m2 em Bolama e cerca de 3-4 m2 em Susana. Esta tela não pode
de modo algum ser considerada como proveniente do avião de Gaté”. Para Velez Caroço tinham
sido 15 dias de inquéritos inúteis na região Felupe, o Coronel Comandante do 7.º Regimento de
Atiradores Senegaleses era perentório de que o avião tinha sido atingido por um tornado. Foram
ouvidos outros depoimentos e a questão do tornado era uma constante. Em 8 de fevereiro de
1935 Velez Caroço faz o seu relatório, é profundamente cáustico: nascera a lenda dos aviadores
devorados pelos antropófagos de Jufunco; contradiziam-se as declarações de quem vira e de
quando um avião, até já se falava na fronteira da Gâmbia e do Senegal; eram completamente
fantasiosas as declarações de Moussa N’Doyle; chegara-se ao cúmulo de alguém ter dito que vira
uma peça grande metálica, de forma cilíndrica, que se assemelhava ao motor do avião, veio-se a
descobrir que não passava de uma caldeira de alambique; fizera-se um reconhecimento aéreo
na região Felupe, sem quaisquer resultados, embora houvesse ali locais onde o avião pudesse
aterrar; e alerta o governador para casos de indisciplina, desobediência e agressão às autoridades
administrativas portuguesas em região Felupe. Concluído a consulta deste acervo, vamos dar a
palavra ao chefe da delegação do BNU, enviou relatório sobre toda esta questão para Lisboa.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 16 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23789: Historiografia da presença portuguesa em África (343): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (1) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 23 de novembro de 2022
Guiné 61/74 - P23808: Historiografia da presença portuguesa em África (344): L’Affaire Gaté: o mirabolante desaparecimento de um avião, com guerra em chão Felupe (2) (Mário Beja Santos)
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