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quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Guiné 61/74 - P27227: Memórias dos últimos soldados do império (5): os "últimos moicanos" - Parte II (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, mar 1973/ set 74)

 


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Contuboel > CCAÇ 2479 (1968/69) (futrura CART 11) > Centro de Instrução Militar (CIM) > Um instruendo, de etnia fula, cuja identificação se desconhece... (mas bem podia  ter sido o Djassi desta história...).

 Foto (e legenda) : © Renato Monteiro (2007). Todo os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)


1.   "Djassi, o ordenança", da autoria do Abílio Magro,  é outro testemunho sobre os últimos dias da nossa presença na Guiné. Faz parte da série "Um amanuense em terras de Kako Baldé" (de que se  publicaram  15 postes entre  janeiro de 2013 e março de  2016, e que estamos agora a revisitar). 

O título não deixa perceber, de imediato,  o drama, pungente,  relatado na segunda parte: o dos soldados do recrutamento local que foram abandonados à sua sorte. Como o Djassi, antigo operacional, que acabou a sua "carreira militar", incapacitado, nos serviços auxiliares,  como "ordenança" na CSJD/QG/CTIG.  E que  a partir de agosto fora obrigado a passar à "peluda"...

A cena passa-se em Bissau, já na segunda quinzena de setembro de 1974. Mas antes vamos ver o Abílio Magro, com "outro moicano", na azáfama, febril e ciclópica, de manhã à noite, de queimar todos os papéis (sensíveis) do seu serviço, em troca da vaga promessa do chefe, um tenente-coronel, de conseguirem chegar a casa uns dias mais cedo... 


Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG (Bissasu 1973/74)



Os "últimos moicanos" - Parte II

por Abílio Magro


Recorde-se que havia dois QG (Quartéis Generais) em Bissau;

  • QG/CTIG (Comando Territorial Independente da Guiné), instalado em  Santa Luzia,
  •  QG/CCFAG (Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné), na fortaleza da Amura.
Eu prestei serviço na CSJD (Chefia do Serviço de Justiça e Disciplina) do QG/CTIG, em Santa Luzia.
 
No tempo em que por ali andei (1973/74), o primeiro era comandado pelo brigadeiro Alberto da Silva Banazol e depois pelo brigadeiro Galvão de Figueiredo; o segundo pelo general Spínola e depois pelo general Bettencourt Rodrigues.

Em agosto de 1974 na CSJD tínhamos um ordenança, o Djassi, soldado nativo que aparentava ter já ultrapassado os 30 anos de idade e que, enquanto operacional, fora gravemente ferido, tendo-lhe sido retirado um pulmão e integrado nos serviços auxiliares. Estava ali colocado para efectuar pequenas tarefas relacionados com aquele Serviço.

O Djassi apresentava invariavelmente um semblante carregado e raramente esboçava qualquer sorriso, denotando, porventura, algum sofrimento pelo seu débil estado de saúde, mas era um indivíduo afável, educado, disciplinado e prestável. Dava gosto lidar com ele. Nunca o vi aceitar com azedume qualquer tarefa, oficial ou particular, que se lhe solicitasse.

Nessa altura, agosto de 1974, já muitas companhias tinham abandonado os seus quartéis no mato e regressado à Metrópole, e outras encontravam-se estacionadas em Bissau a aguardar igual destino.

Por essa razão, estavamos assoberbados com papelada decorrente do "fecho de contas" daquelas companhias,  o que indiciava que nós, os do "ar condicionado", seríamos talvez os últimos a "abandonar o barco".
 
A situação era confusa. Sabíamos que iríamos abandonar a Guiné, mas não sabíamos como, nem se o faríamos definitivamente, nem quando.

Começou a correr a informação de que a partir de finais de agosto não seriam autorizadas férias a ninguém. Ora, eu e o meu camarada Silva,  do Barreiro, nessa altura já os mais "velhinhos" da CSJD, com excepção do tenente-coronel e  do major, estávamos há já mais de um ano sem gozar férias e começámos logo a tratar da papelada para o efeito.
 
Lá viemos de férias em meados de agosto e, entretanto, o "êxodo" continuava e com maior cadência.

Findas as férias, regressámos à Guiné dois dias  depois da data em que foi reconhecida a independência por parte de Portugal - 10 de setembro de 1974.

As patrulhas na cidade eram efetuadas pela PM (Polícia Militar),  conjuntamente com elementos do PAIGC, muitos estabelecimentos tinham encerrado, a tropa que ainda restava era composta de "piras" (ou "piriquitos"), oriundos das companhias mais recentemente chegadas à Guiné.

Na CSJD só o tenente-coronel e o major não tinham ainda sido substituídos, os bens escasseavam, na messe de sargentos só se encontravam "piriquitos", etc., etc.... Ou seja: eu e o Silva estávamos completamente deslocados e, se não tivéssemos tido a estúpida ideia de meter férias naquela altura, teríamos certamente regressado definitivamente, sem necessidade de desembolsar os "pesos" que nos custou a viagem.

Logo tratámos de, junto do tenente-coronel, dar conhecimento da nossa "triste" situação e efetuar o "choradinho" adequado.
 
Fomos então incumbidos de queimar todo o arquivo morto da CSJD que ocupava totalmente uma daquelas pequenas vivendas tipo colonial e que era composto por processos instaurados desde o tempo em que ainda não havia guerra na "Província", após o que poderíamos "meter os papéis" para regressar à Metrópole...

A tarefa impunha alguma responsabilidade e cuidado pois não podia ficar qualquer fração de papel por arder, o que, nos processos mais volumosos, nos obrigava quase a arrancar folha por folha.

Ali estivemos quinze dias a queimar papel que, quando amontoado, nos obrigava a remexê-lo com um pau para que não se apagasse e, no fim de cada dia, só abandonávamos o local quando existissem apenas cinzas.
 
De quando em vez, um ou outro processo despertava a nossa curiosidade pelos objetos de prova que continha e cheguei mesmo à tentação de desviar alguns, mas o desejo de regressar a casa depressa e bem, falava mais alto.

A nossa vontade em terminar a tarefa o mais rapidamente possível era tanta que logo que o sol dava sinais de vida, lá íamos nós p'ra "incineradora" e um dia tivemos a sorte de nos cruzarmos com o ten-cor que, talvez sensibilizado pela nossa madrugadora atividade, nos mandou chamar para que "metêssemos a papelada para bazar dali".

A tarefa ainda não estava terminada, mas o ten-cor, face à nossa proficiência e empenho, achou por bem mandar para lá alguém mais "piriquito" e nós lá regressámos à Metrópole quinze dias depois de lá termos vindo no final das férias.

E foi numa deslocação a Bissau para, no mercado negro, "despachar" os últimos pesos que tinha comigo (na messe de sargentos de Santa Luzia já nada havia para comprar),  que encontrei o Djassi, já civil, e que me interpelou de uma maneira agressiva como nunca imaginei que fosse capaz, confrontando-me com a situação para a qual o Exército Português o tinha atirado e dando-me a entender que, naquele momento, para ele, eu era o representante daquele Exército e exigia-me explicações que eu não lhe podia dar.

  Furriel, eu fui ensinado a respeitar a bandeira portuguesa desde que nasci, andei muitos anos no mato a lutar por Portugal, fui ferido várias vezes, fiquei sem um pulmão, sou português, sempre me considerei português!
 
E prosseguindo:

E agora, dão-me dinheiro e vão-se todos embora?!... O que vai ser de mim?!... O que é que o PAIGC vai fazer comigo?!

Naquele momento senti-me envergonhado por ainda pertencer ao Exército que abandonara à sua sorte o exemplar militar português que era o Djassi.
 
Emudeci e não me recordo de lhe ter dirigido grandes palavras de conforto para além de um lacónico: 

− Calma, vai correr tudo bem!...

Cabisbaixo e algo deprimido, retirei-me do local, mas confesso que, minutos depois, o egoísmo veio ao de cima e já só pensava nas "voltas" a dar no sentido de embarcar com destino à Metrópole o mais depressa possível.

Quando, tempos depois, já na Metrópole, comecei a ouvir os noticiários sobre os fuzilamentos de antigos militares portugueses da Guiné, muitas vezes me veio à memória (e continua a vir quando se fala no assunto) o exemplar militar Djassi e questiono-me sobre o destino que teria tido e se os capitães de Abril (na altura no poder) não teriam podido fazer mais por aqueles que combateram ao nosso lado.

Há muito que tinha em mente falar sobre o Djassi, ordenança da CSJD/QG/CTIG, mas como tenho o hábito de salpicar a minha "prosa" com tiradas pseudo-humorísticas (está-me no sangue), tenho alguma dificuldade de escrita para assuntos mais sérios como este. 

Dispus-me agora a fazê-lo, reconhecendo, no entanto, que este episódio era merecedor de uma escrita mais adequada ao fim a que me propus: 

− Prestar uma sentida homenagem a todos os "Djassis" da Guiné-Bissau!

(Revisão / fixação de texto, título: LG)
____________

Nota do editor LG:

Último poste da série > 17 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27225: Memórias dos últimos soldados do império (4): os "últimos moicanos" - Parte I (Abílio Magro, ex-fur mil amanuense, CSJD/QG/CTIG, Bissau, mar 1973/ set 74)

10 comentários:

Anónimo disse...

Quantas vezes tenho pensado nisto também! e agora berrar e chorar foi o que tive ganas de fazer ao ler este post . Acabrunhado prece-me que pouco mais me resta do das tripas coração"

Anónimo disse...

João Crisóstomo, Nova Iorque
Quantas vezes também eu tenho pensado nisto! E agora ao ler este post só me dá ganas para berrar e chorar. Os que ainda cá estamos, “sobreviventes” que todos somos, temos de saber encontrar força e coragem, até para como sugere o Abílio Magro “prestar uma sentida homenagem a todos os Djassis da Guiné-Bissau”. Não sei se me é possível fazê-lo presencialmente , mas pelo menos virtualmente e de qualquer maneira achada pertinente, é de alma e coração que me associo a este projecto.
João Crisóstomo, Nova Iorque

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Reconheço a cara deste "puto" da foto (era um "djubi", como tantos outros!), que foi soldado da da CCAÇ 2590/CCAÇ 12, e que andou comigo no mato, em inúmeras operações... Foi fotografado para a "eternidade" pelo meu amigo e camarada "inesquecível", o Renato Monteiro, grande fotógrafo (viria a revelar-se muito tarde!)...

Pois é, dpois da independência, a Guiné-Bissau tornou-se demasiado pequena e asfixiante para poder "esconder" dos seus "inimigos" os antigos militares e milícias que estiveram ao lado das tropas portuguesas numa guerra que, para todos os efeitos, foi uma "guerra civil": mais de 15 mil guineeenses, de todas as etnias, lutaram de armas na mão contra o PAIGC, cujos efetivos, dentro do território, seriam 3 ou 4 vezes inferiores...

Em agosto de 1974 foram todos desarmados, as suas unidades extintas, e voltaram à sua condição de "paisanos"... O exército pagou-lhes o soldo até ao fim do ano. A partir de meados de 1974, começou o seu pesadelo... Muitos "emigraram" para países vizinhos, alguns com sorte conseguiram alcançar Portugal... Enfim, nada que não se tenha visto noutras guerras, noutros cenários (da Argélia ao Vietname)...

Mas é evidente que os negociadores da paz, do lado de Portugal, foram "ingénuos" ou "cínicos": toda a gente sabia que não haveria quaisquer garantias, legais e sobretudo efetivas,. contra a ameaça de represálias e sobretudo contra a "caixinhina de Pandora" dos ódios tribais...

O que terá acontecido ao pobre do "ordenança" Djassi desta história ? Tinha o mesmo apelido do "nome de guerra" de Amílcar Cabral, Abel Djassi... De pouco lhe valeria...

Antº Rosinha disse...

"exigia-me explicações que eu não lhe podia dar."
Não eram apenas os tropas africanos que viram o que vinha lá, que sentiam o abandono nas mãos de irresponsáveis, os civis também das três frentes todos viram o mesmo, e chegavam a perguntar, vão embora porquê?
Eles sabiam que iam ser gerações de africanos que deixavam de contar, em favor de umas dezenas de "salvadores da pátria".
Hoje milhões de africanos que vêm pedir essas explicações pela Europa toda.
A África subsariana continua a pedir explicações a toda a Europa de norte a sul.
Quem tem menos explicações para dar a todos os "Djassis", de todos os paises europeus, é Portugal.


Anónimo disse...

Caros amigos,

Eventualmente, o Djassi (apelido), teria algumas dificuldades em esconder a sua condicao de "exemplar militar portugues" devido as marcas que transportava no corpo e na sua alma de operacional que foi nas duras matas da guerra da Guine, mas isso dependeria da sua capacidade de adaptacao a nova realidade que, a partida, podia nao lhe ser tao adversa, pois que os biafadas (seu grupo etnico) estava bem representado dentro das forcas do PAIGC, assim como estavam os balantas e os grumetes de Bissau que, normalmente constituiam os nucleos das chefias entre os guerrilheiros. Exceptuando o caso de elementos dos comandos e fuzileiros bem conhecidos, muitos ex-soldados do recrutamento local conseguiram passar incolumes durante esta dificil fase de purgas e fuzilamentos indiscriminados. Aqueles que, de facto, estavam na mira e com poucas hipoteses de escapar eram claramente os fulas que ja estavam politicamente marcados com uma cruz nos discursos de Amilcar Cabral e outros dirigentes durante a luta e que depois so restava aplicar na pratica o consenso gerado a volta desse grupo de "colaboradores" que tinha ousado desafiar as ideias do partido e se posicionara a favor dos portugueses. O Aladje Mane (biafada de Bafata) tinha sido um eminente membro da ANP (Accao Nacao Popular) e dos congressos do povo do Gen. Spinola, mas foi recuperado e viria a ser um influente membro do partido "libertador"; o Cadogo Junior, ex-sargento do exercito portugues foi, mais tarde, presidente do Paigc e primeiro ministro do pais, enfim houve muitos que, atraves dos lacos de amizades, de parentesco ou outras vias conseguiram fazer a travessia sem sofrer consequencias negativas.

Com um abraco amigo,

Cherno AB

Anónimo disse...

PS:
O paradoxo de tudo isso eh que, hoje em dia, mesmo os mais ferrenhos nacionalistas, inclusive os antigos combatentes do Paigc sabem que, talvez o futuro da Guine fosse muito diferente se nao tivesse havido aquela guerra que devastou o pais e destruiu tudo que podia ser aproveitado para dar um rumo melhor ao pais, pois hoje sab emos que a independencia, so por si nao eh uma panaceia e os milagres so acontecem nas narrativas biblicas.

Ha poucos dias, anunciaram o falecimento em Lisboa (Hospital Amadora -Sintra) de um antigo guerrilheiro do Paigc, o Leopoldo Alfama, mais conhecido por Duque Djassi (nome de guerra). Antes dele, muitos outros ja tinham feito o mesmo percurso, incluindo Luis Cabral. E a questao que deveriamos fazer eh: E porque serviu toda aquela mortifera guerra se nem sequer podemos fazer funcionar um SNS em condicoes. Lembro-me da questao que o meu falecido pai tinha colocado aos guerrilheiros que ocuparam o quartel em 1974 apos a partida da ultima companhia da tropa portuguesa de Fajonquito:

- E porque querem a independencia se nem sequer tem medicamentos para a dor de barriga ?

Cherno AB

ManuelLluís Lomba disse...

O "MFA de Bissau" foi a nódoa caída no bom pano do Movimento das Forças Armadas, foi o responsável este crime que ainda nos comove - e nos envergonha! A matança dos seus compatriotas das FA Portuguesas foi decisão de Amílcar Cabral, no Congresso de Cassacá, em princípios de 1964. E foi ele a dar o pontapé de saída. Cabral não foi sanguinário? Ora, ora...

Antº Rosinha disse...

O PAIGC ao eliminar os dois irmãos Cabral, ficamos sempre na dúvida o que poderia ser a Guiné governada à maneira como acontece com Caboverde, em que vemos no meio das dificuldades enormes, sempre uma prioritária "unidadi" .

Em Caboverde, que sempre esteve do lado de Portugal ou neutro, no caso de Angola foram os caboverdeanos dos primeiros a porem-se ao lado de Salazar a defender as fazendas de café no norte de Angola contra os turras da UPA (FNLA), e em Caboverde , o PAIGC sabia que os ilhéus não iam aceitar nenhuma Kalash nas suas ilhas, no entanto nenhum caboverdeano colaborador (catchurro) foi parar a qualquer vala comum.
A tal "unidadi" caboverdeana, que o povo guineense sabiam que era impossível na Guiné.

Abílio Magro disse...

periquito vs piriquito

Na Guiné os militares recém chegados à “província“ eram apelidados de “piriquitos” e só depois de cumpridos alguns meses de serviço é que passavam a merecer a “patente de velhinho”.
Parece que essa designação (“piriquito”) se deve aos camuflados desses militares que, com pouco uso, apresentavam bem vivos os vários tons de verde da farda, levando-nos a assemelhá-los ao periquito verde da Guiné (papagaio do Senegal).
Talvez para evitar confusão com o periquito verde e o militar “piriquito”, esta designação tornou-se comum e como abreviatura usava-se o “pira”, por ex: “este gajo é muito ‘pira’”.
Nos posts originais usei sempre esta designação – voz populi.

Tabanca Grande Luís Graça disse...

Mano, tens toda a razão... Afinal, o povo é quem faz a língua, é quem mais orden(h)a... Fica "piriquito"... E espero que os senhores lexicógrafos concordem!|... Luís