1. Alberto Branquihno (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), em mensagem datada de 2 de Setembro de 2010, discorre sobre o excesso e/ou falta de água na Guiné do nosso tempo.
CONTRAPONTO (14)
DISCORRENDO SOBRE AS “ÁGUAS” NA GUINÉ
Quem leia o título pensará que vou discorrer sobre água. Não, não se trata de escrever somente sobre o composto H2O.
Trata-se de alinhavar umas recordações sobre “águas” na Guiné e sobre as diversas situações, circunstâncias e formas em que a “água” se apresentava para satisfazer as necessidades orgânicas dos combatentes (e de outros militares) ou para dificultar a sua vida. E quando escrevo “combatentes” não estou a referir-me aos muitos militares que dizem ter estado “no mato”, porque estão convencidos (ou querem convencer quem não tenha tido conhecimento da realidade) que viveram as circunstâncias e as realidades da guerra. Apesar disso, dissertam sobre a experiência da “guerra”, tendo estado somente dentro de aquartelamento(s) no interior da Guiné (com melhores ou piores condições). Mas nunca dele saíram para fins operacionais, usando as suas próprias pernas para se locomoverem. Dormiram todas as noites nas suas camas, sofrendo (talvez) algum ataque ao quartel, abrigados em trincheiras ou em abrigos de cimento, sem riscos de maior.
Ora o tema deste discurso – AS ÁGUAS – é matéria que esteve presente no dia-a-dia do efectivo combatente, embora o “combatente dentro de portas” tenha conhecido algumas dessas “águas” (as mais agradáveis). O “combatente dentro de portas” não sofreu a “sede” e a “água fora de portas”, como abaixo vão referidas.
Quando havia poço de água (propriamente dita) dentro de portas era feita a recolha e distribuição da mesma pelos depósitos do quartel (bidões habitualmente). Mas quando o poço de água era fora de portas, o “carro de água” era acompanhado/protegido na ida e no regresso por combatentes, que o enquadravam, em coluna apeada.
Este discurso terá quatro capítulos, a saber:
I – Introdução (da qual o texto acima faz, também, parte);
II – As águas dentro dos aquartelamentos;
III – A água propriamente dita, fora dos aquartelamentos;
IV – Efeitos das águas na saúde dos militares (combatentes ou não).
O evoluir deste trabalho fará (espero) aflorar recordações que estarão no sótão ou na cave da memória.
Ele destina-se, principalmente, a informar os leigos que o lerem acerca das realidades hídricas que os combatentes (e, em alguns casos, os outros militares) deparavam no seu quotidiano.
Esta ideia surgiu ao autor no dia em que lhe faltou a água na torneira. A EPAL foi, portanto, a inspiradora. Obrigado, EPAL.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) > A cambança de uma lala ou bolanha... no decurso de uma operação.
Foto: © Humberto Reis (2006) / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
I – INTRODUÇÃO
Em primeiro lugar dá-se aqui como reproduzido o texto inicial, que é, claramente, o pai (ou a mãe) desta Introdução. O que a seguir vai escrito é, portanto, uma ejaculação consequente do texto inicial e… introdutório.
Importa dizer que muitos camaradas foram depositados na Guiné num quartel ou espaço afim e aí permaneceram (incluindo os arredores do mesmo) durante os dois anos de tempo de Guiné. Quem tenha estado assim todo o tempo e numa zona situada mais para norte, não terá consciência que no sul mais a sul dessa linha a água e a terra não estavam devidamente separadas (agravado na época das chuvas). Aí Deus, ao tempo da criação do Mundo, esqueceu-se de separar a terra das águas.
As terras a norte, onde se encontra paisagem tipicamente de savana, mesmo na época das chuvas, não se assemelham às terras do sul mais a sul, nomeadamente no que respeita às dificuldades de progressão no terreno. Nesse sul, os rios grandes, rios médios, rios pequenos, riozinhos, braços de rio, braços de mar, lodo, lodo, lodo e mais lodo e água-lodo cercavam povoações e aquartelamentos.
Os rios, devido à baixíssima altitude do terreno, divertem-se a ziguezaguear, assim como em dança africana, em que cada curva e contracurva quase tocam a curva e contracurva anteriores, criando pequenas e grandes penínsulas lodosas, com vegetação variada e exuberante. Há, também, as grandes poças de água, lodosas (chamadas “bolanhas”) que, vistas do ar, são muito agradáveis de ver. Mas quem tem (tinha) que caminhar por lá não via essa beleza e o cheiro a maresia podre permanecia no camuflado, nas meias e nas botas.
Outro aspecto é a salinidade da água. Mesmo quando a água dos rios se apresenta límpida (o que é pouco comum, porque é, habitualmente, escura e lodosa) o grau de salinidade era tal que, se um soldado “periquito” incauto e sedento a bebesse, sofria um choque que nunca mais esqueceria. À sede, assim agravada, sobrevinha um desespero incontrolado.
A minha Companhia só encontrou rio de água doce mais de um ano depois de ter chegado à Guiné – no Rio Balana, junto a Gandembel, durante a construção deste aquartelamento (Operação Bola de Fogo). Mais ou menos a dez quilómetros a sul de Aldeia Formosa (Quebo).
Por outro lado, quem tenha estado todo o tempo nessas terras mais a sul, não conheceu rios de água doce, que só podem ser encontrados a norte, onde o terreno pode apresentar-se com altitudes de... dez/quinze metros. Ora, nestas circunstâncias, as marés, mesmo as mais vivas (e inteligentes...) não conseguem subir tão alto e, portanto, a água é doce (ou, mais propriamente, não salgada). Na época das chuvas esses pequenos rios têm, como é óbvio, um caudal apreciável.
II – AS “ÁGUAS” DENTRO DOS AQUARTELAMENTOS
A água, dentro dos aquartelamentos, era absorvida pelos militares (combatentes incluídos) sob as seguintes formas:
a) Sob a forma de água propriamente dita;
b) Sob a forma de cerveja (a forma mais apreciada e consumida);
c) Sob a forma de “coca-cola” (proibida na “Metrópole”, mas tolerada pelas autoridades locais);
d) Sob a forma de “7upe”(assim mesmo pronunciado, dada a falta de inglês na formação militar e que não existia na “Metrópole”);
e) Sob a forma de dois ou três refrigerantes;
f) Sob a forma “Água de Castelo”, misturada com bebida alcoólica);
g) Sob a forma de “Pérrier” (água francesa de aparecimento misterioso, só explicável pele francofonia envolvente); era consumida misturada com bebida alcoólica ou simples, quando havia necessidade de arrotar;
h) Sob a forma de “água tónica”, também acompanhada da componente alcoólica;
i) Sob a forma de vinho, que chegava em garrafões de tamanho considerável e difíceis de esvaziar; não era uma forma muito habitual de repor os níveis de H2O no organismo; por outro lado, constava que, devido à adição de uma substância química, em vez de matar a sede, matava a fome de outra coisa...
E, parece que é tudo. Caso falte aqui a referência a alguma espécie de “água” que suprisse as necessidades orgânicas de água, faça o favor de a acrescentar à lista.
Falando de água propriamente dita, ela era recolhida de poços pelas chamadas “viaturas da água”, que tinham na carroçaria todos os bidões (sim, os de gasolina) permitidos pela volumetria da caixa. Todos os dias (e, por vezes, mais que uma vez) essas viaturas iam a esses poços e, através de bombas manuais ou moto-bombas, aspergiam a água, enchendo os bidões. No quartel, a água era passada para os bidões de reserva existentes junto às cozinhas, para bidões colocados em cima de tábuas horizontais sustentadas por tábuas verticais. Eram os... chuveiros. Onde os havia, porque muitas vezes o pessoal lavava-se (quando se podia lavar... ou devido à falta de água ou ao excesso de “fogachal”) baldeando a água para cima dos corpos com vasilhame mais ou menos adequado. Esses “chuveiros” eram, habitualmente, accionados por dois cordéis – um abria a água e o outro fechava. Quem demorasse mais que xis minutos no chuveiro quase era fuzilado.
Em certas situações não se podia usar moto-bomba na recolha da água, porque, quando o motor começava a trabalhar, havia do “outro lado” alguém que, ouvindo o barulho do motor, enviava para o local, a título de reciprocidade ou cumprimento, umas granadas de morteiro. E, claro, como quando acontece com os protestos do vizinho de baixo, desligava-se a moto-bomba e o pessoal espalmava-se no chão assim como peixe escalado. Algum tempo depois recomeçava a recolha de forma manual.
Já me perguntaram porque é que “os gajos” não envenenavam a água. Respondo que nunca lhes perguntei, mas acho que era porque “eles” tanto bebiam a água a montante como a jusante, porque andavam sempre em passeios.
Muita gente morreu nas “saídas” para ir recolher água, caindo em emboscadas. Quando digo isto a alguém que quer saber “coisas” sobre esses tempos, ficam a olhar-me com ar entre o incrédulo e espantado. Aí, remato:
- Não havia água canalizada…
A terminar, há que dizer, quanto às várias formas de água acima referidas, que:
(i) Água (propriamente dita) era, mais ou menos, como ficou dito acima;
(ii) Sob a forma constituinte de cerveja, lá ia aparecendo, quase nunca faltando;
(iii) Sob a forma de “coca-cola”, e “7upe”, era um luxo (nem sempre havia em muitos quartéis);
(iv) Sob a forma de “Água Castelo” ou “Pérrier”, abundava nas messes das sedes de Batalhão (no “mato”);
(v) Vinho, havia em muitíssimos garrafões nos depósitos, arrumados em pilhas.
Parece que está tudo dito. No entanto, se alguém desejar colmatar alguma lacuna, faça o favor de entrar.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71) > Destacamento do
Rio Udunduma > 3º Grupo de Combate da CCAÇ 12, no "refeitório": Na foto reconheço, à esquerda, o 1º Cabo Carlos Alberto Alves Galvão (o homem que foi ferido duas vezes na mesma operação, vivendo hoje na Covilhã) e o Alf Mil Abel Maria Rodrigues, transmontano de Miranda do Douro; à direita o o Fur Mil At Inf Arlindo T. Roda (natural de Pousos, Leiria; residente hoje em Setúbal) ... Lembro-me da cara (mas não recordo o nome) do camarada (sold condutor auto ?) que guarda o recipiente que continha a famosa "água de Lisboa" (segundo os africanos; para nós, era simplesmente "água do Poço do Bispo" ou "vinho a martelo") ...
O famoso garrafão de vinho da Intendência era uma versão superior (10 litros ?) do nosso alegre e saudoso "palhinhas" dos piqueniques do tempo dos nossos pais e avós... O vidro era revestido, não a verga, mas a tiras de madeira, de modo a protegê-lo das muitas andanças e cambanças, voltas e baldrocas que tinha de fazer desde o produtor ao consumidor final...
O produtor era o o mixordeiro do Poço do Bispo (que da água do Tejo fazia vinho "pró preto"...); o consumidor final era o pobre Zé Soldado que, segundo o regulamento, tinha direito a uma caneca por refeição dessa mistura hidro-alcoólica que chegava, quando chegava, às margens dos rios da Guiné, como o Udunduma (afluente do Geba), um dos muitos miseráveis e solitários destacamentos das NT... (LG)
Foto: © Arlindo Teixeira Roda (2010) & Blogue Luis Graca e Camaradas da Guine. Todos os direitos reservados.
III – A ÁGUA FORA DOS AQUARTELAMENTOS
a) A progressão no terreno
Fora dos aquartelamentos, para além da necessidade de repor os desejáveis níveis de água no corpo, aquilo que um homem mais recorda daqueles tempos são as dificuldades de movimentação no terreno durante as operações ou as colunas auto. Terreno? Nessas terras mais a sul poderia falar-se em terreno, principalmente durante a época das chuvas? Era lodo, lodo, lodo, lama e água-lodo. A falar das águas (e dos lodos) convém não esquecer que aqueles rios do sul mais sul da Guiné, porque a altitude do solo está quase ao nível do mar, invadem a terra/lodo em cada maré-cheia. Na baixa-mar deixam à vista as grandes margens lodosas que os enquadram. Qualquer riacho, braço de rio ou braço de mar exibe a sua moldura lodosa de muitos metros, na margem esquerda e na margem direita. Aí um homem atasca-se, com risco, em alguns casos, de ser engolido. Certo foi que, devido ao esforço de tentar levantar cada pé para tentar avançar ou fugir dali, esse esforço continuado foi a causa de, com o decorrer do tempo, rebentarem hérnias inguinais. Surgiam, também, fungos e micoses entre os dedos dos pés e nas virilhas.
É impossível atravessar a pé o mais pequeno braço de água na maré-cheia, arriscado durante o encher da maré e, principalmente, durante o vazar, porque o risco de ser arrastado é grande. Em certas zonas há que esperar a baixa-mar total e aproveitar zonas mais baixas de lodo ou troncos de árvores caídos para atingir o centro da linha de água e caminhar ao longo dele (que não tem lodo ou tem pouco) até descobrir outro espaço que permita passar para a outra margem. Esta manobra é chamada
CAMBANÇA. A mesma designação é, também, usada para o atravessamento de um braço de água, feito em canoa.
Muitas vezes o atravessamento de rios (com centenas de metros de largo) era efectuado, por razões de sigilo operacional, durante a noite e a canoa ia engolindo água pela borda esquerda e pela direita, à medida que avançava. Era um susto contínuo. Nem sempre uma canoa... “é uma passagem para a outra margem”.
Imagine-se o cuidado a ter no planeamento de operações, de modo a que o acesso a uma determinada zona fosse ser feito, por cambança, em maré baixa e o regresso (depois da “fogachada” habitual) também em maré baixa, no mesmo dia ou dias depois para evitar que a tropa ficasse encurralada entre “os gajos” e a água em maré alta.
Também as zonas baixas (alagadas e lodosas – “bolanhas”), cobertas de vegetação rasante à água, eram perigosas de ser atravessadas devido à exposição ao fogo inimigo colocado na orla das matas circundantes e porque a água ficava, pelo menos, à altura da cintura ou do meio do peito de um homem médio. Quando surgiam “baixios” ou a água tinha níveis superiores, havia que retirar a arma aos mais pequenos e levantá-los pela gola do “bibe” para evitar que engolissem água. Água que, além de salgada, era lodosa e insalubre.
Como se vê, os homens colocavam o “chispe de molho” logo ao sair do quartel e só o podiam secar no quartel, depois do regresso, que podia ser na noite desse dia, no dia seguinte ou dias depois. Tudo isto na época das chuvas ou imediatamente a seguir.
Depois ia baixando o nível das águas, mas ela (a água) continuava sempre presente.
Convirá dizer que havia algumas situações preocupantes nas circunstâncias descritas – progressão de noite (mesmo com luar), debaixo de chuva intensa, em caso de emboscada ou flagelação à distância.
b) A chuva
No fim da época seca a chuva anunciava-se com pequenas nuvens no horizonte. A seguir vinham as trovoadas semelhantes a rebentamentos de morteiro, consecutivos. Ventos e as primeiras chuvas.
Começava a formação das lamas nos quartéis, que durariam meses, enlameando tudo e todos e então:
(i) surgiam, como por encanto, milhares de formigas de asa, que, depois de um voo efémero que as salvava de afogamento, se atravessavam à frente dos rostos, chocavam com as pessoas, com os objectos e a construções, em voo irregular, caindo de seguida por terem perdido as asas. Deixavam tapetes e tapetes de asas que, ou se amontoavam nos cantos ou andavam em redemoinhos provocados pelo vento, que acabava por empurrá-las para longe. As que ficavam tinham que ser apanhadas à pá, molhadas pela chuva ou permaneciam durante vários dias;
(ii) quando a chuva já continuava, verificava-se a “aparição” de centenas de rãs e sapos (e outros exemplares afins) que ocupavam todo o espaço enlameado, procurando abrigo em qualquer canto, com os seus saltos contínuos e nada elegantes, invadindo até os espaços habitados; mas o momento mais desagradável era à noite, porque tornavam impossível o sono com o coaxar ininterrupto, com vozes de tenor, barítono, contralto…
No que respeita à actividade operacional, a chuva, que, por vezes, caía em cortinas de água, dificultava o contacto (visual) entre os homens e os que os antecediam, quebrando, assim, a coluna, impossibilitando a progressão e causando o risco de serem confundidos amigos com inimigos. Imaginem como seria, então, em progressões nocturnas.
Apesar de a chuva ter uma temperatura idêntica à da nossa chuva de Verão, no meio da mata sentia-se como fria e quando era necessário parar, evitava-se até agachar por ser desagradável sentir o camuflado molhado totalmente colado às costas, o que poderá parecer estranho para quem tenha frequentado os
Rangers durante o Inverno de Lamego. Mas quando se tratava de salvar a pele…
Caminhando debaixo daquela chuva persistente (que se mantém durante os meses dessa estação), havia um pingo de água irritante. Baloiçava da esquerda para a direita e da direita para a esquerda (Não estou a falar de políticos…), à frente do nariz de um homem, obrigando-o a sacudir, repetidamente, a cabeça, para o fazer cair no chão. Mas logo outro surgia, ocupando o lugar do expulso. Nova sacudidela… e assim sucessivamente. Não, não era o pingo do nariz. Era o pingo na pala do
quico, que passeava de barlavento para sotavento e de sotavento para barlavento, num movimento sem fim e irritante. Solução – passar a pala para trás da cabeça, até porque não iria haver sol durante muitos meses.
Já me perguntaram se debaixo daquela chuva tropical, as armas encharcavam ou se a pólvora encharcava. Não, isso não acontecia, porque os canos das armas eram virados para baixo e graças à Fábrica de Braço de Prata.
Muitos pormenores poderia escrever sobre a água, as chuvas durante a “ época das chuvas”, mas o sentimento que mais me apetece transmitir a quem não viveu essas situações (ou mesmo a quem as viveu) – ao andar pelos terrenos alagados, bolanhas, debaixo daquelas chuvas que nunca mais paravam, sempre dentro de água – é que nunca na minha vida desejei tanto ser peixe…
c) - A sede
A matéria deste texto é, exactamente, a antítese do que trata o texto imediatamente anterior.
Cada homem tinha distribuído um cantil. Teria uma capacidade de, mais ou menos, um litro. Mesmo durante as operações de um só dia havia que saber doseá-lo. No caso de operações de dois, três, quatro dias TALVEZ em algum momento pudesse haver reabastecimento. As instruções eram para chegar o cantil aos lábios, assim como quem beija. Mas a tropa nova esgotava-o em dois actos.
A sede (sede, sede, sede, sede…) era uma coisa horrível. Na época seca, claro.
- Eh pá, dá-me uma pinga de água.
A palavra ÁGUA (água, água, água…) era equivalente a ouro. A palavra era pronunciada, pensada com a cabeça tonta de sol e sede. Era qualquer coisa de divinal, longínqua. Além disso, havia uma música de sons graves, muito graves e repetitivos na cabeça dos homens. E soava como se ecoasse num espaço cavo, oco e profundo.
Um caso conheci em que o soldado urinou no cantil e bebeu a própria urina. O que mais doía era ouvir feridos e moribundos pedir água, por vezes já com o soro a correr nas veias.
Devido à absoluta necessidade, chegámos a beber de poças de água que tinham excrementos de animais lá dentro e que, portanto, também dela tinham bebido. No caso de excrementos de vaca era duplamente perigoso – pelo facto de a bebermos e porque, se havia vacas, havia população, o que, em terreno longe dos quartéis, significava a presença próxima de guerrilheiros. Enquanto uns bebiam, outros montavam segurança, alternando-se depois. Tal como acontecia junto de rios de água doce, para beber e para encher cantis.
d) – O macaréu
Atrás foi já dito que as marés afectavam os rios e o território da Guiné muitos quilómetros para além da foz dos rios. Ora, no tempo das marés vivas, a massa de água que sobe o rio pode ser tal que a primeira onda de maré e as primeiras a seguir (em movimento contra as águas descendentes), tenham uma força e altura tais que podem perigar a navegação, principalmente de pequenas embarcações. É o
macaréu, que no Brasil é chamado
pororoca.
IV – EFEITOS DAS “ÁGUAS” INGERIDAS
Estando este discurso a atingir o seu final, compreensível será para o leitor quais poderão ter sido os efeitos das “águas” ingeridas nas circunstâncias já descritas.
Quanto aos compostos “cerveja, vinho ou às “Castelo”, “Pérrier” ou água tónica (estas últimas não elas mesmas, mas o respectivo aditivo alcoólico), claro que poderão ter causado efeitos a médio ou a longo prazo, mas é da outra agua (a propriamente dita) que importa, agora, falar.
O facto de a tropa combatente ter ingerido aquelas águas fora dos aquartelamentos (voluntária ou involuntariamente), acarretou, por vezes, problemas de saúde. Não esquecer as involuntárias goladas ou “pirolitos” no atravessamento de rios e bolanhas. Estas águas transportaram para o interior do corpo micro organismos que causaram ou poderiam vir a causar enfermidades em futuro próximo.
No final da comissão, cada um foi obrigado a fazer aquilo que, na gíria de caserna, era denominado “cagar no frasquinho” – acto que exigia grande pontaria, mais facilitado, portanto, para os atiradores especiais... Analisadas as fezes (se é que eram todas analisadas...), ficávamos a saber a densidade de oxiúros, triquinas e outros familiares que, gratuitamente, transportávamos. E foi então que, mais uma vez, se manifestou um dos tais “combatentes de dentro de portas”, que só bebia águas engarrafadas, comentando com ar desdenhoso:
- Não percebo tanta preocupação. A minha análise é negativa!.
Como terapêutica para matar aquela bicharada toda, transportada clandestinamente nas entranhas, eram distribuídos comprimidos, engolidos a custo e à custa de cerveja. Porquê? – Porque eram grandes, maiores e mais volumosos que a antiga moeda de um escudo, em níquel. Era o sinal que a guerra estava a acabar e que, em breve, estaríamos navegando sobre outras águas, fazendo a
GRANDE CAMBANÇA de regresso a casa.
Tenho dito!
(Embora mais houvesse a dizer).
Alberto Branquinho
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 29 de Julho de 2010 >
Guiné 63/74 - P6803: Contraponto (Alberto Branquinho) (13): Cambança com Caronte, ou A última viagem do soldado