1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Junho de 2011:
Queridos amigos,
O ilustre estudioso da Guiné, Fernando Rogado Quintino, entra no nosso blogue pela porta alta, esta “breve notícia” da Guiné é um primor da escrita, denota paixão pelo objecto da escrita.
É tempo de se proceder a um inventário de algumas gemas literárias que correm o risco de ficar no olvido.
Um abraço do
Mário
Um belo cartão-de-visita na semana das colónias de 1946
Beja Santos
“Eis a Guiné! Breve notícia da sua terra e da sua gente” foi o título escolhido por Fernando Rogado Quintino para uma admirável monografia que ele escreveu no âmbito da semana das colónias de 1946 dedicada ao V Centenário do descobrimento da Guiné. Rogado Quintino foi administrador colonial e um dos mais laboriosos investigadores da Guiné, dos anos 40 aos anos 70. Deixou uma bibliografia impressionante, abrangendo a gramática balanta, o estudo das religiosidades guineenses e da antroponímia, escreveu sobre pintura e escultura, artefactos e totemismo, lutas corpo a corpo e arte popular. O seu nome pode ombrear com os de António Carreira, Fernando Galhano e Teixeira da Mota.
Considera Rogado Quintino haver 4 períodos na história da Guiné: desde a descoberta até à criação da primeira Capitania-mor (1446 a 1641); desde a criação desta capitania até ao estabelecimento da primeira Comarca (entre 1641 a 1835); os tempos da ocupação militar (1835 a 1915); e desde a pacificação a 1946.
Descreve o período esclavagista, as façanhas dos “lançados”, a concorrência com os ingleses e os franceses, os problemas postos pela Capitania-mor de Cacheu, a criação das companhias majestáticas, os tempos de Honório Pereira Barreto e as operações de pacificação. Descreve a situação geográfica, a orografia e a hidrografia, observa cuidadosamente o mosaico étnico e aborda, sem concessões exóticas, o clima da região. Vale a pena ouvi-lo: “A Guiné, sem grandes altitudes, com as suas inúmeras lalas e bolanhas, colocada a meia zona tropical, não pode desfrutar de um clima ameno. Neste particular, em relação às outras colónias, encontra-se numa posição de manifesta inferioridade. Um ou outro local, menos povoado de mosquitos, com limpezas e pequenas obras de saneamento, apresenta já melhores condições de salubridade (…) As derrubas de arvoredo, para culturas, em anos sucessivos, e as queimadas periódicas podiam também ter reduzido o número de insectos transmissores de doenças infecciosas; mas também isso pouco contribuiu para modificar o aspecto geral do clima.
Mais do que as derrubas e queimadas, o uso diário e metódico do quinino fez diminuir os escassos fatais de biliosas e perniciosas, no período que procedeu à guerra, logo, porém, que o quinino faltou essas perigosas doenças voltaram a ter o carácter maligno dos primeiros tempos. Os pântanos são muitos e sem a sua eliminação total não é possível transformar a colónia num território de fixação ou povoamento.
Duas estações, cada uma com as suas características distintas, se observam na Guiné: a seca, que vai de Dezembro a Maio e a chuvosa, que vai de Junho a Novembro.
A primeira principia com as grandes cacimbas e com um vento que sopra do leste, frio e desagradável. O termómetro desce a 15º em certos pontos do interior, como no Boé.
A partir de Fevereiro, a temperatura vai gradualmente subindo e o vento, embora soprando do mesmo lado, é cada vez mais seco e mais quente.
Em Abril e Maio, o sol e o vento tornam a atmosfera quase irrespirável: são os meses dos grandes calores, em que o termómetro chega a marcar 45º à sombra!
A zona pluviosa é anunciada por relâmpagos que nas noites abafadas de Maio se observam no horizonte.
Vem então os dias encobertos e às vezes no quadrante SE ressoam longe os trovões. O primeiro tornado, violento e chuvoso, coincide com uma das fases da lua. A terra endurecida e sedenta absorve, sôfrega, os aguaceiros caídos. Passado o tornado, espalha-se no ar o odor característico do oxigénio electrizado. O fim da época é caracterizado pelos chamados tornados secos, isto é, tornados sem chuva.”. Falando da instrução, Rogado Quintino observa que o ensino primário elementar é destinado às crianças europeias e assimiladas que, em elevado número, se concentram nas duas cidades de Bolama e Bissau. No interior, em alguns centros urbanos, funcionam escolas rudimentares regidas por professores menos habilitados, cuja função consiste apenas em dar às crianças as primeiras luzes sobre leitura, escritura e aritmética. E vai mais longe na sua análise: “A criança indígena precisa ser preparada para a vida – e a sua vida está ligada à terra, que lhe dá o pão. A aprendizagem literária não lhe traz benefício imediato e é, até, em certos casos, prejudicial. Indígena literariamente habilitado é, em geral, indígena roubado à actividade agrícola.
Também é um erro dar preferência ao ensino das artes e ofícios, em detrimento do ensino agrícola. Sendo a Guiné uma colónia essencialmente agrícola, parece aconselhável um procedimento diametralmente oposto. De resto, sem necessidade de abertura de escolas oficiais, os artífices formam-se com relativa facilidade nos centros de actividade particular: aprendizes de carpinteiro, de pedreiro, de ferreiro, etc, trabalham por toda a parte com os seus mestres. Escolas agrícolas, essas sim, são sem dúvida de uma importância capital para o desenvolvimento da economia geral da colónia”.
O registo que faz da flora e agricultura, bem como da fauna, é de uma grande beleza. Basta ver esta passagem relativa à fauna: “Todo o território é um sumptuoso jardim zoológico. O cientista minucioso, o naturalista beato e o desportista caçador encontram ali fortes emoções. As perdizes, as galinhas de mato, as chocas (codornizes), as rolas, levantam voo a cada instante. A onça, o búfalo, o sin-sin, gazela, a boca-branca, constituem para os espíritos mais exigentes um atractivo deveras fascinante. Os elefantes são em pequena quantidade e estão localizados na conhecida mata de Cantanhez, parte da qual forma hoje o chamado Parque Dr. Vieira Machado”. E não se cansa nos adjectivos sobre os símios, a hiena, a onça, os búfalos, os hipopótamos e os morcegos. Falando do comércio, refere como as firmas mais importantes: António Silva Gouveia, Lda., subsidiária da Companhia União Fabril; Eduardo Guedes, Lda., Sociedade Comercial Ultramarina, Barbosas e Comandita, Companhie Française de l’Afrique Occidentale d’Oeste Africaine e Aly Souleimane & Companhia.
E termina assim a monografia: “A Guiné, até há uma vintena de anos, jazia improdutiva, num atraso deveras constrangedor. Os cincos séculos decorridos, desde que Nuno Tristão e os seus companheiros ali perderam a vida, foram, na sua quase totalidade, consumidos em lutas constantes, para vencer a inospitalidade do meio, da sua exótica e aguerrida gente e da gente que àquelas plagas aportara, em aberta e desleal competição connosco. Foram cinco séculos de duros e pesados sacrifícios: vidas tombadas, lágrimas choradas, lares esfacelados, temores, aflições, trabalhos, apreensões – tudo para defender, conservar e alargar o património nacional. Aberto o caminho, resta agora elevar a colónia ao nível em que se encontram outras, como Angola e Moçambique”.
É um texto colorido, primorosamente elaborado, sensível, saído de um plumitivo culto, arguto e amante daqueles lugares. São páginas grandiloquentes sentidas, dignas de constar em qualquer antologia da literatura colonial.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 14 de Junho de 2011 >
Guiné 63/74 - P8418: Notas de leitura (247): O Império Colonial Português, Secretariado da Propaganda Nacional (Mário Beja Santos)