Caro Carlos
Há tanto tempo, tanto, que nada escrevo. Não sente o blogue nem os camaradas. O tempo corre veloz. Depois as "fugas" não para o Egipto mas para outras bandas, a idade a dizer - presente - e eu a desleixar. Está aí, no papel ou já teclado, um ou outro escrito. Ainda juntei os dispersos da célebre "Lança Afiada".
Hoje vi este escrito, levou cortes e pensei: Se o Carlos tiver pouco material entre mãos e considerar que pode ser escrito de fim-de-semana mando.
Vai então. Leve, ligeiro, sem aborrecer ou agitar. O calor não aguentaria coisa pesada como um ou dois que vegetam por aqui.
Abraços a todos e um especial para ti.
Torcato Mendonça
OS NOSSOS REGRESSOS (25)
TEMPO DE PARTIDA
Há muito tempo atrás, uma sugestão do José Belo e um comentário do Manuel Joaquim, fizeram o vento abanar ou soprar algumas folhas de minha memória.
Uma longínqua recordação apareceu, meio enrolada, meio esbatida.
Eu vos conto então.
Seria meio-dia. Pouco interessa a hora ou ser a um quatro de Dezembro de sessenta e nove.
Importa, isso sim, ser dia de partida. Dia de partida ainda incerta para mim. Dia especial, o mais, há tanto tempo ou desde sempre, desde o dia de chegada, a ser o dia mais desejado. Parecia ter sido há tanto tempo a chegada.
Tanto suor depois, tanto correr e como estavam tão diferentes, hoje, aquelas gentes, em tempo de partida, dos que outrora estiveram em tempo de chegada. Eram os mesmos. Faltavam alguns, demasiados, que mais cedo se foram da nossa companhia apartando. Ficou a recordação, a triste recordação.
Agora mantinha-me sentado numa viatura GMC ou parecida, mais velha, gasta e farta do que eu. Procurava, ali sentado, a sombra tentando fugir ao calor abrasador, pegajoso, calor já de hábito de assim por ali viver.
O cais logo ao lado, o Geba a correr para se deixar abraçar pelo mar, o Uíge parado esperando gentes, gentes em tempo de partida.
Mantinha-me quieto, atento a tudo, olhar vazio, olhar sem vida, olhar há muito roubado por aquela terra, talvez melhor, pelo que nela vira ou que nela vivera. Dois anos, cerca de dois anos de comissão e agora ali parado. O barco enorme no meio do estuário, a incerteza entre a partida ou de ficar na Comissão Liquidatária. Assinaram a partida e certamente não voltariam atrás. Confiar em tipos daqueles? Vamos esperar.
Será que um dia voltaria? Prometera voltar. Que sabia eu fazer depois daqueles anos todos? A licenciatura fora em Arte de Guerra. Nem para bacharelato dera em tão fraco soldado.
Manhã cedo, mais cedo do que o habitual, ainda assinei papéis e só depois me juntei à Companhia.
Marchamos em desfile dispensável, com passos há muito esquecidos. Desengonçados e irritados lá fomos, num esquerda direita, olha ao lado ou olha à frente, num marchar meio estúpido e desnecessário.
À frente de nós, garbosa, em meneios de braços e ancas, arreios, botas e instrumentos reluzentes, ia a fanfarra. Batiam forte no asfalto escaldante, faziam, para alegria deles, ouvir tambores e instrumentos de sopro numa lenga lenga de marcha militar.
Agora, ali estávamos nós esperando a ordem de embarque. Sempre a ordem. Certo é que as ordens vinham e, aquela máquina oleada, funcionava bem.
Parados, o Uíge logo ali, quase a puder ser tocado e a ordem nada.
- Meu Alferes o almoço e o jantar. Ração para o dia.
Estenderam-me a caixa e recusei.
- Esta é boa. Agora é que aparecem destas.
Aceitei e verifiquei ser melhor. Preferi mais o cigarro.
Finalmente a ordem de embarque. O Uíge a todos, sôfrega e ordenadamente engoliu.
Tudo organizado e as diferenças a notarem-se. Soldados para o enorme porão, mais acima os Sargentos e depois os Oficiais. O normal.
Apresentei-me ao Comandante das Tropas Embarcadas. Veio mais cedo para Portugal o antigo Comandante do BCAÇ 2852, ao qual eu estivera dependente como Companhia Independente. Era o Tenente-coronel Pimentel Bastos.
Agora a nada pertencíamos. Éramos tropa em dia de partida, gente a poucos dias de ser descartável.
Sentia o Uíge deslizando de encontro ao Oceano, a imitar o regresso das caravelas, Bissau cada vez mais longe e eu a acreditar que partia mesmo.
Passaram os dias. O Oceano a ficar, em cada dia que passava, mais revolto, escuro e frio. Aproximava-me rapidamente do “meu desejo do meu objectivo”.
Sempre, tivera, ao longo da comissão “desejos e objectivos” próprios, alguns a parecerem ridículos, como o de comer uma sandes de fiambre com manteiga e beber uma Cola fresca. Questão de sobrevivência ou de fuga à loucura. Talvez alguém entenda. Outros, felizmente para eles, não.
Este ultimo era passar sob a Ponte em Lisboa. Durava há meses este desejo.
Numa manhã gelada, com a luz ainda a querer furar o céu cor de chumbo, finalmente o grito a ser mil vezes repetido:
- Lisboa… Lisboa…
Aí estava a Ponte, a Ponte do ditador e eu a sorrir, a deitar baforadas com vapores de álcool da noite anterior e a olhar para o alto.
Vigas, pilares, tabuleiro com carros a circularem. A Ponte, a Ponte…
O cais a ficar mais perto, a cidade das sete colinas a vir ao nosso encontro, a outra banda à direita. Adeus desejo vai devagarinho e outro virá.
No ar sentia-se a inquietação daqueles quase ex-militares, sentia-se o nervoso. Mais audíveis os sons de quem em terra os esperava. O barco a acostar devagar, tão devagar e os militares a desesperarem.
Finalmente aquietou-se e desinquietaram-se as gentes. Apesar disso o desembarque foi ordeiro, saída de gente habituada a ter calma e estar na ordem, a saber o que fazer e ali quase a desesperar.
Pouco me lembro do desembarque.
Talvez a emoção, muito menor do que a da partida onde ninguém de mim se despedia, talvez, mesmo assim, a emoção tenha apagado esse momento. Talvez mesmo, tantos anos depois, não o queiramos a ser presente.
Cumprimentei a família, voltamos a marchar, embarcamos em autocarros e, horas depois estávamos no Quartel.
A papelada, as contas, a entrega de fardas e a troca por roupa civil. A noite gelada a vir e aquela barafunda a manter-se, os papéis a serem rapidamente a serem assinados. Tudo à pressa, tudo em fúria para sair. Até as despedidas quase a não serem. Adeuses apressados, despedida rápida.
Finalmente, noite já muito entrada, tudo parou.
- Estão aí os papéis para serem assinados nas repartições. Tudo certo.
A manhã a ser curta, o almoço no Fialho, a vinda para ultimar um ou outro pormenor final e a despedida do Coronel Branco, meu ex-Comandante em Bambadinca no BART 1904.
Despedi-me do Furriel Rei, o ultimo a sair e fui desfardar-me.
Chamaram-me um Táxi para “corrida” de cerca de quinhentos quilómetros e saí civil. Foram vários anos, vários anos a ficarem para trás. Tanto tempo perdido, interrompido ou o quê? Não recordo. Hoje sinto saudades da Guiné, daquela vida, da juventude perdida, como alguém disse ou da idade de então?
Que interessa isso agora. Reflexão breve? Pensemos nisso.
Vieram tempos em fúria de viver, em excessos com medo do tempo se esgotar. Um dia parei.
Interroguei-me. E agora T. ? E agora?
Há tanto tempo… tanto!
Fnd AB/11
Torcato Mendonça (terceiro a partir da direita) aquando da viagem com destino à Guiné em 1968
Torcato Mendonça na actualidade
____________Notas de CV:
(*) Vd. poste de 28 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8178: Controvérsias (120): Spínola, Amílcar Cabral, o Tarrafal, o golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980, os guineenses e os caboverdianos, nós e o blogue (Torcato Mendonça / Pepito)
Vd. último poste da série de 2 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8033: Os nossos regressos (24): A nostalgia dos tempos em que a amizade, a coragem, a dor, o sofrimento em "fogo lento", o sacrifício, a morte, a solidariedade, a alegria de viver, a camaradagem e tantos outros sentimentos nos tinham unido fortemente e, mesmo, para sempre (Manuel Joaquim)