1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 25 de Janeiro de 2016:
Queridos amigos,
O intuito é repertoriar tudo o que se tem publicado desde a independência, em Outubro de 1974.
O livro é apologético, os autores deslumbraram-se com a experiência revolucionária, resolveram passá-la a limpo e dá-la aos leitores de expressão francesa. Ressalta a tentativa fruste do PAIGC em adaptar o seu modelo orgânico nas matas ao país todo, pôr o jovem país independente a abastecer-se nos Armazéns do Povo, a esperar milagres de uma modernização agrícola que não chegou aos cantos e a confiar naqueles investimentos colossais no setor industrial que deram com os burrinhos na água, quase que logo à nascença.
Ler para comparar, e ver este entusiasmo, aparentemente genuíno, a um tempo em que os guineenses estavam desencantados com tanto desastre governativo.
Um abraço do
Mário
A Guiné-Bissau três anos depois (2)
Beja Santos
Dois franceses, entusiastas da experiência revolucionária que parecia estar a viver-se na Guiné-Bissau, nos primeiros anos da independência de facto, resolveram escrever um pequeno guia para que toda a gente conhecesse o que era o PAIGC, como fora conduzido a luta de libertação nacional, em que assentava a democracia revolucionária concebida por Amílcar Cabral, isto como apresentação. Terão sido cooperantes, querem apresentar dados sobre a Guiné-Bissau, se ela se mantém fiel ao passado revolucionário do PAIGC, realizações estão em curso, o que é naquele país a participação popular, como estão a funcionar as instituições sociais, quais os dados mais relevantes de reconstrução económica. Foi assim que surgiu
“La Guine Bissau D’Amilcar Cabrl à la reconstrution nationale”, por J.-CL. Andréini e M.-L Lambert, Éditions l’Harmattan, 1978.
Há para aqui muita confiança cega dos depoimentos que recolheram, usaram os dados estatísticos, como se eles estivessem providos de rigor, parece que estamos a viver no melhor dos mundos possíveis, no III Congresso do PAIGC, realizado em Novembro de 1977, também se procedeu a um balanço, concluiu-se que se avançara pouco para que o processo de luta de classes pudesse ser considerado como fundamental. O PAIGC estava concentrado na reconstrução nacional, queria fugir a uma política de desenvolvimento voluntarista, queria uma participação mais ativa, apelava às populações para se construir na base da unidade Guiné-Cabo Verde uma sociedade definitivamente liberta do homem pelo homem. Parecia que o III Congresso encontrava todas as células do PAIGC vivas e operantes. O que os autores não viram é que já havia carências de géneros, e os circuitos de comercialização se tinham desarticulado, que havia perseguições políticas e a segurança espalhava o terror, que não houvera reconciliação nacional, que já não se disfarçava o ódio visceral ao cabo-verdiano.
A herança recebida do colonialismo, no que toca ao setor industrial, tinha a ver com a produção alimentar e de bebidas, e o setor da reparação automóvel e naval. O partido-Estado tentou remediar esta situação, esboçando um programa em três direções: no setor industrial que permitisse a substituição das importações de artigos de primeira necessidade, destinados ao consumo interno; um segundo setor fundado na produção agrícola e silvícola para melhorar quantitativamente o consumo interno e a exportação; um terceiro setor moderno com a finalidade de promover grandes equipamentos e de procurar as divisas indispensáveis ao equilíbrio da balança de pagamentos. Os autores não dizem mas foi nessas iniciativas que se delapidaram milhões de dólares a fazer fábricas que no tempo de Luís Cabral trabalhavam quanto muito a 25%, uma mesmo não chegou a funcionar.
Os autores fazem uma cobertura apologética do novo sistema educativo, como estava a correr a transição nas escolas, a alfabetização dos adultos usando o método Paulo Freire, estava-se num período de transição e pretendia-se responder à grande preocupação de Amílcar Cabral que era de pôr as escolas a ensinar o trabalho e a combater o elitismo. Quanto ao sistema de saúde, os dirigentes do PAIGC queriam universalizar um sistema de saúde com base na orgânica do sistema de saúde durante a luta: hospitais regionais e de setor, postos sanitários, brigadas de saúde. Não se podia iludir que as autoridades coloniais tinham criado um bom número de postos sanitários, havia agora que ter em conta as enormes carências em pessoal médico e outros profissionais de saúde, faltavam equipamentos e não se podia dar resposta cabal à assistência medicamentosa. Os projetos em curso pretendiam recuperar e descentralizar hospitais regionais e de setor, postos sanitários e brigadas sanitárias e elevar a educação sanitária a todo o país, a mortalidade perinatal continuava muito alta, trata-se de uma missão educativa para a qual se devem implicar também as escolas e as comunidades rurais. Os autores concluíam esta apreciação fazendo referência à afirmação de Amílcar Cabral de que a saúde constitui a maior riqueza de um país, e dizem com inocência que a vontade de descentralização guia os projetos de equipamento sanitário no país, o obstáculo maior é a falta de meios financeiros e os quadros médicos. Por último, debruçam-se sobre a Justiça. Faz-se uma alusão ao Estatuto Jurídico e Administrativo da Guiné, de 1955, onde se discriminavam os cidadãos portugueses dos indígenas. Fidélis Cabral d’Almada, Comissário da Justiça referia-se ao caráter arbitrário da justiça colonial com relevo para os administradores, sipaios e representantes da polícia administrativa. Por etapas, o PAIGC tinha instituído um modelo de justiça popular até às zonas libertadas, trata-se de uma organização jurídica que comporta três instâncias: tribunais populares ao nível da aldeia ou de um conjunto de aldeias; tribunais da região ao nível da região administrativa; e o tribunal de guerra, a mais alta instância nas regiões libertadas, e detalha minuciosamente o funcionamento destas instâncias a partir d organização atual da justiça.
Nas conclusões do livro, os autores não escondem que a situação do país é precária e que a elaboração do primeiro orçamento de Estado foi uma terrível revelação. O problema financeiro, na época, centrava-se nas dificuldades da recolha de impostos pela ausência de serviços. Uma outra fonte de défice tinha a ver com a decisão da Assembleia Nacional Popular de isentar de imposto de reconstrução nacional, durante três anos, as antigas zonas libertadas. E havia o aumento dos salários mais baixos, estava por deslindar o problema complexo dos combatentes da liberdade da pátria e a integração na função pública dos numerosos quadros do PAIGC. Na hora atual em que os autores concluíam o livro a palavra austeridade dominava todas as decisões: dissolução de serviços tidos por não dispensáveis; congelamentos de postos de trabalho, desemprego para outros; limitação nas inscrições no sistema educativo, desmobilização parcial no Exército e o governo pedia a todos os responsáveis para vigiarem a recolha de impostos e controlar as saídas de divisas nas fronteiras. Havia que confiar na ajuda internacional que todos aqueles países que tinham apoiado o PAIGC durante a guerra colonial. Tinha-se levantado um problema delicado com a URSS, os seus barcos de pesca, era de domínio público, exerciam uma pesca predatória nos fundos marinhos e as autoridades de Moscovo pretendiam que a Guiné-Bissau se pronunciasse oficialmente por uma ideologia marxista-leninista, que o Partido recusava. A divisa de Cabral:
“Não queremos que o nosso povo volte a ser explorado”. A preocupação de desenvolver o nosso país na justiça social e de dar o poder ao povo é a base da nossa ideologia, Ainda era um argumento forte mas ao tempo em que o livro foi publicado já se vincara o divórcio entre as massas e as promessas do PAIGC.
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Nota do editor
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Guiné 61/74 - P17229: Notas de leitura (945): “La Guine Bissau D’Amilcar Cabral à la reconstrution nationale”, por J.-CL. Andréini e M.-L. Lambert, Éditions l’Harmattan, 1978 (1) (Mário Beja Santos)