1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Dezembro de 2019:
Queridos amigos,
É sempre bom descobrir um relato palpitante que não faz parte do rol das bibliografias institucionalizadas. O Capitão-de-Fragata Eduardo João da Costa Oliveira fora nomeado comissário encarregado da delimitação das fronteiras, viaja para a Guiné no início de 1888.
É um relato assombroso, na carta que anteriormente escrevera ao seu amigo Luciano Cordeiro verificou-se que não era tíbio nem dado a meias verdades, estas escreviam-se com o rigor da verdade, em frases nuas e cruas. A viagem começa em Bolama, e não se esconde o que se encontrou. O governador cedera-lhe um tugúrio para habitar e receber a delegação francesa, a descrição é chocante. São só dificuldades nos preparativos da expedição, são medos e hesitações. A descrição que ele faz da força pública de Bolama arrepia os cabelos. E quando se embrenha no mato, na região de Cacine, dá-nos parágrafos de grande beleza, desenha os pormenores das travessias e das florestas com vibrante paleta. Bom, a viagem está a dar os primeiros passos, preparem-se para as próximas emoções.
Um abraço do
Mário
Viagem à Guiné, para definir as fronteiras, 1888 (1)
Beja Santos
O Boletim da Sociedade de Geografia, 8.ª Série, N.º 11 e 12, 1888-1889, traz um importantíssimo trabalho do Capitão-de-Fragata Eduardo João da Costa Oliveira, sócio da Sociedade de Geografia e que fora o comissário português encarregado de estudar a demarcação das fronteiras à luz da Convenção Luso-Francesa. É um documento precioso, na minha modesta opinião, um dos mais valiosos sobre a época em referência. Como se poderá ver neste e textos subsequentes. Costa Oliveira fora nomeado para dar execução ao tratado assinado por Portugal e a França, parte com o adjunto, um antigo secretário-geral da Guiné, o Sr. Augusto César de Moura Cabral.
O seu primeiro punhado de observações dirige-se à ilha de Bolama, como se transcreve:
“Para o comércio e comodidade pública, seria proveitosa a construção de uma ponte-cais, não só para servir ao tráfego de mercadorias, mas também ao desembarque de viajantes e outros indivíduos que são forçados a exibir quotidianamente o grotesco espectáculo de atravessar uns cem metros da praia às costas dos pretos, vindo alguns de casaco e chapéu alto, ou de grande uniforme, como acontece aos comandantes dos navios nacionais e estrangeiros, quando vêm a terra.
Em toda a vila de Bolama há três ou quatro casas construídas de pedra, melhor, de tijolo e argamassa, e com primeiro andar; as demais são edificações abarracadas, construídas em adobe e cobertas de telha ordinária ou de tela de madeira.
Os quartéis, vastos, limpos, bem ventilados e de construção elegante; o hospital e a igreja estão situados num platô relativamente elevado.”
Fala na urgência em se mandar construir o Palácio do Governo a uns três quilómetros da praia, ao norte da povoação, deixando próximo da praia, para comodidade do comércio e navegação, a Alfândega, e deixa bem claro que a sede do governo devia estar em Bissau, que ele diz ser a capital natural da Guiné Portuguesa. A posição de Bolama tinha sido no passado uma boa escolha, não devia ter sido a capital da província, mas era um ótimo lugar para aí se estabelecerem instalações comerciais, isto quando Buba e as muitas feitorias espalhadas pelas margens do rio Grande exportavam a mancarra, o marfim, a borracha, a cera e outros produtos. Ora, estes pontos comerciais tinham sido abandonados e ele diz claramente que não existe um único comerciante em Buba, Bolama tinha perdido toda a sua importância comercial.
E descreve a capital:
“As ruas da vila são estreitas e sujas, não sendo empedradas nem macadamizadas, transformam-se na estação chuvosa em verdadeiros lodaçais. As praias imundas e malcheirosas, por se fazerem nelas todos os despejos, são, no dizer de muitos, uma das principais causas da insalubridade da ilha.
O interior de Bolama é pouco acidentado e ocupado por Brames, Fulas, Manjacos, etc. Aqui se produz milho, mancarra, arroz, feijão, batata-doce e outros géneros de menor valor”.
Fortim de Cacheu, gravura do século XIX, Arquivo Histórico Ultramarino, imagem retirada do site Fortalezas.org, com a devida vénia.
O que se segue é escrito com serenidade mas não ilude a crítica acerada, ele vai falar da casa onde ficou instalada a comissão que irá demarcar as fronteiras da Guiné:
“Era um primeiro andar de aspecto pouco asseado. Entrava-se por um quintal pouco limpo, cheio de fardos e caixotes, barris vazios, arcos velhos de pipa, etc., pertencentes ao inquilino da loja; subiam-se uns toscos degraus de madeira que terminavam num largo patim, onde se viam em pitoresca promiscuidade, colchões velhos, quinas velhíssimas, potes de barro, candeeiros partidos, etc.; aranhas enormes povoavam os tectos e paredes, e os mosquitos alvoraçados por tão inesperada visita vinham zumbir aos nossos ouvidos como que prevenindo-nos de que à noite seríamos mimoseados por estranho concerto… Abria-se uma porta e penetrava-se numa pequena sala alumiada por pequenas janelas sem portas de vidraça. Foi nesta casa tão própria e tão decentemente mobilada que recebemos a comissão francesa”.
É neste ambiente insólito que o Capitão-de-Fragata arregaça as mangas e planeia a viagem que se segue, procura completar o pessoal da expedição. Todos se furtam a colaborar, uns afirmavam que o grupo seria atacado à mão-armada e roubado pelo gentio, logo que se internasse no mato; outros diziam que o célebre potentado do Futa Djalon não iria consentir que as duas comissões entrassem nos seus domínios sem trazer valiosos presentes ou pagarem elevadas tributações. Sem desanimar, ele requisitou trinta praças, obteve vinte espingardas, mil cartuchos e um enfermeiro.
Enquanto descreve os preparativos da exposição revela o que era a força pública de Bolama: “Um único batalhão de caçadores, composto na sua grande totalidade de deportados e vadios de Angola, e uma bateria de artilharia com quatro peças. Os soldados do Batalhão de Caçadores n.º 1, na generalidade, portavam-se pessimamente: ladrões, bêbados, desordeiros e insubordinados, e também gente com os pés e pernas ulcerados e purulentos”. Mais adiante dirá que desertaram dezoito recrutas que levaram três espingardas.
Travessia do rio de Canjambari, imagem retirada do site WikiMilim, com a devida vénia
Em finais de janeiro chegou a Bolama a comissão francesa, dividiram tarefas, e cada uma delas se pôs ao caminho. Se todo o relato desta viagem já é vigoroso e revelador da efemeridade da presença portuguesa, o que se segue é de uma vibração empolgante, do melhor da literatura de viagens. A delegação portuguesa ruma para a Ilha Tristão, o objetivo é atingir Kandiafara, era aí que estava a delegação francesa (observe-se que esta povoação hoje da Guiné Conacri foi de grande importância no período da luta contra os portugueses, o PAIGC tinha aqui um incontornável ponto de apoio a tropas e logística). Da Ilha Tristão caminham para Biquese, importante povoação dos Nalus, situada na margem esquerda do rio Cacine, a oito milhas da sua foz. É um relato pontuado de luz e cor, e assim chegam ao encontro de Talibé, que é o chefe do Cantanhez.
Neste momento, o Capitão-de-Fragata faz um comentário muito ácido:
“A riqueza de Cacine, para mim, é bastante duvidosa e parece confirmar esta nossa opinião a facilidade com que a França desistiu dos seus imaginários direitos sobre aquele enorme estuário e o abandono do posto militar muito antes da delimitação!”. E o seu olhar dirige-se para as perdas, a contrapartida exigida pelos franceses fora excessiva, na negociação o governo entregara toda a região do Casamansa, os franceses queriam apoderar-se de Zinguinchor e da margem esquerda daquele formoso rio.
E diz sem ambiguidades: “Tivemos que ceder perante a retórica da França, apoiada por um milhão de marionetas”.
E prossegue a viagem para Kandiafara.
(continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 1 de julho de 2020 > Guiné 61/74 - P21127: Historiografia da presença portuguesa em África (216): A imprensa na Guiné, numa tese de doutoramento de Isadora de Ataíde Fonseca, denominada “A Imprensa e o Império na África Portuguesa, 1842-1974" (2) (Mário Beja Santos)