Queridos amigos,
Durante uns bons anos, correspondi-me com John Yong, sempre no período natalício, era aquele que seguramente nos unia, depois das atribulações que ele viveu em Roma. Foi rigoroso no cumprimento da sua promessa, mal chegou a Selangor enviou-me o que me devia, com mil agradecimentos. Visitei Roma mais algumas vezes, mas nada substitui o turbilhão emocional da primeira visita, a Pietà ainda não tinha sido escaqueirada por um louco, podia ser contemplada a curtíssima distância, é impressionante a anatomia de Cristo e o ângulo escolhido para sua mãe suportar o tronco, não conheço golpe de génio igual. Frente ao túmulo de São Pedro tive um acesso de choro, toda a tensão acumulada por aqueles meses de trabalho deu de si, e mais aliviado andei por ali às voltas até observar a grandiosidade do baldaquino de Bernini. À entrada dos Museus Vaticanos apareceu-me Yong, e começaram aquelas peripécias que aqui se contam. E tudo culmina com aquele acaso feliz, o encontro com Antonio Galli, que vai visitar Samba Silate, encontro mais inesperado não podia haver, durante anos procurei interpretar aquele sinal, sem sucesso. Foi a mais bela prenda de Natal de 1985, fora os beijos e abraços da família que não via há quase seis meses.
Um abraço do
Mário
Rua do Eclipse (52): A funda que arremessa para o fundo da memória
Mário Beja Santos
Ma très adorée Annette, infiniment adorée, procuro trabalhar dia e noite para que possamos ter uns bons dias juntos, de Bruxelas a Ypres, de Ypres a Pas de Calais e regresso à Rua do Eclipse. Não te deves escandalizar, mas haverá um desses seis ou sete dias que está reservado para reunião da Direção da minha associação, aguardamos entrevistas com funcionários da Comissão, são três: Ludwig Krämer, Jean-Marie Courtois e Jeremy Shean, tudo por causa dos projetos que com eles estamos a discutir, há que estabelecer rigorosamente os termos e propósitos da investigação, enquadram-se nos programas que esta Direção-Geral que tutela os consumidores pretende apoiar sobre o comércio justo, o consumo responsável e a responsabilidade social e ambiental. Será em função desta data que tu e eu estabeleceremos as viagens, pode dar-se o caso de termos de repartir a ida aos cemitérios de Ypres e aos de Pas de Calais.
Surpreende-me a tua capacidade de análise de todo este vasto dossiê que aceitaste a incumbência de organizar a minha comissão da Guiné. Procurei dar-te os esclarecimentos que me pediste, penso em próximo correio pormenorizar aquele rodopio de atividades que terá facilitado o quadro de depressão que tu questionas, como te enviei o diário das minhas atividades, deves ter reparado em nomadizações quase alucinantes, de manhã e à tarde, e poucas eram as noites em que não havia emboscadas (odiosas, a desobedecer a toda a lógica da segurança, andando à volta de uma pista de aviação com os holofotes apontados, teria sido um regalo de morticínio se os guerreiros do PAIGC soubessem daquela operação a todos os títulos imprudente…), as estadias noturnas nos Nhabijões, onde estava em curso um ordenamento, como é evidente nós não percebíamos patavina onde e como os ali residentes se encontravam com os guerrilheiros para troca de mercadorias e informações. E de repente tu introduzes um elemento novo, perguntas se depois da guerra, independentemente das estadias de 1990 e 1991, houve um ou mais momentos em que a Guiné entrou inopinadamente no teu estado de alma, e não pretendes ainda saber o relacionamento estabelecido ao longo dos anos com os feridos que ficaram a viver em Portugal ou que fugiram da Guiné e pediram nacionalidade portuguesa.
Dei voltas à cabeça e ocorreu-me contar-te um estranhíssimo episódio que vivi em Roma, nas vésperas do Natal de 1985. Fora contatado no verão desse ano pela Divisão de Alimentação da FAO, pretendiam que eu fosse numa missão para São Paulo, era um programa de Educação do Consumidor em meio extremamente pobre. Houvera anos antes, sobretudo na região de São Bernardo do Campo, motins e assaltos aos supermercados pela multidão esfaimada. O Brasil já não fazia parte do quadro da cooperação da FAO, esta estava virada para apoiar programas de países muito pobres, não havia razão de ser para cooperar com o Brasil. Mas atendendo ao apelo lancinante de ajuda, lançara-se um programa com peritos de várias áreas, escolhera-se um reputado professor chileno para coordenar a missão, Hugo Amigo, eu ficaria a trabalhar às suas ordens. Mesmo pensando nos filhos pequenos, era uma oportunidade de conhecer programas internacionais, vivia a contar tostões, pagavam 100 dólares por dias e mais 60 para ajudas de manutenção. Breve, trabalhei como um mouro, a organização dos contatos nas favelas teve bastante aspereza inicial, era olhado com desconfiança, colaboravam comigo várias técnicas da Coordenadoria do Abastecimento do Estado de São Paulo, formámos uma bela equipa, preparámos formadores locais, organizou-se um conjunto de encontros com os responsáveis das favelas, incluindo a realização de vários menus, e numa segunda fase fizemos reuniões com professores e alunos. Trabalhava de manhã à noite, dava-me descanso duas noites por semana em que calcorreava o Bixiga, o bairro italiano de São Paulo, visitava as livrarias abertas à noite ou procurava os concertos no Teatro Municipal, a Ópera estava fechada para obras. E os meses passaram, enviava obrigatoriamente telexes para responsável desta missão em Roma, François Sizaret, juntava todos os elementos da missão e com Hugo Amigo preparei na antevéspera de regressar um documento completo para a elaboração do meu relatório. E assim chego a Roma a 20 de dezembro ao nascer do dia, arrumo os meus trastes num albergue e parto para a sede da FAO, na Viale delle Terme di Caracalla, apresento-me a meio da manhã. O Sr. Sizaret ouve-me com atenção e pede-me para ter pronto o documento até 23 à tarde. Replico que venho literalmente esgotado, não vejo a família há seis meses, gostaria de ter um dia para visitar São Pedro e um pouco de Roma, peço-lhe a amabilidade de me deixar entregar-lhe o relatório em português até 22 à tarde, regresso a Portugal a 23 à noite, comprometo-me a enviar a tradução até 15 dias depois, proposta aceite. A única folga nesses dias era contemplar nas varandas do refeitório as vistas de Roma, as Termas de Caracalla num lado e o Circo Máximo em frente, espetáculo deslumbrante que jamais esqueci. Despeço-me do coordenador a 22 à noite, a 23 ao raiar da aurora avanço para São Pedro, era a primeira vez que ali entrava. E segui para os Museus Vaticanos, à porta um jovem de traços malaios, um tanto franzino, olhos como azeitonas, cabelo em asa de corvo, bigodinho recurvado sobre a comissura dos lábios, sorriso gentil, apresenta-se, chama-se John Yong, é engenheiro de mármores, veio de Pisa, segue amanhã para Singapura, e dali para a sua terra, Selangor, quando lhe digo que sou português, logo me fala em Malaca. Aceito acompanhá-lo, mas digo-lhe que o que me leva a este museu é sobretudo a Capela Sistina, alguns quadros de Rafael, há duas ou três salas que selecionara, tenho compras para fazer, ando a fazer ginástica com o tempo, ainda gostaria na manhã do dia seguinte de visitar o Fórum Itálico, ir a uma igreja conhecer a estátua de Moisés, escultura de Michelangelo. Pede para andar comigo, é a primeira vez que vem a Roma, naturalmente que desconfio de tanta solicitude, felizmente que trago um casaco com bolsos interiores com fechos de segurança, era o que mais me faltava agora ser empalmado por este jovem, sozinho ou com companhia atrás. Depois do esplendor da visita, proponho uma refeição rápida, apanhamos autocarro, saímos perto da Piazza Navona, ao saltar do autocarro o jovem dá um grito, tinham-lhe levado passaporte e bilhete de avião. Pede-se ajuda a um polícia para procurar numa cabine telefónica o número da Companhia Aérea de Singapura e também da Embaixada. Da companhia aérea afirmam preparar uma nova via para o bilhete, e da embaixada pedem para ir imediatamente buscar uma declaração. Nova viagem de autocarro para a morada indicada, novo insólito: John Yong parece blasfemar, mostra-me o interior da bolsa presa ao cinto completamente vazio, parece que desta vez lhe tinham limpo tudo. O jovem está completamente transtornado, procuro sossegá-lo, entramos na embaixada, meia hora depois dali saímos com uma declaração que permitirá que ele passe o Natal em Selangor. Agora há que remediar o quadro de miséria em que Yong se encontra, novo autocarro e pago-lhe no hotel as duas noites, anoiteceu, as lojas estão abertas até às sete da tarde e na Via del Corso tive sorte, foi farto o fornecimento de lembranças para o Natal de Lisboa. Adianto mais uns milhares de liras a Yong, não sei se tem pai e mãe, mulher e filhos, ele agradece e novamente enfatiza que me reembolsará até ao final do ano. Escolheu-se um local simpático para o jantar de despedida, pergunto de novo a Yong se o dinheiro lhe chega, ele confirma que sim, à cautela vou pô-lo no hotel, ele abraça-me comovido, e comovido eu estava, dia mais insólito não podia ter acontecido.
Repete-se a maratona turística na manhã de 24, olho constantemente para o relógio, há só aquele avião para Lisboa, vou buscar toda a minha bagagem e sigo para o Aeroporto Fiumicino. Entro no avião ajoujado de sacos natalícios, já houve responso no check-in, são malas a mais, lá mostrei os papéis de que vinha do Brasil, a menina fechou os olhos aos quilos a mais, e nem quis ver os sacos que me acompanharam ao avião.
E agora chega o momento em que procuro responder à tua questão, minha adorada Annette. Meto o que posso na bagageira, mas há imensa tralha aos meus pés, mal posso mexê-los. Vou junto à janela. É nisto que se senta ao meu lado um homem de estatura média, de idade incerta entre os 50 e 60 anos, de barba de missionário, senta-se discretamente e lá vamos a caminho de Lisboa. Puxo de uma revista, mas a fadiga é superior às minhas forças, fecho os olhos. Quando desperto, vejo o passageiro a meu lado, pasme-se, com o mapa da Guiné, mapa enorme, o dedo indicador da sua mão direita segue pelo rio Geba acima e parece afagar um ponto, ali se detém. A minha surpresa é total, não resisto em fazer conversa, digo-lhe que estive na Guiné-Bissau, peço-lhe licença também para pôr o meu dedo nos locais onde estive, observo que o meu companheiro parece sorrir, é um sorriso cúmplice, apresenta-se, diz que o seu nome é Antonio Galli, é missionário, diz mesmo a Ordem a que pertence que eu não consegui fixar, vai em romagem de saudade a um local onde deixou muitos amigos, Samba Silate. Atropelamo-nos na conversa, eu conheço Samba Silate, um imenso terreno fértil, talvez a bolanha mais fértil da Guiné, perto dos Nhabijões, e explico ao missionário que ia ali com alguma frequência à procura de indícios da presença de guerrilheiros, pelo menos duas vezes ali encontrei pirogas. O rosto dele está iluminado, toma-me como um confrade, como é que é possível este tipo de coincidência, os dois conhecemos Samba Silate, António Galli ali deixou cristãos, missionou entre Balantas, e num dado momento perguntou-me se naquele tempo de guerra não vira nada que lhe falasse da sua missão, fiz um esforço de memória, como se andasse, passo a passo, a caminhar por picadas entre os Nhabijões e Samba Silate e depois subindo por Amedalai, e subitamente surgiu-me uma cruz em cimento no meio do mato agreste, e perguntei a Antonio Galli se aquela cruz lhe dizia alguma coisa. Novo sorriso, era como se eu lhe estivesse a confirmar um sinal de Deus, ele que fora expulso pela polícia portuguesa, procurou explicar-me que estava entre dois fogos, era procurado pelos guerrilheiros, o seu apostolado impedia-o de tomar partido, alguns daqueles homens que tinham partido para a guerrilha eram cristianizados, assim ele acreditava, nunca fora maltratado, a polícia política considerava intolerável a manutenção de Antonio Galli em Samba Silate. E assim chegamos a Lisboa, ofereço-lhe hospedagem, agradece, tem irmãos religiosos à sua espera, percebi que ia para um convento ali para os lados de Carnide. E assim nos despedimos, para nós os dois, e graças a Samba Silate, o Deus Menino nascera umas horas antes. Espero que gostes desta história, agora vou dar voltas à memória quanto à vida tumultuosa que eu levava em Bambadinca e como deprimi, foi coisa de pouca monta, mas tive medo.
(continua)
Fotografia tirada no beliche de cima da nossa caserna conhecida por “a capela”. Uns preparavam-se para sair, alguém mostra a meia rota, eu e o Paulo estamos em farda de trabalho, havia que estudar as matérias da tática, que eu odiava, tanto como desmanchar e limpar a Mauser.
Balantas trabalhando na construção de um orique. Fotografia restaurada depois das destruições da guerra de 1998/1999, constava dos arquivos do Boletim Cultural da Guiné Portuguesa
Nota do editor
Último poste da série de 7 DE MAIO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22179: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (51): A funda que arremessa para o fundo da memória