Fotos: © José Casimiro Carvalho (2007). Todos os direitos reservados.
1. Por ocasião do nosso I Encontro Nacional, na Ameira, Montemor-o-Novo, em 14 de Outubro de 2006, conheci pessoalmente o José Casimiro Carvalho, camarada que teve a grande generosidade de me confiar, na altura, um valioso conjunto de cartas e aerogramas enviados a amigos e familares no período em que esteve em Guileje, Cacine e Gadamael (1972/73), e depois em Colibuía-Cumbijã, já em 1974, e ainda Bissau e Paunca (a seguir ao 25 de abril de 1974).
Um seleção de excertos das suas "cartas do corredor da morte" (*) já aqui foram publicadas oportunamente. Está na altura, por ocasião do nosso VII Encontro, em Monte Real, mo próximo dia 21, de lhe devolver os originais (!). Devo dizer que ele fez questão de os ofertar, em 2008, ao Núcleo Museológico Memória de Guiledje, por ocasião do Seminário Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de março de 2008). Manifestou-me expressamente essa intenção. Em bora hora não lhe fiz a vontade, ficando eu com os originais e entregando ao museu um coleção de cópias (digitalizadas pela Fundação Mário Soares). Estou por isso em condições, cinco anos e emio depois, de lhe devolver os originais que ele agora, sim, vai poder oferecer a uma das suas filhas, conforme é seu desejo. São coisas pessoais e intransmissíveis, e eu fico contente de servir de "correio", entregando as cartas e os arorgramas, enviados em 1972, 1973 e 1974, de diferentes SPM: 2728 (CCAV 8530, Guileje, Gadamael, Colibuía, Cumbijã, Bissau, 1972/74) e 5668 (CCAÇ 11, Paunca, 1974).
Entretanto, fiz ainda uma seleção da correspondência relativa à sua curta mas algo atribulada passagem pela zona leste da Guiné (Nova Lamego e Paunca).
Esta correspondencia é mais um elemento, importante, para a elucidação e compreensão do período final da guerra na Guiné, tanto no sul (Guileje e Gadamael) como na zona leste (Paúnca). Recorde-se o que o nosso ranger escreveu sobre essas peripécias em chão fula (*)
O que se passou em Paunca já aqui foi descrito no nosso blogue: os quadros (metropolitanos, brancos) da CCAÇ 11 foram expulsos do quartel de Paunca, sob ameaça de armas, pelos soldados fulas, amotinados. Recorde-se que a CCAÇ 11, tal como a minha CCAÇ 12, tinha-se formado originalmente em Contuboel (de Maio a Julho de 1969), fazendo parte da "nova força africana" de Spínola. Estive, portanto, com eles menos de dois meses, em Contuboel, com a malta da CCAÇ 11 (ou melhor, na altura, a CART 11) a que pertencia o meu amigo Renato Monteiro, o mediático homem da piroga no Geba .
A seguir ao 25 de Abril de 1974, fugido do inferno de Guileje e Gadamael, caído de paraquedas em Paúnca, na CCAÇ 11, o Casimiro Carvalhos vai conhecer o desespero e a raiva dos nossos aliados fulas, na fase do cessar-fogo e retração do nosso dispositivo militar no TO da Guiné... Este é um dos episódios mais chocantes da guerra da Guiné, aqui contados pelo nosso herói de Gadamael. Só é pena que ele tenha sido tão parco em palavras, no que diz respeito a este final da sua comissão ...
2. CCAÇ 11, Paunca, Agosto de 1974
por J. Casimiro Carvalho
(i) Com uma arma apontada nas costas pelos seus próprios soldados
(...) [Em 8 de Julho de 1973, saímos de Cacine, em LDG, a caminho de Bolama, e daqui] fomos para o Cumeré tirar outro IAO . Eu fui para Prabis com mais 12 homens, outros foram para Quinhamel ou Bijemita (??). Depois fomos para Colibuía-Cumbijã [janeiro-março de 1974], e aí fui destacado para rendição individual, sendo transferido para Bissau a fim de tirar estágio de Companhias Africanas, e durante esse estágio deu-se o 25 de Abril [de 1974].
Fui então para Paunca, CCAÇ 11 – Os Lacraus, onde me mantive até ao fim da minha comissão [ A primeira carta que temos de Paunca, é datada de 14 de maio de 1974, e foi escrita á máquina, e era dirigida à "maninha. Em 30 de abril de 1974, ainda estava em Bissau e dá conta, à mãe, em carta, do ambiente que se vive na cidade, com ]. Não sem antes levar um susto de morte, pois os militares africanos da CCAÇ 11 sublevaram-se. Quando eu estava a dormir, ouvi tiros, vim em calções com a Walther à cintura até ao paiol. Quando lá cheguei, eles estavam a armar-se e a disparar para o ar e eu, quando os interrogava pelo motivo de tal, senti o cano de uma arma nas costas, ordenando-me que seguisse em frente (até gelei)...Juntaram todos os quadros brancos e puseram-nos no mato...assim mesmo.
(ii) Socorridos no mato pelos inimigos de ontem!
Caminhámos muito, de noite, desarmados, e fomos até um acampamento de guerrilheiros do PAIGC, contámos a situação e eles mandaram um punhado deles a Paunca. Gritaram então lá para dentro:
- Têm 5 minutos para se entregaram e restituir o quartel aos brancos ou destruímos tudo! - Eles, os fulas, entregaram-se.
No fim, já de abalada, fomos ao paiol, juntámos todas as granadas e explosivos, e eu fui encarregado de os fazer explodir , ao redor de uma enorme árvore. Que cogumelo de fogo, impagável !
(iii) Por fim, a peluda...
Fui encarregado de comandar uma coluna de 22 viaturas até Bissau, por Fajonquito, Jumbembem Farim, Mansoa, Nhacra…Bissau. Ao fazer o espólio, não tinha G3, mas , como não tinha…
- Ó pá, estiveste em Guileje ?... Então ‘tá bem, não entregas.
A seguir vim de avião para a peluda. (...).
3. Cartas de Paúnca, SPM 5668: Em 20 de maio de 1974, J. Casimiro Carvalho escreve um aerograma à mãe, Angelina Carvalho, então a residir em Vila Nova de Gaia:
Paunca, 20 de maio de 1974
(...) Então o Luís, está em Lamego ? Mande dizer o nº dele e o nome todo e qual é o SPM dele, pois eu estou perto. [O aerograma é acompanhado de um esboço do mapa, com a posição relativa de três localidades: Paunca - Pirada - Nova Lamego] (...)
(...) Ontem estive de sargento de piquete e fui guardar um recinto onde havia batuque. Olha, é bonito, os fulas a lutar género luta greco-romana, eles muito fortes , e ao som da batucada. Até vibrei.
Não tenho feito nada, é só dormir, não saí nenhuma vez para o mato, pois aqui é raro, e isso só por si já vale muito. É menor o perigo que corremos. Um beijo do seu José Casimiro.
No mesmo dia escreve ao pai, Ângelo Carvalho, também outro areograma, do SPM 5568:
Paunca, 20/5/74
Paizinho: (...) Vou pô-lo ao corrente, mais ou menos, do que se passa por aqui: Há 8 dias, fomos informados que daí em diante não podíamos fazer fogo de armas pesadas, a não ser em caso de ataque ao quartel. No mato, mesmo que encontremos um Grupo IN, só abrimos fogo se eles abrirem, e neste caso [devemos] tentar acabar com o tiroteio, logo que possível. A aviação não bombardeia.
Quando foi formado o Governo Provisório, o presidente do Senegal, Senghor, enviou o seu avião pessoal a Lisboa, para ir buscar o representante da Junta [de Salvação Nacional] e tentar um acordo prévio de cessar-fogo, do qual ficou assente: o PAIGC anulou todas as operações de grande vulto (como a de Guileje) que estavam planeadas para o fim da época seca, ou seja, "agora", enquanto que Portugal se comprometeu a não abrir fogo sobre guerrilheiros do PAIGC, prioritariamente.
Portanto temos praticamente um cessar-fogo não oficial, que será oficializado em Londres, no dia 25, entre Aristides Pereira e Portugal. Isto está a correr pelo melhor, não acha ? Nós andamos todos contentes, se bem que isto a mim não me vem beneficiar quanto ao fim da comissão que se avizinha. (...).
Primeira parte do documento [, Informação,] escrito à máquina e datado de Paunca, 7 de junho de 1974, dando conta dos primeiros contactos das NT com os guerrilheiros do PAIGC, no subsetor de Paunca
Paunca, 10/6/1974
Esboço de aerograma (3 folhas), escrito no dia de Portugal [10 de junho de 1974]. Uma parte do conteúdo seguirá para mãe, em carta manuscrita, enviada nesse mesmo dia. Outra parte foi [ou já tinha sido dactilografada, com data de 7/6/74] sob a forma de uma espécie de comunicado [ Informação,] cujos destinatário(s) se desconhece.
(...) GUERRA E...PAZ
Guerra... palavra que pouco dignifica. Guerra, sinónimo de destruição. Prenúncio do fim. Mas... também há a paz. E para isso se está a tarablhar neste momenmto em todo o Portugal.
Ontem [leia-se: 6 de junho de 1974], algures na Guiné, tropas portuguesas (brancas), comandadas por um oficial superior, dirigiram-se em missão de paz a um destacamento inimigo, em território português, perto da fronteira com o Senegal, deixando todo o armamento nas viaturas [e] deparando com uma colossal e bem montada emboscada de segurança. Numa atmosfera de confiança, inimigos de ambos os lados cumprimentaram-se, os dois comandandantes inimigos entraram num amistoso diálogo, findo o qual se chegou à conclusão que... o PAIGC, como nós, anseia pela paz.
Esses mesmos inimgos disseram que teriam imenso prazer em contactar com tropas africanas, em serviço nas nossas fileiras, para trocarem impressões e concluirem o que mais lhes interessava.
Hoje [, 7 de junho,], algumas dezenas de tropas africanas, comandadas pelo mesmo oficial superior, dirigiram-se ao mesmo local, procedendo como no dia de ontem. Encontraram um clima de amizade, não foram molestados, e até foram obsequiados com galhardetes e emblemas do PAIGC. Também se procedeu à troca de pequenas peças de fardamento.
Imaginem, um momento tão importante, um momento nunca conseguido durante tantos anos de guerrilha. Parece inconcebível. Mas aconteceu. Nunca em toda a história mundial, que eu saiba, antes mesmo de um cessar-fogo, se viu istio, duas forças inimigas, como uma família, reunidas em franca amizade, esquecendo todos os antecendentes, pois eles sabem que com isso contribuem para finaliziar o que há tanto tempo vem vitimando e continuaria a vitimar inocentes [...]
Estou deveras emocionado, eu que como tanto outros vi tombarem amigos, companheiros de farra e de luta, amigos para o bem e para o mal, e para quê ? [...]
Ficou, nesse encontro, determinado que amanhã o inimigo vinha a um quartel nosso visitar-nos, conhecer-nos, nós que nos matavámos [uns aos outros] sem nos vermos. Enfim, agora como está previsto, conhecer-nos-emos, se não houver imprevistos, e eu, que tanto os odiei, com o ódio que ganhei com a guerra, devido ao sangue que vi derramar, irei... talvez - quem sabe ? - ABRAÇÁ-LOS. Sim, porque eles lutaram para defenderem o que por direito lhes pertencia, um chão deles, bravos soldados como nós.
Fica aqui, pois, o meu desejo para que tudo se desenrole como desejamos, no dia de Portugal, nas conversações de Londres. Somos livres, mas ainda não temos a PAZ.
Um militar que anseia pela Paz.
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Notas do editor
(*) Vd último poste da série > 25 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3354: Guileje, SPM 2728: Cartas do corredor da morte (J. Casimiro Carvalho) (6): O nosso querido patacão
(**) Vd. poste de apresentação à Tabanca Grande > 25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)
(**) Vd. poste de apresentação à Tabanca Grande > 25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)
(***) Último poste da série > 25 de março de 2012 > Guiné 63/74 - P9659: Os nossos últimos seis meses (de 25abr74 a 15out74) (7): Alguns dados biográficos sobre o último CEM do CTIG, Coronel do Corpo do Estado Maior, Henrique Manuel Gonçalves VAZ (Luís Gonçalves Vaz)