sexta-feira, 15 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1077: A tragédia do Quirafo (Parte V): eles comem tudo! (Paulo Santiago)


Guiné > Região de Bafatá > Saltinho > Fevereiro de 2005 > O abutre ou jagudi. Foto do João Santiago, filho do Paulo Santiago, que o acompanhou na viagem de todas as emoções.-


Foto: © João/Paulo Santiago (2006)


Texto do Paulo Santiago (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72)



Luís:

Aqui segue mais um mail para ver a estirpe do proveta [Capitão Lourenço, comandante da CCAÇ 3490, sedeada no Saltinho, 1972/74]

Passaram-se uns quinze dias após o meu regresso de um mês de licença na metrópole. O Lourenço estava de férias e a companhia andava abúlica e acabrunhada. Tinha passado muito pouco tempo sobre a Tragédia do Quirafo (1).

Naquela manhã encontrava-me no bar, quando se aproxima um heli. Dirijo-me ao heliporto e distingo, quando a aeronave baixa, o Caco Baldé. Vinha acompanhado pelo seu novo ajudante de campo, Cap Ayala Boto e pelo Major Fabião.

Após os cumprimentos da praxe, o Spínola pergunta-me pelo comandante da companhia, respondendo-lhe estar de licença e apenas um dos Alferes, o Garcia, estar no quartel
Os outros dois estavam nos destacamentos. O Garcia tinha ficado no bar de volta da bazooka matinal para a hepatite. O Fabião mandou um soldado chamá-lo. O General vai-me interrogando sobre o que se passa na companhia, falo-lhe no moral muito em baixo, ao que ele me interroga de novo:
- E para além disso?

Fico intrigado sem saber onde ele quer chegar. Aproxima-se o Garcia, de farda nº2 e chinelos de enfiar no dedo, o Fabião passa-lhe uma descasca, o Caco não se pronuncia. Fico a saber o que se passa, o Major saca do bolso um papel: era uma carta enviada por um soldado da companhia ao Spínola, queixando-se da comida. O Fabião relata-me por alto o que vem na carta: durante a sobreposição com a 2701, comiam bem e com qualidade, após aquela companhia ir embora a comida era péssima...

Concordei ser verdade, eu próprio já tinha comentado com os meus Furrieis a superior qualidade das ementas no tempo da CCAÇ 2701. Não estive presente durante a sobreposição, mas sabia do que se passava antes de ir para Bambadinca.

O General entra nas casernas-abrigos, onde alguns militares ainda estavam deitados, e vai ouvindo as queixas expostas na carta. Correu todas as casernas, dirigindo-se em seguida ao depósito de géneros. Pede as ementas ao Vaguemestre e, após consulta, diz-lhe:
-O senhor tem pouco jeito para isto. Os recursos são poucos mas falta-lhe imaginação.

Vira-se para o 1º Sargento:
-Explique-me como era possível comerem com qualidade com a outra companhia e terem lucro e agora comem mal e logo no primeiro mês têm um prejuízo de trinta contos?

Responde o 1º Sargento:
-Meu General, não tenho nada a ver com isso. O nosso Capitão disse-me, ainda antes de aqui chegarmos, as contas da alimentação e cantina eram só com ele e com o vaguemestre.
-Estou esclarecido, diz o Caco -. E, virando-se para o Ayala, diz-lhe:
-Toma nota para chamares o Capitão à minha presença no dia do regresso de férias.

Fala pela primeira vez para o Alf Garcia:
-Senhor Alferes, tem dois dias para substituir o vaguemestre. Passa-o para atirador e escolhe um atirador para o render no depósito de géneros. Informe após substituição. Quero o 1º sargento metido nas contas.

Houve melhorias após a visita do Caco.

Paulo Santiago (2)

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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)

25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)

26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)

28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)

(2) O subtítulo deste post é da responsabilidade do editor do blogue: é um verso do refrão da célebre canção de protesto do Zé Afonso, muito em voga na época, Vampiros:

Eles comem tudo,
Eles comem tudo,
Eles comem tudo,
E não deixam nada!

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