Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 11 de setembro de 2006
Guiné 63/74 - P1062: Uma cena em Bambadinca: quando o Major caiu da cama (Paulo Santiago)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Campo de futebol de Bambadinca, em 24 de Dezembro de 1971. O Caco - alcunha por que era conhecido o Com-Chefe - passa revista. O Alf Santiago vai atrás com o Cap Tomás, ajudante campo do Spínola.
Foto: © Paulo Santiago (2006)
Mensagem do Paulo Santiago:
Luís
Mando-te uma história com algum caricato, sendo o personagem principal o A.C. (1), já aqui referido no nosso blogue.
Quando o Major caiu da cama
Uma bela noite, em Dezembro de 1971, após o jantar, dedilhando a viola, o Major A. C. lamenta-se ao Vacas, a dedilhar outra viola, andar desde a manhã sem mijar. O médico, [o Vilar,]
tinha ido jantar ao Rendeiro [,comerciante branco de Bambadinca] o Zé Luís aproveita para receitar um tratamento imediato:
- Meu Major, beba dois ou três whiskies com Perrier - aconselhou.
O A. C. , preocupado com a falta de diurese, aceita o conselho. Bebe dois uísques, bebe três, bebe quatro, começa a ficar com os copos e continua bebendo. Uma monumental bebedeira. Cantou no Bar até às duas da madrugada, não deixando ninguém dormir.
Todos os dias, às sete horas, tinha a formatura da companhia de milícias, onde estavam presentes o comandante e 2º comandante, Polidoro [Monteiro] e A.C. .Seguia-se um desfile até ao campo de futebol com o acompanhamento rufante de dois tambores.
Naquela manhã, com a companhia formada, o Polidoro presente, eu mando ombro arma, faço a continência e grito:
- Meu comante, dá licença, companhia pronta!
Diz- me:
- Mande descansar a companhia e faça o favor de ir chamar o nosso Major.
Dirijo-me ao quarto do A.C., bato à porta e uma voz debilitada pelo álcool, diz:
- Entre .
Entrei e digo:
- Meu major, o nosso comandante está à espera para apresentação da companhia.
- Oh Santiago, diga ao nosso comandante que estou adoentado e levanto-me mais tarde.
Transmito estas palavras ao Polidoro Monteiro. Reacção dele:
- O caralho é que está adoentado, doentes ficámos nós com o barulho que fez à noite. Quem não sabe beber, faz destas cenas.
Vira-se para os dois militares dos tambores e diz:
- Acompanhem o nosso Alferes e despertem o nosso Major.
Reparo que vão todos excitados, imaginando um despertar fora do vulgar. Vão à minha frente, abrem a porta do quarto, tocam os tambores. O A. C. salta da cama e cai esparramado no chão. Uma cena macaca.
Passados poucos minutos lá chega, esbaforido, à parada, ainda a compor a camisa começando logo a ouvir uma piçada:
- Não tem respeito por esta companhia, há meia hora esperando pelo senhor. Não teve
respeito pelas pessoas que não deixou dormir. Um péssimo exemplo! - atira-lhe o Polidoro sem lhe dar hipóteses para desculpas.
Enfim, uma luta entre um Infante e um Artilheiro.
Paulo Santiago
(ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Saltinho, 1970/72)
PS-Nunca tive bom relacionamento com o A. C.: era um emproado.
________
Notas de L.G.
(1) Oficial superior do BART 2917 (Bambadinca , 1970/72). Uma vez que ainda está vivo e até já terá manifestado interesse em visitar o nosso blogue, decidi pôr o seu nome em iniciais, sem consultar o Paulo Santiago que, decerto, irá compreender e aceitar a minha decisão editorial (3)... No blogue, todos os ex-combatentes, amigos e inimigos, devem ser tratados com a dignidade e a compaixão que todo o ser humano merece... Este episódio, de qualquer modo, é da esfera pública, é contada por um dos seus intervenientes e faz parte da nossa memória...
Conheci-o, ao A.C., a partir de meados do ano de 1970. Na altura, era um militarão que nos obrigava a fazer continência. Todos nós apanhámos bebedeiras de caixão à cova. Um major não era diferente dos outros militares. Só com uma diferença: era pressuposto ser um líder, um comandante, ser o exemplo vivo do RDM...
Ainda no meu tempo assisti a uma cena parecida, em que ele foi o protagonista... Dizem que foi a sua estreia em matéria de copos, na Guiné... Um dia chamei-lhe nomes feios, na sequência da terrível Operação Abencerragem Candente (26 de Novembro de 1970) (2)... Passei-me dos carretos... Mas tudo isto é fado e passado... Já não lhe guardo rancor... Éramos todos de carne e osso...
(2) Vd. post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970) (Luís Graça)
(3) O Paulo mandou-me depois a seguinte mensagem: "Acho que fizeste bem ao utilizares unicamente as iniciais" (12 de Setembro de 2006).
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário