terça-feira, 12 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1066: Homenagem a Amílcar Cabral, o Inimigo Libertador (João Tunes)

Guiné > Anos 60 > Uma das mais emblemáticas fotos de Amílcar Cabral (1924-1973), fundador e dirigente do PAIGC. Hoje, faria 82 anos se fosse vivo. E se fosse vivo, estaria ainda no poder ? E se sim, como o exerceria ? Sabemos da desastrosa ascensão, da mata ao poder, por parte de outros líderes da guerrilha nacionalista e anti-colonialista, nomeadamente na África dita portuguesa. Ninguém está em condições de responder a esta pergunta, que é uma mera especulação académica.
João Tunes prefere, em vez de mitificá-lo, "prestar-lhe tributo de homenagem como ilustre Inimigo Libertador": sem ele, a sua luta e a sua liderança, à frente do PAIGC, dificilmente teríamos tido o 25 de Abril e a reconquista da liberdade e da democracia (LG).

Foto: Fonte desconhecida


Texto do João Tunes:

NO 82º ANIVERSÁRIO DO NASCIMENTO DE AMILCAR CABRAL

Caro Luís,
Hoje é dia de importante efeméride que nos respeita. Mando-te para eventual publicação no nosso blogue um texto que hoje editei sobre Amilcar Cabral no blogue Agua Lisa (6)

LEMBRANDO AMILCAR CABRAL, O INIMIGO LIBERTADOR

Se ainda estivesse vivo, Amílcar Cabral celebraria hoje o seu 82º aniversário. É impossível prever, caso não fosse assassinado em 1973, a um passo de tempo da libertação total e absoluta da Guiné-Bissau e de Cabo Verde, se Cabral hoje ainda estaria vivo e no poder, como exerceria ele a sua época de estadista, se seriam diferentes, melhores ou piores, as vivências dos povos e nações de que ele foi líder incontestado na fase de luta de libertação contra o colonialismo português.

Olhando para o rasto deixado por outros libertadores como Luís Cabral, Nino Vieira, Samora, Chissano, Guebuza, Agostinho Neto e Eduardo dos Santos, os exemplos não são nada animadores quanto a previsões deste tipo. Resta a mera esperança confiante em que a enorme envergadura intelectual e política de Cabral o tornaria distinto, para melhor, dos demais companheiros de luta anti-colonial.

De qualquer forma, tal como Mondlane, o seu martírio e perda durante a luta armada, deu-lhe o manto do mito e eximiu-o da demonstração prática de como conduziria o período pós-independência. Sobretudo, como iria traduzir-se, com ele no poder, o deslindar da sua fantasiosa e misteriosa utopia da unidade Guiné-Cabo Verde (utopia esta que, a par da Pide e do exército colonial, mais umas tantas conexões geoestratégicas talvez simétricas, o levou até às rajadas fatais que o abateram).

Se não se quiser entrar em fantasias panegíricas (1) ou diabolizantes, Cabral só pode ser historicamente julgado pelo que foi e pelo que fez entre a sua juventude e 1973. E, neste campo, Amílcar Cabral avulta como uma das maiores e mais prolixas inteligências políticas de África e do Mundo em todos os tempos. Como homem de cultura, mestre em sínteses de sócio-culturas centrípetas, como político, ideólogo e diplomata, como chefe militar e organizador administrativo, Cabral foi exímio, criativo, exemplar e eficiente.

Em tempo algum, os portugueses (alheando-nos da questão da legitimidade de quem, em cada momento, os representou em governo) se bateram, em guerra, contra um líder inimigo tão talentoso, tão persistente e tão eficaz. Talvez porque coincidiu, além das excepcionais capacidades próprias, que este inimigo de guerra, mais que qualquer outro que nos combateu em qualquer outro tempo e lugar, conhecia como os dedos da sua mão a cultura, o ser e o estar dos portugueses, sobretudo as nossas grandezas e misérias, além, é claro, as nossas sempre abundantes mediocridades.

De tal forma foi tão bem construída a sua praxis que o seu slogan Combatemos o colonialismo português, não os portugueses não foi nem figura de retórica nem esguicho de propaganda. E tanto foi assim que os portugueses, combatendo-o e assassinando-o, em vez de o derrotarem, libertaram-se pela sua luta e pela sua liderança, pois foi muito devido ao PAIGC de Amílcar Cabral que tivemos o 25 de Abril, a democracia e a liberdade.

Recordar hoje Amílcar Cabral, pelo menos no meu caso de português que o combateu na guerra, resume-se a prestar-lhe tributo de homenagem como ilustre Inimigo Libertador.
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Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 19 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P971: Amílcar Cabral e a Cuba de Fidel Castro ou os mortos também se instrumentalizam (João Tunes)
(...) Amílcar Cabral, assassinado em 1973, hoje, só tem contas a ajustar com a história pelo que fez em vida e por aquilo que lutou na forma como lutou. Especialmente perante a memória dos povos da Guiné e de Cabo Verde cujos destinos invocou como causa da sua vida e marcou indelevelmente. Pela sua inegável envergadura, mais a força do impacto do seu martírio, a figura de Amílcar ainda sofre do efeito da névoa do mito. Um mito construído, a meias, entre os que o diabolizam e o santificam. E um mito é sempre uma redução. (...)

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