quarta-feira, 13 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1069: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (13): Para quando África ?

Guiné > Região Autónoma de Bissau > Setembro de 2006 > Uma bolanha cultivada com arroz

Foto: © Paulo Salgado (2006)

Guiné- Bissau > Bissau > Setembro de 2006 > Hospital Nacional Simões Mendes : serviço de urgência
Foto: © Paulo Salgado (2006)
Texto de Paulo Salgado (ex-Alf Mil Cav, CCAV 2712, Olossato e Nhacra, 1970/72; administrador hospitalar, actualmente cooperante em Bissau)
Meu Caro Luís Graça, Amigos (Camarigos):


Insatisfação ou discordância com a Tertúlia? Muitas vezes terá acontecido de tudo um pouco - não nego. Produziu-se tanto trabalho com nível que não me deixou indiferente e muito menos insatisfeito. Discordante, muitas vezes, e disso dei conta há meses atrás...

Quem está aqui em trabalho intenso, meses a fio, deixa coisas para contar num amanhã, escrevinha outras para uma memória que há-de ser escrita, agora e sempre falando da Guiné sob outros ângulos e com outras visões e tu perguntarás e os camaradas perguntarão:
- Por que razão não bombolaste? (1)

E eu:
- Consolei-me com as discussões à volta dos temas mais preferidos dos camaradas tertulianos:a guerra - certamente aquilo que mais sentem hoje, e ainda, na carne e na alma (2)...

Li as prosas do Marques Lopes, as críticas do Didinho (outsider muito crítico). Maravilhei-me com as palavras saborosas e sentidas do Beja Santos (que revi, em Bissau, aqui em 1991), andava ele preocupado com a limpeza e higiene dos alimentos .

Um dia entrou-me no gabinete:
- Você é que é o Paulo Salgado?

E depois fomos visitar o Coronel Jaquité... Lembras-te, Beja Santos, e do pôr-do-sol no Cumeré, depois da visitação e reencontro com esse inimigo amigo?

Pois é:
Já correm de novo as águas violentas no Saltinho;
Já ardeu a casa do Pansau em Uaque (ele, coitado, fugiu para Cabo Verde à procura de melhores dias - oxalá que não se tenha metido nos barcos para as Canárias...) (3);
Já andam a transplantar o arroz de novo;
Os putos brincam com carrinhos de papelão nos regatos das chuvas
e as bajudas lavam os corpos debaixo da chuva abençoada;
e o povo sempre com esperança...

As ONG proliferam (algumas têm valor, claro, outras, nem tanto...valha-me Deus, um qualquer)
e o Banco Mundial aperta. É a roda que roda...

Trabalho?
Sim, imenso.
Naquele perímetro hospitalar, nada de novo, infelizmente para mim, infelizmente - sobretudo - para os doentes;
E a cooperação é feita aos repelões...
Desculpa não falar da guerra,
das emboscadas que nos fizeram,
do Sebastião que morreu sem saber que estava numa guerra...
Do Horácio: - Meu alferes, eu tenho que apanhar uma hepatite para ser evacuado...
Desculpa, Luís.
Mas sabes:
Este ano ainda não chegou a cólera;
Valha-me Deus, é melhor nem pensar, pois aquele hospital está tão carenciado...

Já temos o que chegue e o que não chega:
- Olha, olhai: uma vez fizemos um golpe de mão e fomos deslocados para o objectivo em heli.
Sabes o que vimos? Tabancas ardidas pelos Fiats (não era assim que se chamavam os caças?) Velhas e velhos esbaforidos. E putos assustados. E encontrámos papéis espalhados no caminho: Soldados, desertai, esta guerra não serve ninguém... Bom, não me lembro se eram estas as palavras, mas os panfletos continuam numa gaveta em casa.

As cartas de amor/carinho/paixão/ - miudinhas, às vezes com minudências nuas cruas suaves - mas tão curiosas - do Lobo Antunes (4)- deixaram-me a pensar e a reflectir na grandeza e na pequenez que nós somos (quando a minha mulher mas lê ao fim destas tardes chuvosas de Agosto e Setembro - eu tinha-as trazido porque era do LA que se tratava).

- Ainda bem, dirás tu, com a tua benevolência. Ainda bem que somos grandes e pequeninos.

Esteve cá um parasitologista do INSA - Porto (5). Ficou admirado. Cientificamente, claro. O caso não era para menos:
- Há tantos parasitas.
E eu disse-lhe:
- Venha passar aqui uns mesitos e vai ver as troponossomíases, as bilharzioses, as filiarises (não sei se se escrevem assim estas doenças) e outras...

Sabes, Luís, anda aqui tanta gente: franceses, suecos, espanhóis, americanos, senegaleses, que sei eu? Até aconteceu a reunião da CPLP. E eu sem dar notícias...O bombolom não ecoou...

Lá no Hospital há traumatizados há meses à espera de intervenção. Era isto que eu ia contar?
Mas hoje apeteceu-me. 10 de Setembro de 2006. (Ouvi passar uma ambulância uivando - o que irá fazer ao Hospital com o doente?).

Se calhar foi porque me chegou às mãos Para Quando África, entrevista de René Holenstein a Joseph Ki-Zerbo, edição do Campo das Letras (Porto, 2006, c. € 14). Polémico, é certamente. Mas muito profundo.

Mantenhas pa tudus
Paulo Salgado
__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. o último 'bombolom' do Paulo Salgado, com data de 2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCI: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (12): reviver o passado em Olossato
(2) Julgo que o último post assinado pelo Paulo Salgado foi de 3 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVIII: Do Porto a Bissau (13): Notícias do Paulo Salgado
(3) Vd. post de 30 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLXXXV: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (10): ontem e hoje em Uaque
(...) Hoje, ao fim de tarde, no troço desta picada faz-se tarde e todos sabem que a noite está aí, negra: o rapazio, ao som dos últimos assobios em toscos mas belos instrumentos de lama fabricados, empurra as vacas para o redil junto das tabancas, as mulheres recolhem as crianças e as galinhas, o Pansau acaba de entaipar as entradas da casa que planificou e construiu (tenho o filme de meses de trabalho) para evitar a devassa enquanto não tiver o telhado feito de cibes, e o capim respectivo, uma mulher puxa o último balde do fundo do poço para prevenir uma noite longa, o Martinho já passou por mim há uns minutos com meia dúzia de peixes que apanhou na armadilha de um riacho que enche na maré cheia, uma mulher nova com os filhos às costas troca um chau comigo e logo dois meninos: chau" (...).
(4) Referência ao último livro de António Lobo Antunes > D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da guerra. Organização e prefácio Maria José Lobo Antunes e Joana Lobo Antunes. Lisboa: Dom Quixote, 2005.
(5) Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge

Sem comentários: