quinta-feira, 14 de setembro de 2006

Guiné 63/74 - P1070: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (10): A visita do soldado desconhecido

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > 1968 > Pel Caç Nat 52 > O improvisado padeiro, Jobo Baldé, a amassar a farinha num cunhete de granadas de bazuca.


Capa do livro Agatha Christie, Poirot desvenda o passado. Lisboa: Livros do Brasil, s/d. (Colecção Vampiro, 1). tr. do inglês, Five Little Pigs). Ilustração de inspiração surrealista do artista Cândido Costa Pinto.
Texto e fotos: © Beja Santos (2006)

Mensagem do Beja Santos, com data de 1 de Setembro de 2006:

Caro Luís, segue mais colaboração e por muito que te surpreendas o que aqui se relata no essencial aconteceu. Espero que tenhas tido umas belissimas férias. Como se aproxima o ano lectivo decidi ir gozar uma última semana no meu casebre no concelho de Pedrogão Grande. Lá estarei até 11 de Setembro, depois de fazer os últimos exame na tarde de 4.

Atendendo a que estou a desenhar um rol de memórias que poderá ter uma extensão apreciável, tendo em conta tudo aquilo que li dos depoimentos dos nossos camaradas em que nada se aproxima deste projecto de longo fôlego, para evitar susceptilidades ou mal entendidos quanto à natureza deste cometimento, talvez valha a pena eu dispor da tua opinião sincera da melhor estrutura e uso no espaço e no tempo dentro do blogue. Quando tu quiseres, a partir de 12 de Setembro, conversamos à mesa ou por telefone.

Um abraço do Mário.
Comentário de L.G.:
Obrigado, Mário, por quereres e poderes partilhar connosco as tuas memórias do Cuor - para além da tua grande sensibilidade e cultura -, uma região da Guiné que nos fascinou a todos, e onde passámos bons e maus momentos... Por mim tens autoestrada e via verde para seguires em frente. O resto da tertúlia dirá da sua justiça e do seu agrado em relação aos teus posts. A reacção tem sido positiva, como sabes. Espero que os camaradas e amigos nos escrevam, deixando as suas críticas, aplausos e pateadas, observações, informações complementares, etc.
Deixa-me que te diga que esta estória é fantástica: refiro-me ao episódio rocambolesco que hoje contas, do 'soldado desconhecido' do Batalhão de Mansoa que foi parar ao teu prato da sopa... O tal Fernandes (se a tua memória de elefante não te atraiçoa, quase 40 anos depois) deveria ser do tempo do Paulo Raposo, que esteve cinco meses em Mansoa, com a companhia dele (CCAÇ 2405) antes de ir para o leste… Presumo que o tipo fosse do BCAÇ 1911. Será que o Paulo (ou alguém mais, da nossa tertúlia) ouviu falar desta estranha estória ? Um abração. LG


Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70)(1)


A visita do soldado desconhecido


por Beja Santos


Nada previa que não fosse um fim de tarde como todos os outros. Como num ritual bem encenado, por volta das 18:30 Umaru Baldé, o segundo cozinheiro, avisava-me que todos estavam à mesa à minha espera. A essa hora, a escala de serviço estava a ser cumprida, um longo e progressivo silêncio ia tomando conta de Missirá.

Banhado e escovado, fazia a ronda pelos petromaxes, olhava para o exterior dos 5 postos de vigia como estivesse garantida uma noite de paz, e entrava num espaço que com muita imaginação se chamava a messe: uma divisão que o Teixeira das transmissões cimentou a preceito, uma mesa coberta com oleado, havia três bancos, algumas cadeiras de vime e um armário que se limpava todos os dias para remover as poeiras que queriam tomar conta de pratos, copos e talheres. É num dos cantos desta divisão que se irá instalar no próximo Natal o Presépio de Chicri.

A messe era encimada por um petromax, e aí por Outubro o Barbosa com ajuda de dois camaradas fez uma porta de mosquiteiro. Os soldados tanto do Pel Caç Nat 52 como das Milícias estavam desarranchados e comiam com as suas famílias. Mesmo com muita dificuldade, muitas vezes acocorei-me a comer em grupo a bianda e o respectivo chabéu metendo a mão na cabaça e levando à boca... era horrível em termos higiénicos mas selava solidariedade das instaladas.

Sentavam-se pois à mesa o oficial, os furrieis e as praças num total que variava entre seis e onze pessoas. Era neste espaço que de vez em quando eu convidava Lânsana Soncó, o marabu, para tomar chá e comer pão fresco feito por Jobo Baldé. Guardo uma fotografia do Jobo a amassar a farinha num cunhete de granadas de bazuca (vd. foto acima).

Ora aquela noite foi igual a tantas outras: o inevitável bacalhau cozido para fugir às carnes horríveis que nessa altura o Doutor (2) ainda preparava na sua santa inocência (mais tarde tornou-se exigente, estou convencido que se julgava um Chef, fizemos uma grande amizade que se reforçou quando ele pelas 6h da manhã de 1 de Janeiro de 1970 enfiou acidentalmente seis tiros em Uam Sambu, quando regressávamos de uma emboscada); comentaram-se as trivialidades do dia a findar e fez-se uma conversa mole à volta das coisas a fazer no dia seguinte. Findo o repasto (a que não faltava fruta da região ou em lata) seguia-se um período de sociabilidade lúdica, onde o loto a feijões era o rei da festa.

Como se fosse hoje e neste instante, eu olho do petromax para a porta enquanto ponho o nº 6 no respectivo cartão e vejo emergir nas sombras da parada e estacar no limiar da entrada com uma expressão alucinada um ilustre militar desconhecido (e digo militar porque ele vinha fardado com o camuflado português) e gritar como se estivesse em delírio:
- Onde é que eu estou, quem são vocês, quem me dá de comer?

E, lançada esta súplica, caiu redondo no chão. Como num filme em câmara lenta, pusemo-nos de pé, voltei-me para o Saiegh e disse-lhe:
- Ou vamos ser atacados, ou este tipo é um desertor ou temos tropas nossas aqui perto com a originalidade de nos mandar com todos os riscos este informador!

Em escassos segundos, foram tomadas algumas decisões: todos os civis iriam obrigatoriamente para os abrigos, os militares para os seus postos, a segurança reforçada. O militar desconhecido, em padiola e inanimado, seguiu para um abrigo onde eu quis interrogá-lo; à cautela, o Doutor preparou uma porção de arroz e abriu uma lata de salsichas, mais cerveja e fruta. No abrigo, o militar desconhecido abriu os olhos e virou-se para o outro lado.

Julguei imprudente enviar uma mensagem para Bambadinca a informar a chegada do visitante sem saber os pormenores ou, pelo menos, conhecer-lhe a versão da visita. Só passado meia hora ele recobrou o ânimo e atirou-se sofregamente a seis pares de salsichas, ao tarro de arroz branco, bebeu dois litros de cerveja e pediu mais, satisfez-se silenciosamente com papaia. À sua volta, esperavamos pacientemente a revelação da inusitada visita. Bem comido , e quando insisti em conhecer-lhe a identidade, encostado a um cadeirão de vime ele anunciou:
- Sou o Fernandes, pertenço ao Batalhão de Mansoa (3), fui raptado há não sei quanto tempo pelos turras quando tomava banho numa bolanha, levaram-me para um quartel deles, logo que pude fugi, desatei a correr pelo mato e aqui há um bocado vi as luzes, entrei sem perguntar nada a ninguém e aqui estou. Vocês não me vão matar, pois não?


Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCAÇ 2405 > 1968 > O Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852, esteve cinco meses em Mansoa, antes de partir para a zona leste, o sub-sector de Gamolaro. A placa indica que a distância por estrada (interdita) de Mansoa a Bafatá, passando por Missirá, era de 96 Km
Foto: © Paulo Raposo (2006)
Estavamos siderados a ouvir este relato. Mansoa, em linha recta, estava pelo menos a 120 km. A fazermos fé neste relato, o Fernandes percorrera todos os perigos, arriscara tudo, inclusivé tivera sorte na entrada à sorrelfa, sabe-se lá porque porta. Mandei chamar o sentinela junto ao cavalo de frisa. Estava de vigia Cibo Indjai, jurou nada ter visto, nada ter ouvido. Em que acreditar: desertou, veio a monte por várias florestas e está a ser sincero, será que há uma operação aqui perto e ter-se-à perdido, arranjando esta história que não é boa nem má?

Enquanto se mantinha o dispositivo de segurança, enviei uma mensagem para Bambadinca. E como não havia mais nada de verdadeiramente útil para fazer, deixei o dito Fernandes a dormir vigiado por um militar armado. Fomos descansar, aproveitei para ler até chamar o sono, a resposta chegou via rádio ao princípio da manhã: o batalhão de Mansoa confirmava a existência do Fernandes que fora tomar banho imprevidentemente numa bolanha sozinho e que não voltara a aparecer. Bambadinca pedia a presença do Fernandes. O soldado desconhecido acordara retemperado, fez a sua higiene e perguntou como era a vida ali. A certa altura descobriu que o Veloso era um quase patrício. E depois do mata-bicho até me perguntou candidamente:
- Ó meu alferes, isto até parece malta porreira, acha que eu posso pedir transferência para aqui?

E rumámos para Finete, contei ao Basilo e Bacari Soncó esta história, Finete em peso veio conhecer o ressuscitado. O mesmo se iria passa em Bambadinca onde o militar desconhecido conversou amenamente com meio mundo. Na tarde desse mesmo dia, confirmados todos os pormenores desta súbita aparição em Missirá, uma DO levou o Fernandes para Mansoa. Como é próprio destas coisas, o episódio foi esquecido embora deva constar de algum relato. Espero que o Fernandes esteja bem e, caso alguém o conheça, venha aderir ao nosso blogue.

Embora corra o risco de tornar este relato sofisticado e ainda mais surreal, guardei recordação do livro que estava então a ler. Assim como irei escrever que a 6 de Setembro de 1968 quando Missirá foi flagelada eu estava a ler As Sandálias do Pescador, de Morris West, peço que acreditem que quinze dias antes quando o Fernandes dormia a sono solto em Missirá eu relia um dos livros da minha vida: Poirot desvenda o passado, de Agatha Christie (vd. foto da capa, acima).

Foi o livro que me fez ganhar gosto pela intriga policial. Sabiamente construido numa trama clássica de investigação, relata uma reposição da verdade a partir de uma cliente que pede ao célebre detective belga que investigue o envenenamento e a morte do seu pai 15 anos antes. A sua mãe fora julgada e condenada por homicídio. Antes de morrer na prisão escrevera à filha confessando-lhe a sua total inocência. Poirot vai falar em primeiro lugar com os protagonistas da defesa e da acusação, depois com a polícia, depois com a família e os amigos, todos aqueles que viveram um episódio dramático. Como era habitual na estrutura novelística de Agatha Christie, a revelação final pesa no esplendor da sua descodificação, esmagando-nos com a revelação do assassino. E, claro está, Poirot brilha ao desmontar os factos completamente omitidos no processo judicial.

Muito mais tarde, em Lisboa, comprei um reedição deste nº 1 da Colecção Vampiro. Guardo como relíquia mas também por outra razão: a capa é deslumbrante. Um grande artista surrealista, Cândido da Costa Pinto, trabalhava para Livros do Brasil e para quem duvida da grande importância das artes gráficas e da importância do design na apresentação de uma obra, peço que vejam ao pormenor os primeiros cem livros da Vampiro. Felizmente que já se prestou a devida homenagem ao talento do Cândido, naquelas noites de Missirá ele foi um bom companheiro e contribuiu para intensificar o prazer que tenho no design gráfico.

Aproveitei aquela coluna inesperada a Bambadinca para trazer materiais de construção para melhorar a segurança do quartel de Finete. E decidi passar uma semana nesta povoação onde à noite via o bruxelear das luzes de Bambadinca e ouvia os ruídos do Geba. Foi nessa altura que nasceu a minha profunda amizade por Bacari Soncó e Fodé Dahaba. Eu vou contar.

______

Notas de L.G.

(1) Vd. último post, de 8 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1058: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (9): Kaputt

(2) Vd. post de 7 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P0157: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (8): Os meus novos amigos de Missirá


(...) "O Doutor era o petit nom afectuoso de Quebá Sissé, um mandinga todo desengonçado que falava permanentemente a rir. Apercebi-me rapidamente que era uma violência falar de culinária com o Doutor. Comida para ele era bacalhau cozido com batatas. Quando lhe falei em assar, assegurou-me que era impossível pois ficava queimado... Havia o frango, as conservas (o famigerado pé de porco), as compras de porco de mato ou gazela, carnes que não me pareciam apetecíveis.
Levei o Quebá Sissé e o Umaru Baldé para Bambadinca, com uma proposta de estágio nas messes de oficiais, sargentos e praças. E o que era fome passou a fartura. Passou-se a fazer a ementa semanal com os dois cozinheiros a sugerirem canjas, pratos de peixe, bifes de vaca, empadões e até doces. Eu, que vinha traumatizado de ter sido gerente de messe nos Açores, onde obriguei a guarnição a comer ovos de toda a maneira, chicharro e atum, torci o nariz, fui cortando naquelas propostas que julgava pantagruélicas, e sentenciei:
-Estamos em guerra, o dinheiro é pouco, não há luxos, façam simples e saboroso" (...).
(3) Possivelmente o BCAÇ 1911, que estava sedeado em Mansoa em meados de 1968 quando a CCAÇ 2405 (do BCAÇ 2852, com sede em Bambadinca) e o Paulo Raposo lá estiveram: vd. posts do Paulo Raposo
7 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXI: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (5): Periquito em Mansoa~
8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXXIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (6); Mansoa, baptismo de fogo
11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca

19 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (8): A ida para o leste

1 comentário:

Anónimo disse...

Ajuda a lavar a alma, tirar pelo menos uma semana de férias na Guiné, e convem não deixar para muito tarde, pois a longevidade dos guineenses não está essas coisas. E se se reconhecer pessoas daquele tempo, é fabulosa a recepção. Houve um ex-tenente do quadro, que fez um tempo na guerra da Guiné, que foi lá em visita oficial, penso que em 1979, e em 1989,ainda havia fotos dele nas velhas montras.(Ramalho Eanes).Mais tarde foi lá outro Presidente da República, mas já não foi o mesmo entusiasmo, talvez por não ter estado lá na guerra. É bom ir rever.