1. Em mensagem do dia 4 de Abril de 2012, o nosso camarada Juvenal Amado* (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), enviou-nos este texto de homenagem aos camaradas da CCAÇ 3490 que morreram na emboscada de Quirafo, no dia 17 de Abril de 1972:
Pintura de autoria de Juvenal Amado para oferecer à Tabanca do Centro a fim de ser leiloada e assim ajudar alguém através daquela Tabanca.
"António Ferreira"
Homenagem do nosso camarada Mário Migueis ao 1.º Cabo TRMS António Ferreira morto durante a emboscado do Quirafo
COMO SE FOSSE UM FILME
Hoje nas suas fotos parados no tempo, olham-nos com uma censura muda. Os olhos parece que nos seguem. Perguntam-nos porque não aproveitamos para criar algo mais justo, mais fraterno, quando tivemos a oportunidade, que lhes foi negada a eles na flor da idade.
Se fosse nos States far-se-ia um filme, talvez um épico. Nunca podia ser com o John Wayne como actor principal, pois ele nunca morria nas fitas. Normalmente ele era o herói, que namorava a dona do Saloon e dava porrada em todos “maus”. No fim partia sempre rumo ao Sol poente, deixando a pobre com água na boca.
Por outras palavras ela casava com o cavalo, dizíamos nós a brincar.
Bem segundo parece, nunca esteve em combate de verdade, só usava a sua “bravura” para a propaganda militar, dando assim azo à fanfarronice e egocentrismo tão americano.
Uma bela imagem do Rio Corubal, no Saltinho.
Foto retirada da página Encore de L'audace do nosso camarada Paulo Santiago, com a devida vénia
Escolhemos uma data?
Talvez 17 de Abril de 1972, numa picada repleta de sol numa Segunda-Feira.
Vão-se recomeçar os trabalhos interrompidos na Sexta-Feira na abertura da estrada, que talvez não fosse dar a lado algum, a não ser à sede de protagonismo de chefes militares.
Para que seria aquela estrada que ia na direção de locais em que nós não éramos visita desejada há muito tempo? Tinham-nos mandado fazer aquele serviço, para o qual talvez não tivessem sido devidamente avisados dos perigos, que era “cutucar a onça com vara curta”, como é uso agora dizer-se, que temos o português das telenovelas brasileiras, a assaltar-nos os sofás várias vezes ao dia. Depreciar o perigo resulta na sua duplicação como se viu.
Mas se fosse um filme nós sairíamos para a rua no final da sessão com os ouvidos cheios de tiros, explosões, a visão cheia actos heróicos e muitos mortos. Embora não tivéssemos visto, os “mortos” no fim de cada cena levantam-se, retocam o “sangue das feridas”, ajeitam os buracos nas fardas, pois talvez seja preciso repetir as filmagens naquela ou na outra cena de matança, quanto mais realista melhor para o êxito da fita.
Sabemos nós que há 40 ou 50 anos provámos da nossa própria angústia, que não se passa assim, que os mortos ficam mesmo mortos e o sofrimento é real para além do intolerável.
As viaturas roncam carregadas com soldados, trabalhadores, granadas, motosserras, gasolina e farnéis. A curva feita e desfeita tanta vez, desta vez albergava uma mortal surpresa.
A bocarra da morte estava ali à espera deles, como quem ri com escárnio da sua juventude, porque não se era jovem demais para morrer naquelas terras vermelhas e de sol impiedoso.
Apanhados de surpresa, as balas e canhoada atingem viaturas e rasgam as carnes, só escapa quem foge, quem se tenta refugiar é apanhado à mão. Sorte incerta para ele, certa para quem ficou estendido varado pelos tiros e metralha. A gasolina arde numa enorme fogueira, onde se mistura viatura e corpos sem vida.
Que sabemos nós dos seus últimos pensamentos?
Ter-se-ão apercebido da grande tragédia em que foram o actores principais?
As notícias do desastre chegam longe.
Quantos caixões?
Muitos!
Nem todos são brancos mas quais? E quem são?
Perguntámos nós.
Mais a cima as preocupações eram outras e perguntou-se “quantas viaturas”? Os homens substituem-se o equipamento compra-se.
Só muito mais tarde, se soube quem era quem, no desenlear as teias tecidas pela morte daquele dia. Mês de Abril das flores dos dias claros e pujantes, em que a natureza morta pelos rigores do Inverno, revive num ciclo imparável de Séculos. É a diferença, os homens que nos deixam, só regressam na nossa memória.
As romagens às suas campas, normalmente de exaltação patriota em data previamente marcada, não de introspecção, só servem alguns fins para o qual, nem eles nem as famílias foram tidos nem achados.
Resisto a olhar os olhos das fotos para sempre jovens, pois aquele olhar corta.
O silêncio, as flores, algumas de plástico, dão um ar de desolação e a certeza, de que há um fim até para saudade presente e dolorosa, porque a vida tem que seguir em frente para os ficam.
Despeço-me parafraseando aqui o titulo do poema do canto-autor Geraldo Vandré que "É P´ra Não Dizer Que Não Falei das Flores".
Dedicado aos camaradas da Companhia de Caçadores 3490, mortos naquele dia fatídico de 17 de Abril de 1972, Saltinho.
Alferes Miliciano Armandino Silva Ribeiro - Magueija / Lamego
Furriel Miliciano Francisco de Oliveira Santos - Ovar
1.º Cabo Sérgio da Costa Pinto Rebelo - Vila Chã de São Roque / Oliveira de Azemeis
1.º Cabo António Ferreira [da Cunha] - Cedofeita / Porto
Soldado Bernardino Ramos de Oliveira - Pedroso / V. N. Gaia
Soldado António Marques Pereira - Fátima / Ourém
Soldado António de Moura Moreira - S. Cosme / Gondomar
Soldado Zózimo de Azevedo - Alpendurada / Marco de Canaveses
Soldado António Oliveira Azevedo - Moreira / Maia (**)
Milícia Demba Jau - Cossé / Bafatá
Milícia Adulai Bari - Pate Gibel / Bafatá
Trabalhador Serifo Baldé - Saltinho / Bafatá
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 31 de Março de 2012 > Guiné 63/74 - P9685: Estórias do Juvenal Amado (41): Um drama causado pelo esquecimento dum carteiro
Vd. último poste da série de 8 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9716: In Memoriam (116): O senhor Luís Henriques (pai do nosso editor Luís Graça), faleceu hoje, dia 8 de Abril de 2012, aos 91 anos, na Lourinhã (Tertúlia)
Sobre a emboscada de Quirafo, entre outros, vd. postes de:
15 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1077: A tragédia do Quirafo (Parte V): eles comem tudo! (Paulo Santiago)
28 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P1000: A tragédia do Quirafo (Parte IV): Spínola no Saltinho (Paulo Santiago)
26 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P990: A tragédia do Quirafo (parte III): a fatídica segunda-feira, 17 de Abril de 1972 (Paulo Santiago)
25 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P986: A tragédia do Quirafo (Parte II): a ida premonitória à foz do Rio Cantoro (Paulo Santiago)
23 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P980: A tragédia do Quirafo (Parte I): o capitão-proveta Lourenço (Paulo Santiago)
(**) Originalmente dado como "desaparecido em combate", confundido com o António da Silva Batista (dado como morte)
6 comentários:
Fora do meu tempo, Juvenal.
Certo, certo é que sempre embirrei com esse acto bárbaro e, mais ainda por quem a comandou. É preciso odiar para dar, assim, ordem de fogo...a população carago.
Os Irãs se encarregarão da Justiça.
Ob e Ab, T.
Olá Juvenal!
Belo memorial, este post.
"Para não dizer que eu não falei das flores":
"Há soldados armados, amados ou não. Quase todos perdidos, de armas na mão. Nos quartéis lhes ensinam, uma antiga lição: de morrer pela pátria e viver sem razão."
" Vem, vamos embora, que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer".
Desculpa, mas não consegui resistir. A emoção da memória não mo permitiu.
Um abraço
Quantas vezes me pergunto:
A cor daquela terra, que amamos, não será do sangue dos seus herois?
Do mesmo se passou na estrada de Jugudul/Bambadinca!
Já nessa altura, as famigeradas PPP (parcerias público privadas)funcionavam!!!
11 de Maio de 1974, cerca de 15 dias depois do 25 de Abril (sempre), destaca-se um pelotão para a segurança??? da referida estrada. Resultado:Furriel Pinheiro (filho único) accionou uma mina A/P reforçada com uma mina A/C.
Reacção do Comando: Estatística
Bernardo
Caro Juvenal
Um belo texto para recordar uma tragédia acontecida com pessoal do nosso batalhão, quando ainda éramos "periquitos" naquelas quentes e vermelhas terras.
Não conseguimos esquecer que aquela picada (Saltinho-Quirafo), depois não mais percorrida de viatura, naquela manhã de 2ª feira, naquele dia 17 de Abril de 1972, foi um dos episódios mais dolorosos nas emboscadas ocorridas na Guiné, quer pela quantidade de mortos, pelos feridos, pelo soldado capturado, quer ainda pela pergunta que sempre ficou no ar - porque é que as nossas forças foram daquela forma pela estrada fora, em que a viatura da frente levava os taipais erguidos, quando tinham sido alertados por elementos da população que o IN estaria na zona?
Que Deus tenha as suas lamas em descanso.
Um abraço
Luís Dias
Desculpem o erro:
Que Deus tenha as suas ALMAS em descanso.
Luís Dias
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