1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 6 de Março de 2012:
Queridos amigos,
As imagens do nosso blogue polvilham-se nestas páginas em que um lutador de direitos entrevista veteranos e colhe o relato das suas vivências. Perpassa nestas páginas a tenacidade e o orgulho muito próprio dos açorianos, há aqui a incompreensão de muita gente pela falta de apoios a quem sofre e não tem recursos para promover, com dignidade, a qualidade de vida. Há relatos de partidas e chegadas, vidas interrompidas, o calvário dos hospitais.
Um combatente condecorado, na sua humildade, refugia-se no sentimento do coletivo da sua tropa.
Nos Açores é assim.
Um abraço do
Mário
Pátria, porque nos abandonas?
Beja Santos
Um antigo combatente, nado e criado no extremo de Portugal (Ilha do Corvo) deitou-se à obra de entrevistar veteranos de guerra, açorianos, publicou essas peças em dois jornais e depois vazou-as em volume. Assume-se como um homem de causas, está presentemente polarizado pela dignificação dos combatentes, pela trasladação dos restos mortais de um outro corvino e pela criação de uma delegação da Associação dos Veteranos de Guerra. “Pátria porque nos abandonas?, Sofrimentos de uma guerra”, por Lino de Freitas Fraga, Publiçor Editores, 2012.
O móbil da escrita de Lino Fraga não é escrever histórias da guerra mas sim o de captar experiências e sofrimentos dos antigos combatentes e das suas famílias. A saudade do açoriano tem um corpo próprio, uma densidade específica, houve mesmo quem lhe tivesse desabafado: “As saudades eram tantas que me queimavam o peito, por vezes quase não aguentava, cheguei a pensar em suicidar-me, com um tiro na cabeça”. Vamos passar em revista o que depuseram os combatentes da Guiné.
Jaime Moniz de Andrade partiu para a Guiné em Setembro de 1970, tirou o IAO no Cumeré e seguiu para a região de Bula, teve uma comissão muito dura. Nunca esqueceu a despedida da família e da noiva. Quando regressou em 1972 nunca mais foi o mesmo, sofre de ansiedade e pânico, foge dos ajuntamentos e é muito sensível aos estrondos. Sofre presentemente de uma neurose ansiosa crónica. Deplora a falta de apoios e de uma maior compreensão para esta calamidade do stresse de guerra. Na Guiné tocava viola para alegrar os colegas, hoje continua a tocar nas cerimónias religiosas.
Dionísio de Almeida Ferreira foi mobilizado na especialidade de condutor, em Setembro de 1970 partiu para a Guiné. Dionísio esteve envolvido nalgumas refregas, é uma pessoa bem-disposta, um extrovertido. Quando foi mobilizado, não disse nada aos pais, só informou a noiva e uma irmã. No dia do embarque partiu à socapa. Na doca, já dentro do navio, teve a grande surpresa de avistar a irmã e a noiva. Não se conteve, desceu a correr o portaló e despediu-se dos entes queridos. Nunca esqueceu este momento. É um excelente músico, toca às quintas-feiras num lar e aos domingos numa igreja.
Úrano Calisto das Neves fez recruta no Alfeite, tirou a especialidade de radiotelegrafista. Nasceu em Valença do Minho, gostou dos Açores, aqui lançou a âncora. Foi mobilizado para a Guiné em 1965 e foi colocado na Rádio Naval de Bissau. Participou em operações de fiscalização em lanchas e viveu vários confrontos com o inimigo. Chegou a ser ferido sem gravidade no rio Corubal. Nunca esqueceu o dia 30 de Março de 1966, andava numa lancha no rio Cacine, foi violentamente atacado e durante o combate o comandante de fragata deu-lhe ordem para pedir apoio aéreo e colega de Bissau mandou-lhe a seguinte mensagem: “Já nasceu a tua filha”. Calisto sofre de pesadelos e emociona-se facilmente, anda medicado pelo médico de família. Também deplora a falta de apoios aos antigos combatentes.
Gilberto de Sousa (ou Gilberto de São Roque) foi para a Guiné em Fevereiro de 1969, seguiu para Bigene. O dia mais negro da sua vida foi 2 de Agosto de 1969, em plena noite participou numa patrulha de reconhecimento. “Quando já estava tudo pronto para sair, abateu-se uma forte tempestade e é precisamente no momento de um forte relâmpago que se dá o rebentamento da granada que estava na bazuca que eu tinha na minha mão”. Os danos foram terríveis, um morto e dez feridos, e entre eles o Gilberto, que ficou sem as duas pernas. E começava assim o calvário de um jovem 21 anos, casado e com um filho de 7 meses. Colocou as próteses na Alemanha, mas nunca se adaptou. Já teve três AVCs e têm-lhe sido retirados apoios na assistência médica e medicamentosa.
Filipe Cordeiro, do Sindicato dos Bancários do Sul e Ilhas, é veterano da guerra da Guiné. Foi mobilizado para a Guiné em 1972 como furriel miliciano com o curso de operações especiais. Viu muita desgraça à sua volta, em Tite e Nova Sintra. Ficou ferido numa flagelação em 5 de Setembro de 1972 em Nova Sintra e foi submetido a intervenção cirúrgica para lhe retirarem vários estilhaços. Regressou aos Açores depois do 25 de Abril. É hoje um sindicalista bem-disposto e considera que ultrapassou os traumas da guerra.
José Francisco da Silva Dias tirou o curso de operações especiais e o curso de minas e armadilhas e foi mobilizado para a Guiné como furriel miliciano no início de 1967, partiu para Bula, a seguir esteve em Bambadinca e fez operações no Leste. Depois, por motivos disciplinares, foi transferido para Catió e mais tarde para Buba, Guilege e Gadamael, experimentou o duro, nunca mais esqueceu aqueles jovens a morrerem e a chamarem pelas mães e pelas noivas. Também nunca mais esqueceu uma operação de abastecimento a Madina de Boé, encontraram a guarnição física e psicologicamente arrasada.
Tiago Luís Macedo Melo partiu para a Guiné em Agosto de 1970, mais tarde, após o IAO, foi para a zona de Mansoa. Durante um patrulhamento uma granada rebentou no meio do grupo e o Tiago ficou sem as pernas. Pediu para o matarem, os camaradas não consentiram. “Os momentos mais violentos, mais tristes e dolorosos foram quando voltei sem as pernas e vi a minha noiva no aeroporto e depois a chegada a casa”. E relata, sempre emocionado: “Quando cheguei aqui à freguesia e o meu pai me viu sair do táxi correu para mim e queria pegar-me ao colo, lavado em lágrimas”. Em Dezembro de 2008 teve um AVC e ficou paralisado do lado esquerdo. E não esconde o seu desânimo: “Eu deixei tudo, o amor da minha vida, meus pais, irmãos, amigos, a minha terra e partes do meu corpo e do meu sangue nos matos da Guiné para honrar e defender a minha Pátria. É muito triste, agora que eu necessito de ajuda, a minha Pátria me vire as costas”.
Moisés Pereira da Luz teve uma história igual à do Tiago Macedo Melo, no referido rebentamento ficou muito estilhaçado, foi operado no Hospital de Bissau e depois transferido para o anexo de Campolide onde esteve internado 21 meses. Tem hoje uma mão imobilizada. Nunca esquece a visita que a irmã lhe fez em Lisboa, custou-lhe enfrentá-la naquele estado. Acho que recuperou psicologicamente graças ao apoio da família.
Frédy, nome fictício, foi um dos participantes na operação “Mar Verde”. Em Fevereiro de 1970 tirou o Curso de Oficial da Reserva Naval, no Alfeite, foi colocado na Escola de Fuzileiros onde tirou a especialidade de Fuzileiro Especial. Mobilizado para a Guiné, seguiu para as ilhas de Bolama e Soga, foi aqui que decorreu a preparação, em total secretismo, da invasão de Conacri. Descreve a operação e mais adiante relatou outros momentos marcantes, nessas emboscadas e nesses combates viu morrer camaradas a seu lado.
E, por último, Gil de Frias Sousa, tirou o Curso de Sargentos Milicianos e foi transferido para o Curso de Oficiais Milicianos, seguiu para a Guiné em Janeiro de 1966, foi destacado para a proteção aos trabalhos da estrada entre Mansoa e Mansabá. Mais tarde foi com a sua companhia para Teixeira Pinto. Numa operação o alferes Frias de Sousa lançou-se em perseguição do inimigo e apreendeu material de guerra. Foi-lhe atribuída uma Cruz de Guerra. O momento triste da sua vida foi quando se despediu dos seus camaradas e amigos que durante mais de dois anos tinham sido a sua família.
Fica aqui o registo das conversas que Lino Fraga teve com combatente da Guiné, em todos estes textos sente-se o seu tem de protesto pelo abandono a que estão votados os veteranos de saúde precária.
O nosso blogue imiscui-se neste livro do princípio ao fim, há ali fotografias nossas e o meu querido amigo Humberto Reis tem honras de primeira página. E está lá também a rampa de Bambadinca, a maior rampa da minha vida.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 15 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9750: Notas de leitura (351): "Adeus até ao meu regresso", de Mário Beja Santos: "um invulgar e dificilmente classificável livro" (Carlos Matos Gomes)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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4 comentários:
Neste choradinho tão triste, tão português,(com todo o respeito pelo sofrimento de cada um!) os comentários não são meus mas do padre António Vieira que viveu há quatrocentos anos atrás mas já conhecia os portugueses tão bem...
Abraço,
António Graça de Abreu
"Se servistes a Pátria que vos foi ingrata, vós fizestes o que deviéis, ela o que costuma."
Padre António Vieira, Sermão da Terceira Quarta-feira da Quaresma, 1669
"Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera? São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito".
Padre António Vieira, Sermão do Mandato, 1643
Pela recensão, temos aqui mais uma obra donde saem muitos lamentos de ex-combatentes.
O triste choradinho português, referido por AGA, é evidente em muitas atitudes sociais dos portugueses. Este hábito não caiu do céu aos trambolhões, tem raízes históricas.
É o que é, mas não é nenhuma desgraça. Desgraça é o contínuo desrespeito pelos mais fracos ou mais fragilizados, pelos sacrificados no patriótico cumprimento de decisões políticas e económicas, praticado por uma sociedade hipócrita e pusilânime mas muito "acarinhada" por grande parte dos avatares que historicamente vêm tomando conta deste "rebanho" lusitano.
Ao leitor Júlio
O seu comentário não tem cabimento neste espaço, que se quer de respeito, o que não se verifica no seu comentário.
Como sei que não se vai rectarir pelo que aqui expressou, nem sequer virá aqui verificar se houve comentários ao "triste desabafo"(?), que nem sequer honra os que Tombaram.
Caros editores.
Aqui está mais um comentário para abater, em conjunto com o meu, que deixa de fazer sentido.
Obrigado aos camaradas/amigos Mário Beja Santos e a todos os que se dignaram comentar o meu livro.
Um abraço a todos.
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