sexta-feira, 20 de abril de 2012

Guiné 63/74 - P9774: Notas de leitura (353): "Um Demorado Olhar Sobre Cabo Verde", por Jorge Querido (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 16 de Março de 2012:

Queridos amigos,
O “olhar” de Jorge Querido sobre Cabo Verde e o que ele pensa do papel dos cabo-verdianos no PAIGC, antes, durante e depois da luta pela independência é frontal, por vezes ríspido, outras vezes moralizante, nalguns casos ácido, as suas questões noutros casos inquietam os espíritos acomodados por vários dogmas e mitos. Não esconde o seu olhar comprometido, quando pode ajusta contas, com elaborada frieza e equidistância.
Livro de leitura obrigatória. O que Luís Cabral e Aristides Pereira não contam sobre a componente cabo-verdiana, Jorge Querido tem menos papas na língua. E ficamos definitivamente a saber que a unidade Guiné-Cabo Verde foi uma pura invenção de Cabral.

Um abraço do
Mário


Um livro polémico de Jorge Querido

Beja Santos

“Um demorado olhar sobre Cabo Verde” (por Jorge Querido, Chiado Editora, 2011) é um livro indispensável para quem pretende estudar o PAIGC desde a sua formação e com olhos cabo-verdianos. Jorge Querido licenciou-se em engenharia pelo Instituto Superior Técnico e envolveu-se na luta de libertação tendo sido coordenador da secção do PAIGC em Portugal (entre 1959 e 1968) e foi o primeiro responsável do mesmo partido em Cabo Verde. Fora ativista e dirigente da Casa dos Estudantes do Império e várias vezes preso pela PIDE. À data de independência de Cabo Verde (julho de 1975), encontrava-se em avançado processo de rutura com o PAIGC e vive hoje desligado de qualquer envolvimento político-partidário.

Jorge Querido dá a face à polémica sobre algumas matérias que constituem, de um modo geral, um tabu, entre cabo-verdianos e guineenses: é Cabo Verde um país na rota europeia ou tem o seu destino traçado com África? A cabo-verdianidade é um equívoco identitário, gera ambiguidades insanáveis no relacionamento com os guineenses ou cabo-verdianos? Por que razão os guineenses continuam a ignorar a profunda história comum? Tinha Amílcar Cabral fundamentos sólidos quando, por sua exclusiva iniciativa, criou uma dinâmica que, reconhecido pelos investigadores e especialistas, foi uma das razões de êxito para os sucessos na luta de independência? Que falhou na unidade Guiné-Cabo Verde e a quem atribuir a sua responsabilidade? Como se vê, o antigo dirigente político não pede licença para usar da frontalidade e para se lançar na polémica e controvérsia.

Primeiro, recorda o culto do mito do homem cabo-verdiano, instrumento que tem contribuído para superar complexos e frustrações: é o mito da inteligência superior e da sua enorme sensibilidade e vocação inata para a poesia, literatura e artes; é o mito da superioridade intelectual, moral e cultural e civilizacional dos ilhéus em relação aos restantes povos africanos, a que não será alheio o seu contributo ao serviço da política colonial portuguesa; é o mito do crioulo que superou as reminiscências africanas que ainda teimam em desaparecer e que caminha ao encontro da Europa, por exemplo.

Segundo, depois de discretear abundantemente sobre a história do povoamento e equacionar as diferentes teses da formação do cabo-verdiano, o autor enumera as etapas do período escravocrata, as crises da fome e a emigrações sobretudo para S. Tomé e Angola. Daqui passa para a análise do conceito de cabo-verdianidade. Considera que houve êxito na política assimilacionista das autoridades coloniais em Cabo Verde, concede que esta passou a dispor de uma inegável capacidade para exercer postos de comando nas diferentes colónias. Teria aí nascido o mito da superioridade do colonizado tendo como referentes o homem branco e a civilização cristã. O número de alfabetizados foi inquestionavelmente mais elevado nesta colónia que em qualquer outra, em Cabo Verde criou-se muito cedo o primeiro Bispado Africano e o Seminário de Santiago, ainda no século XVI. Esta elite está convicta de que o cabo-verdiano é predominantemente europeu e é a prova provada da capacidade colonizadora portuguesa. O autor enumera diferentes registos em diferentes épocas sobre a discussão dos nativistas, os crioulistas e a invenção da identidade nacional mestiça, e regista igualmente as apreciações de Amílcar Cabral que se terá apercebido como eram inconsistentes os pontos de vista defendidos pelas elites cabo-verdianas do seu tempo. Amílcar queria fazer ressaltar a africanidade, seria esse o sinal para entender a essência do fenómeno colonial, a cabo-verdianidade não podia ser amputada da sua dimensão africana. E cita Cabral: “A experiência da dominação colonial mostra que, na tentativa de perpetuar a exploração, o colonizador não só cria todo um sistema de repressão da vida cultural do povo colonizado, mas também suscita e desenvolve a alienação cultural de uma parte da população, quer pela pretensa assimilação dos indígenas, quer pela criação de um abismo entre as elites autóctones e as massas populares. Como resultado deste processo de divisão ou de aprofundamento das divisões no seio da sociedade, acontece que uma parte considerável da população, nomeadamente a pequena burguesia urbana ou rural, assimila a mentalidade do colonizador, considera-se culturalmente superior ao povo ao qual pertence e cujos valores culturais ignora ou despreza. Esta situação, caraterística da maioria dos intelectuais colonizados, cristaliza-se à medida que aumentam os privilégios sociais do grupo assimilado ou alienado, tendo implicações diretas no comportamento dos indivíduos desse grupo face ao movimento de libertação” (20 de fevereiro de 1970).

Terceiro, são passadas em revista as principais etapas ocorridas na descolonização e destaca-se o modo como o Estado Novo tratou as suas parcelas imperiais. Adriano Moreira e Franco Nogueira são abundantemente citados. E estamos chegados à década de 60, as antigas potências imperiais entraram declaradamente num processo descolonizador de que Salazar se afastou, em 1963 considerou que o Ultramar português podia ser motivo de assaltos por agentes terroristas mas não estava à venda, era há séculos parcela indivisível da mãe-pátria.

Quarto, entrando declaradamente na análise dos caminhos da independência, após o historial da organização inicial dos movimentos da África portuguesa, Jorge Querido corajosamente refere a decisão pessoal de Cabral em criar a unidade Guiné-Cabo Verde e questiona o que teria levado o líder do PAIGC à associar numa mesma luta duas populações colocadas em campos distintos e como a história comum de que ninguém se orgulhava e lança várias interrogações: “Terá pesado a circunstância de Cabral ser filho de cabo-verdianos nascidos na Guiné? Terá tido alguma influência o facto de Cabo Verde, pelo nível de escolarização da sua população, poder estar em condições de dar à luta, na sua fase de arranque, aquele mínimo de quadros que seria necessário? Ou Cabral teria antes admitido que Cabo Verde, dadas as suas características arquipelágicas, a sua reduzida superfície territorial, a sua diminuta população e a forma como a política assimilacionista colonial se esforçara por destruir os valores culturais de origem africana deixando profundas marcas nas mentes dos seus habitantes, só poderia ascender à independência no quadro do continente africano se arrastado por uma outra colónia, como a Guiné, com a qual mantinha relações históricas e de proximidade? Ou será ainda que Cabral acreditara que o decorrer da própria luta seria capaz de conscientizar o cabo-verdiano da sua africanidade e da sua condição de colonizado? Ou dar-se-ia o caso de Cabral se ter apoiado apenas em razões históricas ligadas à proveniência dos escravos trazidos do continente e em condições teóricas que apontavam no sentido de uma possível unidade entre a Guiné e Cabo Verde baseada em fortes e inegáveis afinidades culturais e quiçá numa potencial complementaridade no plano económico?”.

É um ensaio muitíssimo bem escrito, credor de leitura obrigatória já que o olhar cabo-verdiano tem sido estranhamente silenciado no estudo do PAIGC e da luta que ele desenvolveu no território guineense.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9752: Notas de leitura (352): "Pátria Porque Nos Abandonas? - Sofrimentos de Uma Guerra", de Lino de Freitas Fraga (Mário Beja Santos)

1 comentário:

Antº Rosinha disse...

Mário, sem dúvida que em 50 e tal anos ainda há muito tabú, e aqui este autor já se abre um pouco e já retrata um bocadinho do que os caboverdeanos pensavam de Amilcar Cabral.

Pensavam e pensam.

Os milhares de caboverdeanos que viviam e trabalhavam em Angola, admiravam muito o seu conterrâneo, pelo seu êxito internacional, e pela imagem da tal caboverneanidade, de que eles muito se orgulham, e é de facto uma característica muito particular daquele povo.

Mas os caboverdeanos apesar de admirarem o seu herói, não se inibiam de dizer coisas como «Amílcar é parvo».

Havia gente de certas ilhas que simplesmente estavam do nosso lado porque eram absolutamente contra as ideias de Amílcar.

Penso que a seguir a este autor ainda aparecerão outros caboverdeanos e guineenses a escrever qual foi mesmo exacto sentimento dos estudantes do império, (as elites burguesas que se fala de vez em quando)do PAIGC e do MPLA, (movimentos irmãos de pai e mãe) e aí saberemos «a quem venderam a alma».

A traz de tempo, tempo vem.

Cumprimentos