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Fotos e vídeo: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados
1. Texto da apresentação, da autoria do cor cav ref Carlos Matos Gomes, do livro "Adeus até ao meu regresso", de Mário Beja Santos
“Já participamos nos romances uns dos outros”, escreve o Mário Beja Santos no seu livro a propósito de um pedido feito por uma jornalista, Tânia Ganho, de informações sobre a Guiné e transmitido por esse extraordinário veículo de convívio, de memórias e afetos que é o blogue do Luis Graça e camaradas.
É verdade, uma surpreendente verdade. Os que combateram na Guiné durante a guerra colonial, os que escreveram sobre ela, a propósito dela, os que falam dela, todos participamos nos romances uns dos outros e no invulgar e dificilmente classificável livro do Mário Beja Santos – Adeus até ao meu regresso - que hoje aqui apresentamos.
Reportoriar o essencial
O livro de Mário Beja Santos, concentra o que de mais relevante foi escrito sobre a Guiné. Apresenta-se como uma antologia em que, modestamente, o autor diz ir “reportoriar do lado português o que de essencial está escrito desde 1964 sobre a Guiné”.
Estamos perante uma antologia, formalmente dividida em textos de autores que contemplam o romance e o conto, as memórias, o ensaio, a poesia, a reportagem, a História e os diários, mas uma antologia única, construída articulando o texto do autor – Beja Santos - e as transcrições e citações dos autores que ele refere, fazendo continuar os dois registos numa sequência sem hiatos. Estamos perante uma obra da arte de contar a história da Guiné e da guerra na Guiné com as palavras dos autores, sublinhando o que de melhor eles nos disseram.
A capa
Gostava de realçar desde logo a capa, a fotografia, que é uma homenagem sensível e sofisticada a Amílcar Cabral, pois remete para a fotografia clássica do líder do PAIGC a atravessar um curso de água e que eu interpreto como o querer dizer que todos os que combatemos na Guiné estamos irmanados pelo mesmo amor por aquela terra, porque todos embarcámos nas mesmas canoas, atravessámos os mesmos rios, passámos as mesmas dificuldades.
O livro de Mário Beja Santos dá-nos os suculentos nacos de prosa dos autores, não apenas flashes e apresenta-nos a Guiné e a guerra como uma orquestra a tocar uma sinfonia com vários executantes e com o autor no papel de compositor e maestro. Pode parecer quase herético ou blasfemo associar as explosões, os sofrimentos, os extremos da guerra a uma sinfonia, mas é disso que se trata, de um drama em todos os seus andamentos e em todos os seus tons.
Nesta obra polífona cada autor referenciado e cada texto ou citação entra no ponto certo para transmitir uma visão do pormenor que irá contribuir na sua justa medida e tom para a sinfonia.
O paradigma da antologia na literatura portuguesa sobre a guerra é ainda hoje “Os Anos da Guerra”, organizada por João de Melo com excelentes textos de enquadramento de Joaquim Vieira, obra aliás referida e devidamente apreciada por Mário Beja Santos, mas o que nós temos em “Adeus até ao meu regresso” é algo de essencialmente diferente, é uma antologia construída como um romance e um romance construído como uma história da Guiné, dos seus povos e da guerra que ali foi travada de 1963 a 1974. Os autores dos textos são personagens do romance e os seus textos são a narrativa das aventuras das personagens, os seus pensamentos, as suas visões, os seus sentimentos.
O autor, o romancista, o Mário Beja Santos conseguiu através do trabalho, que ele próprio qualifica de demencial, um tal conhecimento dos autores, cujas vidas são apresentadas e integradas na narrativa como as das personagens dos romances, e das suas obras que as articula no tempo e no local a que as ações se referem.
Os textos dos livros escolhidos permitem-nos comparar as nossas experiências com a de outros camaradas, que passaram pelos mesmos locais, noutro tempo, que viveram situações semelhantes. São textos de livros para lermos, mas são principalmente livros para deixarmos aos nossos filhos, aos nossos netos, às gerações que nos vão suceder.
Escritores da guerra
Trata-se de livros de uma geração de escritores da guerra, como os classificou João de Melo. Neste caso, na maioria dos casos, de escritores estigmatizados. Pela guerra enquanto tema, pela guerra que os fez participantes na acção, que afastou da crítica, dos circuitos literários, do reconhecimento dos seus concidadãos. Diríamos hoje, que estes escritores da guerra estão fora do mercado. Como em muitas outras áreas da nossa vida, existem várias realidades que não se reconhecem e não estou a falar apenas de ficção, ou poesia, estou a falar de ensaio, de história, de diarística, de memórias.
Os textos reunidos por Mário Beja Santos reúnem o melhor e o mais importante do que foi publicado e trazem ao nosso conhecimento obras esquecidas que, se lidas, nos permitiriam ter um conhecimento fundamentado das razões, ou da falta dela para aquela guerra. Aperceber-nos-íamos das razões por detrás das coisas, de que tudo tem uma história e permito-me salientar sem nenhum desprimor para os outros autores as obras de António Duarte Silva no capítulo do ensaio, a que o Mário Beja Santos dá o titulo “A Guiné entre o século XIX e a atualidade. Para entender melhor estes mais de dois séculos de esperança adiada” e as referências ao estudo “Invenção e Construção da Guiné-Bissau”, editado em 2010.
Para o que resta de crítica literária, os escritores da guerra escrevem sobre um assunto incómodo e politicamente incorreto. A moda são os urbanos. A moda é a ausência de valores. A moda é a ambiguidade a vários níveis, da ambiguidade sexual à ambiguidade de princípios. A moda é o precário, o imediato, o rápido. O usar e deitar fora. Uma sociedade hedonista, não suporta a dor da guerra, o sofrimento da morte, não suporta as mãos sujas de sangue. Não suporta o dilema de matar e morrer e não suporta, infelizmente o trabalho e o sacrifício do estudo e da compreensão. Portanto deixa de lado, com indiferença, estes testemunhos incómodos da história.
Basta ler os extratos que Beja Santos nos dá no seu livro para termos a certeza de que não é por falta de qualidade literária e científica que alguns destes autores não são e não foram trazidos ao grande público pelos divulgadores culturais, mas porque o Portugal que passa nos textos dos autores iluminados e nalguns casos ressuscitados por Beja Santos não é, de todo, o Portugal que a moda e os que fazem a moda querem e quiseram fazer crer que existia.
O que temos neste livro é o Portugal da guerra colonial, a maior aventura coletiva da história de Portugal a seguir à das viagens, descobertas e conquistas dos séculos XV e XVI (mais de milhão e meio de portugueses envolvidos na guerra e na emigração), também é a participação de Portugal no movimento descolonizador, o fenómeno mais marcante da história mundial após a II guerra.
“Adeus até ao meu regresso”, centrando-se na Guiné, enquadra a história daquele território no âmbito mais vasto do colonialismo iniciado com a Conferencia de Berlim, quando as fronteiras foram definidas (traçadas) – recorda-nos que o Casamança tinha tido uma ocupação portuguesa, que Zinguichor, muito perto de Guidage, foi uma cidade sob domínio português, que as guerras de pacificação duraram até aos anos 30 do século XX.
Tomamos contacto com as linhas de fratura sobre a questão colonial que atravessaram o regime do Estado Novo português, colocando de um lado autonomistas como Sarmento Rodrigues, Marcelo Caetano e Adriano Moreira e do outro os integracionistas, que acabaram por fazer valer a sua posição junto de Salazar e tornaram a opção pela guerra, tornada irreversível a partir de 1963.
Romancistas e contistas da guerra
Entre os autores de romances e contos Mário Beja Santos elege três: Armor Pires Mota, Álvaro Guerra e José Martins Garcia. Sobre Armor Pires Mota diz Beja Santos: “Resta perguntar porquê este silêncio em torno do primeiro repórter combatente, alguém que escreveu a guerra quase em directo, em tom singelo, frugal nas imagens, entregando-nos os seus estados de alma sobre a forma de diário. Porventura houve preconceitos ideológicos, hoje totalmente inexplicáveis, talvez porque o escritor assumisse que fizera esta comissão numa convicção dos destinos da Pátria. Ele foi o primeiro escritor entre nós, devemos-lhe esta guerra quase em directo, no tempo em que se combatia de capacete e se transportavam munições e víveres em burros. Como veremos, a Guiné tem acompanhado a sua obra literária, até ao presente.
Outro valor histórico não tivesse e ficariam parágrafos indesmentíveis, solenes, melancólicos, pensamentos que ocorreram a qualquer um de nós, como se transcreve de “Noiva de guerra”: Na justa medida em que Estranha Noiva de Guerra é um dos livros mais portentosos que se escreveram sobre a Guerra da Guiné, está injustamente esquecido e é um dever cultural de alertar os editores para o imperativo da sua reimpressão. “
É apenas um exemplo para vos estimular a ler o livro. Eu permitia-me referir duas outras obras recenseadas no capítulo de memórias, uma de um diplomata, no início da guerra e outra de Salgueiro Maia, no final.
Ensaio e história - do princípio do que podia não ter sido uma guerra ao fim dantesco em que ela se transformou.
Em primeiro lugar a do livro: “Quadros de Viagem de um diplomata” de Luís Gonzaga Ferreira.
Trata-se da obra de um diplomata que esteve em serviço em Dakar, no Senegal em 1963 e que relata um episódio relativamente pouco conhecido de conversações entre o governo português, por Salazar em pessoa, com dirigentes nacionalistas, da UNPG, que viria a dar elementos para a FLING e para o PAIGC – no caso Benjamim Pinto Bull, uma família originária da zona de Teixeira Pinto. Nestas conversações Salazar aceita num primeiro tempo conversações e dá instruções à embaixada de Dakar, para depois negar e cortar essa possibilidade. Estamos em 63, no início de uma guerra que podia ter sido evitada ou conduzida para um outro fim. Eis o que diz o Mário Beja Santos:
“No dia 11 de Agosto de 1963, um DC5 aterrou em Bissalanca e dele saíram Silva Cunha, então secretário de Estado do Ultramar, diplomatas do MNE e o último cônsul português em Dakar, Luiz Gonzaga Ferreira. Este conjunto de personalidades ia aguardar a comunicação que Salazar faria ao país no dia seguinte, dando conta da sua decisão, tomada depois de se reunir com Benjamim Pinto Bull, Presidente da União dos Naturais da Guiné Portuguesa (UNGP), de aceitar a abertura de negociações para uma autonomia política da Guiné. A seguir a esta declaração de Salazar, o conjunto de personalidades e o governador da Guiné receberiam Benjamim Pinto Bull para iniciar as negociações dessa autodeterminação progressiva.
O que se disse acima não é ficção, está perfeitamente documentado e consta do livro “Quadros de Viagem de Um Diplomata”, por Luiz Gonzaga Ferreira, Vega, 1998. Ao longo de mais de 400 páginas, o diplomata dá-nos conta sobre os bastidores da acção diplomática portuguesa no Senegal e oferece-nos uma importante memória sobre a política de Senghor e o que ele pensava da transição pacífica da Guiné para a independência e, não menos importante, quem eram e como actuavam os diferentes movimentos independentistas que operavam em Dakar, a partir de 1959.
Estamos neste livro perante uma leitura excepcional, pois é possível decepcionar como esta UNGP constituiu a última oportunidade de ter evitado, segundo o autor, a luta armada bem-sucedida que o PAIGC desencadeou a partir de 1963.
Qualquer possibilidade de ter havido uma Guiné independente multipartidária, dirigida por guineenses, desapareceu com o discurso de Salazar de 12 de Agosto de 1963. Num curto parágrafo deitou tudo por terra, ele que apoiara a negociação com a UNGP ao dizer: “Que todos o saibam – em nenhum momento e sob que pretexto, jamais parcela alguma do território nacional e nenhuma parte da soberania nacional serão alienadas”. Igualmente, no terreno das hipóteses, a proibição desta autonomia deitou por terra outras soluções em Angola e Moçambique. O pano caiu nesse dia. Em Adis Abeba nasceu a Organização da Unidade Africana, o nacionalismo africano entrava na rampa de lançamento, todas as soluções moderadas se tornaram questionáveis, indesejáveis.”
Esta é uma memória de como a guerra podia ter sido evitada ou seguido por outro caminho. O texto seguinte é do final da guerra. Do absurdo a que se havia chegado e é relatado pela transcrição de textos do livro “Crónica dos feitos por Guidage”, de Salgueiro Maia, que aqui recordo com emoção e respeito.
Este texto é também elucidativo do modo como Mário Beja Santos encadeia o seu texto com o dos autores para construir um novo texto coerente. Começa com Beja Santos:
“O pior vem depois. No dia 22 de Maio de 1973, Salgueiro Maia e a sua companhia estão prontos para seguir para o Cumeré, parece que a comissão terminou. Mas não, têm que partir de urgência para o Norte. O PAIGC desencadeara uma ofensiva em Guidage, a guarnição estava cercada e, aparentemente, isolada. As flagelações do mês de Maio, na zona de Guidage, eram incontáveis. O PAIGC apostara numa operação de grande envergadura: trouxera mísseis terra-ar para dissuadir os meios aéreos; implantara um campo de minas anti-carro e anti-pessoal na estrada Guidage-Binta. A última coluna de reabastecimento fora atacada durante cerca de 24 horas sem interrupção, as NT retiraram abandonando mortos e viaturas, seguiram para Guidage. O comando-chefe reage com a operação «Ametista Real». Uma companhia de pára-quedistas e um destacamento de fuzileiros tentam abrir o itinerário, chegam a pé a Guidage depois do destacamento de fuzileiros ter caído num campo de minas e os pára-quedistas terem sofrido uma emboscada. Salgueiro Maia recebe ordens para seguir para Binta-Farim e depois, com uma companhia africana e uma companhia de atiradores, abrir o cerco para Guidage. O relato que ele faz é uma peça espantosa.
Em 26 de Maio chega a Binta com uma companhia desfalcada, estão lá três capitães, pouca comida e há que dividir as munições por todos. Não há um só oficial superior para comandar a operação. Começa aqui a sua descrição:
«No dia 29 de Maio, pelas 5 horas, iniciámos a abertura do itinerário Binta-Guidage. Cerca das 10 horas, ao ser picada, foi accionada uma mina anti-carro, de que resultou um morto (ficou somente com um bocado do tronco, pois o resto desapareceu), um furriel cego e dois feridos ligeiros. Foi ordenado ao pelotão a que pertenciam as baixas para, em dois Unimogs, fazer evacuação para Binta, onde a companhia local os evacuaria para Farim e daqui para Bissau, por já não haver evacuações aéreas no local, devido à existências de mísseis terra-ar. O pelotão que fez a evacuação aproveitou a oportunidade e não voltou, como lhe tinha sido ordenado, e assim ficámos com menos duas viaturas e cerca de 30 homens. Talvez para que o mau exemplo não se espalhasse, esta deserção colectiva em frente do IN, apesar de constar do relatório da operação, não originou qualquer procedimento disciplinar».
A progressão faz-se a corta-mato, com algumas viaturas à frente, os cunhetes vão abertos, prontos a utilizar: este regime em self-service ir-se-á revelar providencial. Prova que o PAIGC mudara de táctica e queria levar o cerco de Guidage até às últimas consequências a que cada um dos seus homens armados levada dois a três carregadores para o substituir. Pelas 12 horas, as forças do PAIGC começaram a atacar a coluna, foram repelidos várias vezes. As tropas de Salgueiro Maia estão sem água, há homens desmaiados, felizmente que a coluna de reabastecimento de Bissau ia progredindo. Mais adiante, na região de Ujeque, do corta-mato passou-se para uma antiga picada, tentou-se progredir por aqui, arrebentou uma nova mina debaixo de um Unimog 404, um soldado milícia ficou sem uma perna. Mais adiante conseguiu-se contacto com o destacamento de fuzileiros retido em Guidage. Pelas 19 horas entraram em Guidage que tinha um aspecto irreal. Dá-se de novo a palavra a Salgueiro Maia:
«O chão estava lavrado por granadas, as casas, todas atingidas, pareciam ruínas, os homens viviam em buracos, luz e água não havia... como que para nos cumprimentar, pelas 21 horas somos flagelados por um morteiro de 82, com as granadas a cair em grupos de cinco e, para cúmulo, granadas nossas de 81 mm, das capturadas na coluna de reabastecimentos, agora disparadas contra nós. No dia seguinte, pouco depois do alvorecer, inicia-se a coluna de regresso com o pessoal que, até à data, tinha sobrevivido e que, para além dos sofrimentos de que já padecia, deitado sobre colchões velhos, saltava como pipocas cada vez que a Berliet passava num buraco».
E a descrição que ele faz de Guidage é perfeitamente dantesca:
«A enfermaria e o depósito de géneros tinham sido praticamente destruídos; como assistência sanitária, tínhamos um sargento enfermeiro e alguns maqueiros. O pessoal dormia e vivia em valas abertas ao redor do quartel. Esporadicamente, errava-se por lanços por entre os edifícios ou o que deles restava. Como dormir no chão não é muito agradável, na primeira oportunidade passei revista aos escombros e tive sorte: descobri dentro de um armário que tinha pertencido a um alferes madeirense que ficou sem uma perna uma farda nº 3, o que me permitiu lavar o camuflado e, como prenda máxima, um bolo de mel e uma garrafa de vinho da madeira quase cheia e inteira no meio de tudo partido. Com isto fiz uma pequena festa com três ou quatro homens, porque era perigoso juntar mais gente. Nesta altura pensei em, depois de regressar a Bissau ir ao HM 241 saber quem era o alferes para lhe agradecer tão opíparo banquete, mas tal não foi possível e ainda hoje tenho esse peso na consciência.
"Nas minhas visitas pelos escombros, desci ao abrigo da artilharia, onde houvera quatro mortos e três feridos graves. O abrigo fora atingido em cheio por uma granada de morteiro 82 com retardamento; a granada rebentou a meio de uma placa feita com cibes; o resto do abrigo ficou totalmente destruído; o chão tinha um revestimento insólito – consistia numa poça de sangue seco, cor castanha com 2 a 3 mm de espessura, rachada como barro ressequido. O odor envolvente era um pouco azedo, mas sem referência possível; o sangue empastava os colchões e as paredes. A minha preocupação era encontrar um colchão. Depois dar volta aos oito que lá se encontravam, escolhi o que estava menos sujo. Tirei-lhe a capa, mas o cheiro que emanava de dentro era insuportável; mesmo assim, consegui trazê-lo para a superfície, onde ficou a secar debaixo da minha vigilância, para não ser capturado por outro. Depois de bem seco e com os odores atenuados, levei a minha conquista para a vala, onde, para caber, tive de o cortar ao meio, fazendo bem feliz o meu companheiro do lado que, sem esforço, ganhou um colchão, e sem saber de onde ele tinha vindo».
Assim foram aqueles tempos em Guidage: sem horas para comer, com arroz e salsicha ao jantar, o resto estava desfeito, enquanto se comia caiam à volta morteiradas para ninguém se esquecer que se estava em guerra.
Esta descrição, dura e crua, bem devia ser apresentada nas escolas, para se ter uma imagem da bestialidade da guerra que se desenvolvia na Guiné. Tenho encontrado muitos relatos sobre a violência, a crueldade, o horror das matanças, das perseguições, o caos das populações no meio de tanta destruição. Julgava que “Kaputt”, de Curzio Malaparte, tinha lá tudo o que o demónio da guerra comporta, o inumano, o truculento, os muitos medos desavindos, imprevistos. Salgueiro Maia ensinou-me que há sempre surpresas, basta, como lhe aconteceu, ter saído de Binta para Guidage, aquele inferno inesquecível de Maio de 1973. Um relato para a História, até para se perceber como aquele homem tinha razão fundada em ter chegado ao Largo do Carmo, naquele dia 25 de Abril."
Já vai longa a apresentação, que é também como deve ser um local e uma ocasião de encontro entre amigos e camaradas, queria repetir que em “Adeus até ao meu regresso” estamos perante uma obra única, com uma escrita: límpida, emocionada, num português que nos leva com a naturalidade de uma valsa. Esta é a literatura portuguesa que vai ficar para a história e é porque relata o que de mais importante e marcante ocorreu em Portugal e os portugueses durante a segunda metade do século XX.
É de uma literatura original – o olhar de um povo sobre outros mundos, que Mário Beja Santos nos deixa o melhor. A desmistificação da história que nos era contada: nós não conhecíamos a África nem os africanos. A literatura que nos revelou e revela como povo: pela primeira vez uma geração alfabetizada escreve e relata o modo como viu os outros, como viu os outros portugueses e como viu os africanos. Como reagiu às situações limites: à morte, ao afastamento, ao medo. O que permite sabermos muito sobre a nossa religiosidade para além da afirmação mais ou menos feita de sermos muito católicos. Quais são os nossos deuses, o que queremos deles?
É esta literatura que vai perdurar, porque ela é especifica e reflete os olhares dos portugueses sobre a sua grande aventura, com os autores transformados em personagens numa história geral, como acontece nas grandes obras que relataram as epopeias dos seus povos.
Lisboa, Associação 25 de Abril,
29 de março de 2012
Carlos de Matos Gomes
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Nota do editor:
Último livro da série > 13 de abril de 2012 > Guiné 63/74 - P9742: Notas de leitura (350): A Guiné vista pela Agência-Geral do Ultramar em 1967 (Mário Beja Santos)
7 comentários:
Penso que nesta apresentação, ao contrário do que Beja Santos sempre realça nos livros dele, não vemos realçado devidamente o papel dos Comandos Africanos ao nosso lado.
Beja Santos que leio com atenção, nunca esquece esses homens.
Por isso e não outra coisa, aprecio muito pouco esta apresentação.
Meu caro António Rosinha, Recordo-me que em dado passo da sua intervenção o coronel Carlos de Matos Gomes destacou as obras de pendor memorialístico, caso de Amadú Djaló, comando, José Talhadas, fuzileiro, e Moura Calheiros, paraquedista, tudo a propósito da sinceridade da escrita.
Há testemunhos soltos sobre os paraquedistas na Guiné e há a história de BCP 12 escrita pelo coronel Nuno Mira Vaz, vem referenciado no meu inventário. Um abraço do Mário
A fotografia da capa do livro é do meu amigo e camarada da CCaç 1439, Alf. Mil. João Crisóstomo, a atravessar o Geba entre o Xime e o Enxalé. Fui eu quem digitalizou a tal foto e a remeteu ao Beja Santos. O Sr. Coronel decerto que não viu a fotografia com olhos de ver. Henrique Matos
O que se vê (por aí e aqui) parece ser uma certa mundanice à solta, a propósito e a cavalo numa guerra passada; por isso, permito-me transcrever o posfácio de uma resenha editada mas de distribuição restrita, acerca das 'operações em África' - 'Qualquer comentário sobre a guerra, desenvolvido num plano de compreensão diferente do que foi [ali] usado e que não seja de natureza filosófica, a não ser fútil ou precipitado, teria certamente carácter técnico ou político e, neste último caso, poderá apoucar a memória ou aviltar a serenidade dos evocados'
SNogueira
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