quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11914: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (3): Guiné-Bissau

1. Terceiro episódio das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro no ano de 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

3 - Guiné-Bissau

Fernando de Pinho Valente (Magro) 
ex-Cap. Milº de Artilharia 

A palavra Guiné possivelmente estará na origem do nome de um aglomerado situado junto às margens do Alto Niger.
Como era um centro muito frequentado pelas caravanas de mercadores sudaneses e outros, a sua fama chegou até aos países da orla mediterrânica. Aparecia designado por nomes diversos como Ginea, Djenné, e acabou por entre nós cristalizar sob a forma de Guiné.

Embora se começasse por chamar Guiné indistintamente a todo o litoral africano a sul do Bojador, o seu início acaba por ser definido na foz do Senegal e até ao Gàmbia. Mais tarde, prolongou-se até ao actual Golfo da Guiné.

A ex-Guiné Portuguesa fica situada na Costa ocidental africana entre o Cabo Roxo e o Rio Cagete e ocupa uma área de 31.800 Km2, dos quais só 28.000 Km2 estão permanentemente emersos.
Defronte da costa estende-se um cordão litoral e em pleno oceano há um grande número de ilhas e ilhotas - o arquipélago de Bijagós.

"A zona continental é uma região baixa, invadida pela água do mar, que através de largos estuários penetra profundamente para o interior. O interior é constituído por uma série de planaltos e colinas cuja altitude ronda respectivamente os 40 metros e os 100-200 metros, que somente no Boé chega à cota de 300 metros(1)".

Com uma temperatura monótona ao longo do ano (em Bissau a média das temperaturas máximas é de 36,6º e a média das temperaturas mínimas é de 21,7º) as estações são definidas pela diferença de pluviosidade: estação seca de Novembro a Maio e estação das chuvas de Junho a Outubro.

O professor Orlando Ribeiro classificou a Guiné como "uma encruzilhada de civilizações". Em 1960 na pequena área de 28.000 Km2 viviam 519.000 habitantes, repartidos por uma quinzena de povos, dos quais cada um falava a sua língua, construía e agrupava as casas e organizava o espaço à sua volta de maneira diferente.

No interior habitavam Fulas e Mandingas, ambos islamizados.
No litoral distinguiam-se os Balantas que eram principalmente cultivadores de arroz. Além de cultivarem o arroz também se dedicavam à criação de gado.
Os Manjacos contavam-se também entre as populações mais activas e avançadas do litoral da Guiné. Eram excelentes navegadores, percorrendo nas suas pirogas o litoral, pescando ou comercializando.
Mas havia ainda outras raças como os Felupes, os Bijagós, os Papeis, Biafadas, Baiotes, Brames, Cassangas, Bagos, Nalus, Saracolés, Sossos.

A cidade de Bissau é a capital da Guiné, e o seu principal centro urbano. Situa-se entre os estuários dos rios Geba e Mansoa.
A cidade cujo plano de urbanização foi aprovado pelo Diploma legislativo 1416 de 15 de Junho de 1948, apresenta um traçado geométrico, encontrando-se em 1970 dividida por uma ampla avenida central - Avenida da República - e duas laterais: Carvalho Viegas e Cinco de Junho. À entrada da primeira ergue-se o monumento a Nuno Tristão, descobridor da Guiné, encontrando-se no seu percurso alguns modernos edifícios, como repartiçõs públicas e a Sé Catedral.
No seu topo ficava (e fica) uma vasta praça, então designada por Praça do Império, dominada pelo monumento Ao Esforço da Raça, tendo no fundo o imponente edifício do Palácio do Governo.
A parte histórica da cidade é rodeada de um forte muro de pedra e cal com quatro metros de altura - a Amura.

Dispunha (e dispõe) de um porto navegável para navios de longo curso, no canal do Geba, ao fundo de uma enseada que se abre entre a ponte de Bandim e o extremo oriental da Ilha de Bissau. A entrada do Porto faz-se entre o Ilhéu dos Pássaros, onde está instalado um farol, e o Ilhéu do Rei.

Cheguei a Bissau num voo da TAP, cerca das 7 horas da manhã do dia 10 de Abril de 1970 (sexta-feira).

Tinha à minha espera o Engenheiro Lourenço Pinto, na altura chefe dos Serviços de Obras Públicas da Guiné, conterrâneo da Lena (natural de Torre de Moncorvo), casado com uma sua amiga, Etelvina Moritz.

Amavelmente levou-me para casa dele e fez questão que, no primeiro dia, tomasse as refeições e dormisse na sua própria habitação, o que veio a acontecer.

A cidade de Bissau não me impressionou, embora esperasse por pior. Do calor é que me queixei logo que lá cheguei. O clima da Guiné é desgastante. Também o cheiro de Bissau me acolheu desagradavelmente: o seu odor era de terra putrefacta.
A cidade pareceu-me uma cidade de grandeza média, mas mal arrumada e suja.
Verifiquei logo nos primeiros contactos haver muita gente usando o traje dos muçulmanos.

Depois de me apresentar no Quartel-General procurei saber onde se situava o Palácio do Governo e tentei imediatamente marcar uma entrevista com o General Spínola.
Quem me recebeu no Palácio foi o Capitão Almeida Bruno (hoje general). Mostrei-lhe a carta que tinha recebido do Secretário do Governador e pedi-lhe que me conseguisse um contacto com o General o mais rapidamente possível.
Recebeu-me desabridamente, o que me chocou, pois ele afinal, na altura, tinha um posto militar igual ao meu.
Perguntou-me quando tinha chegado. Disse-lhe que havia chegado a Bissau nesse mesmo dia de manhã, num avião da TAP.

- Se pudesse ser recebido amanhã muito lhe agradecia.
- Você está maluco. Vou inscrevê-lo para ser recebido na próxima quarta-feira pelas quatro horas da tarde.

No segundo dia da minha estadia em Bissau instalei-me no Clube de Oficiais do Quartel-General, onde passei a fazer as refeições e me foi dado um quarto para dormir.
Aí pude conviver com o Arquitecto Morgado, Capitão Miliciano como eu, que conhecia bem do Curso de Oficiais Milicianos e do Curso de Promoção a Capitão.
Ele apresentou-me a outros oficiais com quem passei a privar na altura como o então Capitão Mário Tomé (que depois veio a ser dirigente da União Democrática Popular - U.D.P.).

No dia 12 de Abril (dois dias após ter chegado a Bissau) fui convidado pelo Engenheiro Lourenço Pinto para um passeio de automóvel até Nhacra.
Vi, nessa altura, pela primeira vez as "tabancas"(2) indígenas e verifiquei que o atraso dos naturais era muito grande sobre todos os aspectos.
Não falavam o português, a poucos quilómetros de Bissau. Ao escudo (moeda) chamavam "peso". As crianças e as mulheres, com os seios nus, vendiam camarões, ovos, galinhas, limões, carangueijos, pássaros... junto à estrada.

Na quarta-feira seguinte, dia 15 de Abril, fui recebido pelo General Spínola.
Recebeu-me com muita afabilidade e disse-me que não estava de acordo com a nossa (minha e dos meus companheiros oficiais milicianos na disponibilidade) chamada para a guerra.
Disse-me que a minha qualidade de técnico de engenharia iria ser aproveitada e que iria ser integrado numa actividade civil embora como militar.
Que continuasse a aguardar no Quartel-General que em breve teria notícias.

No Clube de Oficiais encontrei o Emílio Guerra, Capitão Miliciano como eu, que comandava a Companhia Operacional de Cabuca.
Ao redor da piscina do Clube de Oficiais eram exibidos filmes num ecrã gigante e lembro-me de aí ter visto "O Comboio Apitou Três Vezes".

A vinte e um de Abril de 1970 fui colocado nos Serviços de Reordenamentos Populacionais no Comando-Chefe, Amura.
Tratava-se de um serviço destinado às populações civis, onde era planeada a execução de uma obra que visava o agrupamento das populações prevendo-se a construção de casas, escolas, postos sanitários, celeiros, poços, bebedoros, fontanários, cercados para o gado e pequenas capelas ou mesquitas conforme a crença religiosa daqueles que iriam usufruir desses equipamentos.


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Algumas notas sobre Nuno Tristão, descobridor da Guiné

Nuno Tristão foi cavaleiro da casa do Infante D. Henrique.
Em 1441, o Infante confiou-lhe o comando de uma caravela ordenando-lhe que explorasse a costa africana para o sul da Pedra da Galé, limite dos anteriores descobrimentos, encargo de que ele se desobrigou descobrindo o Cabo Branco.
Em nova viagem, em 1443, descobriu uma das ilhas de Arguim e a das Graças.
No ano seguinte realizou terceira viagem de descobrimento, atingindo a região senegalense.
E em 1446 velejou para a costa africana pela última vez vindo a ser morto, com outros companheiros, na Guiné.

Gomes Eanes de Azurara relata-nos na sua «Crónica da Guiné» o desenlace da seguinte maneira:
"(...) que sendo este (Nuno Tristão) nobre cavaleiro em perfeito conhecimento do grande desejo e vontade do nosso virtuoso príncipe (D. Henrique), ...de mandar seus navios à terra dos negros (Guiné) e ainda mais avante (...) fez logo uma caravela, a qual armada, começou a sua viagem, não fazendo alguma detença em alguma parte, senão seguir contra (para) a terra dos Negros.
E passando per o Cabo Verde, foi mais LX léguas, onde achou um rio, em que lhe pareceu que deveria haver algumas povoações, pelo que mandou lançar fora dous pequenos bateis que levava, nos quaes entravam XXII homens, scilicet (a saber) em um dez e no outro doze. E começando assim de seguir pelo rio avante, a maré crecia, com a qual foram assim entrando, seguindo contra umas casas que viram à mão direita. E acercou-se que antes que saissem em terra sairam da outra parte XII barcos, nos quais seriam até LXX ou LXXX Guinéus, todos negros e com arcos nas mãos.
E porque a água crecia, passou-se além um barco de Guinéus e pôs os que levava em terra, donde começaram de os assetar, aos quais iam nos bateis. E os outros que iam nos barcos trigaram-se (apressaram-se) quanto podiam para chegar aos nossos, e tanto que se viam acerca, despendiam aquele malaventurado almazem (munições de setas) todo cheio de peçonha, sobre os corpos dos nossos naturaes.
E assim foram seguindo, até chegarem à caravela, que estava fora do rio, no mar largo; porém todos assetados daquela peçonha, de guisa que antes que entrassem, ficaram quatro mortos nos bateis. E assim feridos como iam, ataram seus pequenos bateis ao bordo do seu navio, começando de o aparelhar para fazerem viagem, vendo o perigoso caso em que estavam; mas não puderam levantar as âncoras, pela multidão de setas de que eram combatidos, pelo que lhes foi forçado de cortarem as amarras, que não lhes ficou alguma.
E assim começaram a fazer vela, deixando porém os bateis porque não os puderam guindar (subir). E assim dos XXII que sairam fora, não escaparam mais que dous, scilicet (a saber) um André Dias e outro Álvaro Costa, ambos escudeiros do Infante (D. Henrique) e naturais de Elvas; e os dezanove morreram, porque aquela peçonha (veneno) era assim artificiosamente composta, que com pequena ferida, somente que aventasse sangue, trazia ao seu derradeiro fim.
Ali foi morto também aquele nobre cavaleiro Nuno Tristão(3) mui desejoso desta vida (...)."


(1) - Raquel Soeiro de Brito
(2) - Povoações africanas formadas por algumas palhotas.
(3) - Ao sul da Guiné-Bissau há um rio chamado Nuno, aquele em que a tradição diz ter morrido Nuno Tristão.

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Nota do editor

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