sábado, 30 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12369: Roteiro de Bafatá, a doce, tranquila e bela princesa do Geba (Fernando Gouveia) (6): O café do sr. Teófilo (Parte II): um homem amargurado que sabia demais? (Manuel Mata)





Guiné > Zona leste > Bafatá > c. 1968/70 > Foto do álbum do Fernando Gouveia [, ex-alf mil rec inf, Cmd Agr 2957, Bafatá, 1968/70] > Foto nº  11 > Legenda: 1 – Estrada para Bambadinca, logo a seguir à rotunda; 2 – A minha casa;  3 – A casa e restaurante do Sr. Teófilo.

Foto (e legenda): © Fernando Gouveia (2013). Todos os direitos reservados.



1. Texto do Manuel Mata, com data de 29/3/2006, publicado na I Série (*):

Caro Luís Graça:

Volto à questão do Teófilo ser ou não um presumível informador... da PIDE/DGS (**). Não creio!... Com o devido respeito, e que me perdoe a família por estar a referir o seu nome e passagens do meu convívio com o seu familiar, mas são memórias de uma época que gosto de partilhar embora com alguma imprecisão, já que vão decorridos 36 anos, e os neurónios por vezes já não respondem a 100%.

O Esq Rec Fox 2640 [, Bafatá, 1969/71] tinha um sistema rotativo do serviço de vagomestre, à messe de Oficiais e de Sargentos. No mês que coube ao 1º Srgt Mecânico (já falecido), as refeições ao longo das primeiras semanas foram quase sempre à base de peixe do rio, pescado na zona de Sonaco, a nordeste de Contuboel.

 Eu levava granadas defensivas ou ofensivas que eram posteriormente justificadas em combate, questão que o 1º Sargento resolvia para que eu não tivesse problemas com o Comandante do Esquadrão. Lá seguíamos nós (ele, a esposa, o filho de 3 a 4 anos de idade e eu por vezes), numa Peugeot de caixa aberta e, chegados a Sonaco, dois Guineenses com canoas conduziam-nos pelo Rio...Granada aqui, granada acolá, lá vinha o peixe à tona da água, mergulhava um dos guias para apanhar o peixe...

Um certo dia, o pessoal do Esquadrão já estava saturado... O Comandante, Capitão Fernando Vouga, mandou que se atirasse tudo ao lixo e exigiu cabrito para o almoço. E assim foi! Nesse mesmo dia, passei pelo café do Teófilo, fez-me logo o comentário:
– Então, o mecânico não se contenta só com o que rouba ao civis na reparação das viaturas!? Vai pagar tudo!

O Esquadrão teve em determinada altura algumas armas de caça automáticas, de cinco tiros, que o pessoal podia requisitar para os seus tempos de lazer. O 1º Srgt mecânico era um dos elementos que as utilizava para a caça nocturna.

Uma noite, em que por casualidade o não acompanhei, foi coadjuvado pelo 1º Cabo Cozinheiro, cerca das 24 h, ao tentar regressar à viatura com o carregamento de lebres, o guia diz estar desorientado e não saber onde se encontrava a carrinha. O sargento deu-lhe algum tempo para se orientar na mata. Este continuou a dizer que não conseguia ir ter à carrinha. O sargento apontou-lhe a espingarda à cabeça e disse:
– Ou encontras já o transporte ou disparo!

O rapaz lá seguiu e, mal dada uma meia dúzia de passos, eis a carrinha à sua frente.

Guiné > Zona leste > Sonaco > Rio Geba > Bafatá > 1970 > Foto nº 1 > A pesca à granada... Na foto o Manuel Mata (à esquerda) 


 Foto (e legenda):  © Manuel Mata (2006). Todos os direitos reservados





Guiné > Zona leste > Bafatá >  1970 > Foto nº 2  O milagre dos peixes... 

Foto (e legenda): © Manuel Mata (2006). Todos os direitos reservados



Posteriormente, passo pelo Café do Sr. Teófilo (parece que o estou a ver de bengala na mão, sentado na sua cadeira de braços, do lado esquerdo da porta do café)... Quando pus o pé no patamar, disse-me logo em voz baixa:
– Então o teu amigo mecânico ontem à noite ia ficando na caça?

Observei no mesmo tom:
– Como sabe? – Respondeu:
– Já te disse que sei tudo – e acrescentou:
– Não perde pela demora!

Semanas mais tarde, estando o 1º Sargento em casa, entre as 21 e as 23 horas, de um determinado dia, bateram-lhe à porta dizendo:
– Foge com a mulher e o menino, eles vêm para te matar!.

Não foi por o Teófilo ser um presumível informador da PIDE/DGS, como se dizia, mas por haver fortes duvidas, quanto à sua ligação ao PAIGC, e ao mesmo tempo viver num bairro [, a Tabanca da Rocha,] onde viviam elementos do IN, que chegou a estar tudo de prevenção em Bafatá, com o material bélico apontado para a zona, incluíndo o Pelotão de morteiros sediado no Batalhão, para queimarem a área... Felizmente imperou o bom senso.

Não creio que o Teófilo fosse um informador [da PIDE/DGS] mas socorria-se desse subterfúgio para camuflar outras facetas.

Falando em PIDE/DGS, recordo um elemento que estava em Bafatá, muito activo, de quem não me recordo o nome, mas penso ser da área de Castelo Branco: conseguiu descobrir (sempre andando na sua bicicleta) onde o pessoal do IN se reunia numa tabanca próximo da Ponte Salazar, no Rio Geba. Várias vezes o vi fazer o percurso da pista de aviação com destino a essa tabanca. Certo dia comentei com o Teófilo esta situação. Resposta curta e directa:
– Esse não sai de cá com vida!

Algum tempo depois, na referida tabanca, o pessoal reunido, lá aparece o elemento da PIDE/DGS, deram-lhe tanta pancada que foi evacuado de helicóptero...Por sorte, passava nesse momento o jipe da patrulha, o que levou os agressores a fugir e a aparecer gente para socorrer a vítima.

Comentário do Sr. Teófilo após o acontecimento:
– Eu não te disse? Já pagou! – Acrescentei eu:
– Sabe que o indivíduo já me tinha convidado para ingressar na PIDE/DGS, ele fazia-me o requerimento ao Director Rosa Casaco e eu quando regressase a Lisboa entrava logo ao serviço (claro não era serviço que se coadunasse com a minha forma de ser e de estar na sociedade)... 

O Teófilo ficou furioso e fez o seguinte comentário:
– Esse porco já teve o que merecia!

Foram estas situações, vividas e outras, que sempre me levaram a acreditar na sua inocência nesse campo, tanto mais que por vezes me dizia:
– A coluna que se realiza no dia x vai ser emboscada... 

E era fatal como o destino. Quando foi o ataque a Bafatá, ele já o tinha previsto, umas semanas antes.

Manuel Mata [ex-1º cabo, Esq Rec Fox 2640, Bafatá, 1969/71]

2. Comentário de L.G.:

Manuel Mata: este teu testemunho é precioso... Eu nunca insinuei que o Teófilo fosse da PIDE/DGS (ou que colaborasse com o PAIGC)... Além disso, o senhor já morreu e merece o nosso respeito. 

Ele, muito possivelmente, como outros velhos colons (na Guiné, em Angola, em Moçambique, em Cabo Verde, em São Tomé e Príncipe...) deveria ser contra a situação (ou seja, o regime político então vigente desde 1926)... Só assim se explica que ele tivesse sido deportado para a Guiné no princípio dos anos 30, conforme a tua versão (e a versão que corria em Bafatá, no meu tempo)... 

Nalguns sítios (como Bambadinca, que eu conheci melhor) havia a suspeita de os comerciantes locais serem também informadores da PIDE/DGS ou jogarem com um pau de dois bicos... Podemos perguntar hoje se, em contexto de guerra, ou contexto daquela guerra,  eles tinham alternativa...

Eu penso que, aos olhos da tropa, isso deverá ter acontecido  não só em Bafatá e em Bambadinca como noutras circunscrições e  postos administrativos, naquelas ocalidades de maior ou menor importância onde ainda houvesse comerciantes (independentemente da sua origem, portugueses, caboverdianos ou libaneses)... Muitos dos nossos miliatares tinham esse preconceito ou estereótipo: comerciante ou era turra ou era informador da PIDE...ou até uma coisa e outra. Muitos de nós, em contrapartida, nunca puseram essa hipótese em relação a alguns dos oficiais que nos comandavam ou dos sargentos do quadro que comiam à mesa connosco e até acamaradavam connosco...

Quanto a esse  história do agente  da PIDE/DGS que levou porrada numa tabanca... .Ouvia-a eu,  ao próprio, em Bafatá, creio que na Transmontana (ou foi no café do Teófilo ?, não posso jurar): iam-lhe cortando o nariz, à dentada...  Lembro-me de ouvir a conversa dele (eu, algo incomodado, com a presença dele e doutro agente, numa mesa de alferes e furriéis milicianos de Bambadinca)... O fulano – que, se bem me lembro, falava alemão, por ter sido imigrante, com os pais, na Alemanha – estava lixado com o Spínola, por que na época (c. 1970) não se podia fazer justiça por mãos próprias... Enfim, ainda bem que havia leis, havia tribunais, e estava em curso a política da "Guiné Melhor"...

De qualquer modo, nunca cheguei a saber onde era a delegação da PIDE/DGS em Bafatá... Por outro lado, a sua colaboração com as NT (e vice-versa) era considerada, mais ou menos, como uma coisa normal...
________________

Notas do editor:

4 comentários:

Antº Rosinha disse...

Lá terei que meter o bedelho novamente.

Mais do que chefes de posto, governadores, ou mesmo missionários eram os comerciantes, fazendeiros e gente que vivia isolado com os africanos que sabiam lidar com brancos e com pretos.

A tropa metropolitana quando terminava os 24 meses de arame farpado e Unimog, saía das colónias sem ter conhecido na realidade os brancos antigos colonos.

E como vinha instruído pelos milicianos em geral contra o salazarismo/colonialismo, via estes colonos como o causador de ele estar ali de arma na mão.

Como tal evitava o diálogo aberto e franco com os "civís"

Os meus treze anos de guerra em Angola, dão-me o direito de dizer que os militares portugueses viam os futuros "retornados" com gente a evitar.

Foi triste esta realidade, e hoje (este post) vemos este diálogo a perguntar-mo-nos quem era o comerciante Teófilo como sendo alguem em quem não se podia confiar.

Se este Teófilo foi um deportado ou não, eram conhecidos vários deportados desde o histórico Zé do Telhado por exemplo.

Mas as deportações últimas foram as da revolta de 1926 mas que não têm a ver com Estado Novo/Salazar.

Este foi o Tarrafal.

Os meus treze anos de guerra de ultramar dizem-me que a maioria dos comerciantes das ex-colónias, em que alguns eram já naturais de lá, podiam já ter filhos brancos ou mestiços que podiam ser "anti-salazaristas/colonialistas", mas eram admiradores da política colonial de Salazar.

Eles sabiam que aquela política estava a evitar a desgraça dos países já independentes.

Os comerciantes tinham o povo africano do lado deles, e eles confiavam e tinha a protecção do povo.

O povo protegia-os dos turras.

Nem a PIDE, profissão de ganha-pão, nem a tropa chegou a entender os velhos colon.

Os tugas, somos mesmo estranhos.

Antº Rosinha disse...

Em tempo: A camionete vermelha que se vê estacionada na Foto é um camião basculante Magirus Deutz.de transporte de terras.

Provavelmente seria da Tecnil, pois Bafatá- Gabu-Pitche e Bambadinca foram estradas deles.

Fernando Gouveia disse...

Muita sorte tiveram os camaradas que andaram a peixe. Eu comia, com mais meia dúzia de alferes, na messe de oficiais do Esquadrão. Até vir o Esq.2640 a messe era dirigida, mensalmente, por cada um de nós. Com o Cap. Fernando Vouga a nossa messe passou a ser dirigida por um tal vagomestre, que de mestre não tinha nada a não ser a ganância do lucro. A comida passou a ser, diariamente, feita à base de carne de porco que era só gordura. Conclusão, os últimos três dias da minha comissão passei-os a comer, só cozidos, na Transmontana, pois já não aguentava nada no estômago. Soube mais tarde que além dos protestos do Capitão também outros alferes deixaram de comer na messe.
Um abraço a todos
Fernando Gouveia

JD disse...

É interessante este tema do relacionamento dos comerciantes do mato com a população local e com a tropa. E o Rosinha refere-se muito acertadamente sobre sobre alguns equívocados conceitos.
Os comerciantes penetraram no mato precedendo largamente a civilização. Muitos deles estabeleceram laços conjugais, foram pais de mulatos, e charneira das relações entre brancos e pretos. Tiveram que aprender a viver entre dois pólos, por vezes de interesses opostos. Depois deles chegou a administração pública, a escola, os postos sanitários, os correios, etc.
De entre eles, como na sociedade em geral, uns distinguiam-se pelo escrupulo, e outros pela falta de escrupulos. Assim como na tropa, em sequência ao comentário do Fernanda Gouveia, havia uns de um género, e outros do outro. Por isso, algumas vezes, estabeleciam-se pactos de sociedade entre comerciantes e militares, em que os segundos tinham como papel no negócio, desviar do colectivo alguma mercadoria para comerciantes, que depois era colocada no mercado com "lucros" para aqueles intervenientes.
Na C.Caç.2679, logo que entrou em quadrícula isso foi evidente, tanto ao nível de géneros alimentares e de bebidas, mas, principalmente, ao nível da gasolina, que era paga pela Companhia, e não chegava a sair da Casa Gouveia, onde um empregado se concumunava com o capitão e dois sargentos.
Mas os comerciantes sérios, que faziam a sua vida com observância dos costumes e necessidades das populações, esses constituíam as melhores representações do colonialismo, lá onde as pessoas pouco se importavam com políticas, e não chegavam os agentes do Estado, tantas vezes corporizado pelos comerciantes, a quem só interessava a harmonia social na tradição ancestral.
Foram as relações entre os menos escrupulosos que frequentemente conduziram a tropa a considerações sobre a defesa dos "explorados", e à desconsideração que alguns manifestaram relativamente aos compatriotas de África, quando tomavam a núvem por Juno, e correspondiam aos manipuladores das ideologias sobre "os novos ventos da história", que ainda hoje se repimpam sobre o que resta do espólio dessas atribuladas épocas.
É só lá irmos para constatarmos "o ódio" que ainda nos dedicam, como eu já constatei dos dois lados de África, e muitos camaradas que ali continuam a deslocar-se, em trabalho, ou em viagens de férias e de saudade.
E para esclarecimento final, afirmo aqui o meu anti-Salazarismo que prolongou e pactuou por demasiado tempo com as empresas verdadeiramente colonialistas, que abrigavam nas administrações antigos governantes, muitos com vagas impressões sobre África.
JD