segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Guiné 63/74 - P14965: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (14): Contos da Guiné: Ansumane, o caçador de crocodilos (Virgínio Briote, ex-Alf Mil Comando)

1. Publicamos hoje o conto "Ansumane, o caçador de crocodilos", enviada, a nosso pedido ao Blogue, pelo camarada Virgínio Briote (ex-Alf Mil da CCAV 489, Cuntima e Alf Mil Comando, CMDT do Grupo Diabólicos, Brá; 1965/67), em mensagem do dia 28 de Julho de 2015:

Contos da Guiné

Ansumane, o caçador de crocodilos*

A inquietação que sentia contrastava com a calma daquela noite de lua cheia nas margens do rio. Boa noite, patrão, o Braima, camisa a arrastar pelo chão, gorro de lã na cabeça, cachimbo há que tempos nos dentes. Braima Dáfé, pés grandes, seco, resistência incomum, dia a dia a remar a canoa entre as margens, levando a mancarra que os nativos tinham para vender aos comerciantes. Patrão, tem canoa ali na margem, quer passar?


Rio acima, a brisa fresca e mansa a dar-lhes, o chlap chlap do remo, a agitação a dissipar-se, pouco e pouco a vida a ficar para trás até desaparecer, dobrada a curva do rio. E logo ali, entre os tufos das palmeiras, duas árvores despidas, encostadas uma à outra, ramos entrelaçados de tal forma que àquela distância, lhe pareciam duas pessoas abraçadas uma à outra, uma delas com um braço erguido como se pedisse auxílio ao céu. O que é aquilo, Braima? Eh, patrão, aquelas árvores são pessoas! Sim, patrão, há muito tempo.

Nem tinha ainda nascido o avô do meu avô. Quando as mulheres adúlteras eram castigadas com o desprezo, às vezes até com a morte. No tempo em que havia respeito pela honra, não era como agora. Pois nesse tempo, uma bajuda chamada Kadi foi prometida ainda menina ao poderoso Bacar Seidi, um velho rabugento já com oito mulheres.

Kadi a crescer, o coração fraco a palpitar começou a inclinar-se para Ansumane, caçador de crocodilos, o mais famoso da região. Ansumane correspondia, queria mesmo casar com ela, mas o pai já a tinha prometido a outro, mais dotado que o caçador, a coragem como único dote. Olhavam-se com aqueles olhos que toda a tabanca via, nos batuques Kadi a dançar, seios para cima e para baixo, as ancas fartas, os olhos de Ansumane. Ele bem gostava de satisfazer o seu corpo, ela de casar com ele, ai dela, tinha que cumprir a palavra de seu pai, casar com Bacar Seidi.

Passaram tempos, muitos mesmo até que um dia, com grande desgosto de Ansumane, Kadi foi entregue a Bacar Seidi, e outras luas passaram. Ansumane sem conseguir desviar-se para outra, rodeava a morança, procurava nem que fosse só vê-la, os dias a passarem-se, ele sempre a magicar como a havia de convencer a ser dele, a vontade de caçar crocodilos a passar. O homem dela, conhecedor da amizade que os unia, vigiava as redondezas, nunca se sabe. Até que um dia as febres tomaram conta de Bacar Seidi. Ansumane, na sua ronda nocturna como era costume, viu a adorada Kadi, ao ar fresco da noite na varanda. Kadi, como um assobio baixo, ela a correr, o impulso do coração mais forte que o chamamento dele, para os braços do amado. Tens que ser minha, não posso Ansumane, eu sou do Bacar, ele é o homem a quem Alá me entregou! Mas ele é velho e tu não gostas dele, tu gostas de mim, eu sei! É verdade, Ansumane, mas ele é o meu homem e eu a sua mulher, Ansumane a apertá-la mais contra o seu peito, mãos nervosas nos redondos de Kadi, aquele corpo jovem, ela a estremecer, um delírio, ele a insistir Kadi, vem comigo, fujamos, tenho a canoa na margem, se atravessarmos pela bolanha depressa chegamos! Vamos Kadi, para um lugar que ninguém nos conheça, onde o teu homem nunca nos alcance. Kadi mesmo junto ao coração dele, a tentação mais forte, o corpo a palpitar, Ansumane sim, é um homem jovem, viçoso, meu homem é velho.

Mão na mão, a passos largos na estreita vereda, a serpentear pelas palhotas, a bolanha, a seguir a margem do rio. Junto à sebe da purgueira, o sussurrar da brisa agitou as ramagens do arbusto. Não contavam, estremeceram, abraçaram-se como se estivessem mais protegidos. Acharam que não podiam esperar mais. E no silêncio da noite, deram-se um ao outro, as estrelas a brilharem como testemunhas. Ficaram esquecidos, a onda de loucura passara, Kadi em si, o erro agora sem remédio, não podia voltar para o seu homem, tinha mesmo que fugir com Ansumane. Vamos depressa antes que Bacar dê pela minha falta, vamos.

Na morança, Bacar há muito que despertara a arder em febres, se tomasse um chá de buco talvez ficasse melhor, diria a Kadi que lho preparasse. Kadi, Kadi, a voz dele a voltar para trás. Ergueu-se um pouco para ver a esteira de Kadi, devia estar a repousar, não a viu, Kadi, outra e outra vez, o eco sem resposta. Onde estaria Kadi a esta hora que ninguém está fora das moranças, obra de Ansumane, seria? A cólera deu-lhe forças, levantou-se, a espada de gume curto na mão enrugada, correu para o rio, o que as pernas deixavam, um pressentimento estranho.

Não queria acreditar, as febres, Kadi mão na mão de Ansumane a caminho do rio a dois passos. Não conseguindo alcançá-los, Kadiii, um grito áspero de gelar a chegar até eles. Estacaram, tolhidos sem poder mexer-se! Que Alá os livrasse da vingança no fio da espada, tão cortante como a voz que os fizera deter, incapazes de mais um passo que fosse! Morrer! Não, ela não queria morrer às mãos de Bacar, os braços a rodear o corpo forte de Ansumane, mais protegida da fúria de Bacar. Morrer! Não, ele não queria, nem a morte de Kadi que agora mais que nunca era sua. E erguendo-se para o céu pediu a Alá que os protegesse.

A prece foi ouvida. Quando Bacar já a curta distância, a espada no ar prestes a abater-se sobre as cabeças, Alá livrou-os da morte, transformou-os em árvores! Foi assim que um pedaço de pau encontrou a espada de Bacar! Dizem que hoje, tantas luas passadas, em noites de tempestade ainda escorrem gotas de sangue daquele lanho já seco pelos tempos!

Quando Braima acabou a história, fixou melhor as estranhas árvores, a ver se via nelas a infeliz história de Ansumane, o caçador de crocodilos, a fantasia das palavras de Braima ainda no ar. O silêncio daquela noite brilhante foi subitamente quebrado por um uivo, sinistro de um cão. Braima respondeu com um prolongado eh! eeeeh! E estalou repetidamente com a língua… Quando os cães uivam é sinal que algum mal está para acontecer! Vamos embora, patrão, é melhor! Duas remadas fundas viraram a canoa em direcção à vida.

Uma lenda que ouvi lá.

VB
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Notas do editor

(*) Este conto havia já sido publicado, na I Série do nosso Blogue, em 17 de Outubro de 2005 no poste > Guiné 63/74 - P223: Tabanca Grande: Virgínio Briote (ex-Alf Mil Comando, Cuntima e Brá, 1965/67) e a história de Ansumane, caçador de crocodilhos (conto tradicional)

Último poste da série de 1 de Agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P14957: Nas férias do verão de 2015, mandem-nos um bate-estradas (13): O meu amigo e camarada Joaquim Jorge, da CCAÇ 616 / BCAÇ 619 (Empada, 1964/66), que vive hoje em Ferrel, Peniche, e que eu não vejo há 50 anos (João Sacôto, ex-alf mil, CCAÇ 617 / BCAÇ 619, Catió, Ilha do Como e Cachil, 1964/66)

6 comentários:

Juvenal Amado disse...

Bom dia camarada Virginio

Ler uma boa estória é uma forma maravilhosa de começar o dia . Que bem que a escreves.
Obrigado por a partilhares.

Um abraço

Hélder Valério disse...

Bonito!....

Donde se prova que em qualquer lugar da terra, onde há pessoas, há lendas, há histórias e estórias, compondo o imaginário.

Hélder S.

Luís Graça disse...

Tantas histórias, fulas, mandingas, balantas... que ouvimos e que não registámos, que a memória nunca é de fiar. Obrigado por esta lenda, tão universal e tão local: afinal, o amor pode ser mais forte que a vontade dos poderosos...

Vb, acabo de estar com o Fernando Marques Matos... Falei-lhe dos teus escritos... Ele manda um grande abraço para ti. LG

Anónimo disse...

Por essas bandas só pode ser boas férias, Luís. E obrigado pelas palavras de incentivo.
E ao Marques de Matos, se o encontrares (perdi o nº telef. dele), um abraço forte do Camarada que muito o apreciou.
V Briote

Bispo1419 disse...

Olha que tesouro aqui encontrei! Que bela surpresa e que prazer de leitura! Como me foi (é) gostoso "comer" tão boa escrita!

Um grande abraço, meu caro Vítor Briote.
Manuel Joaquim

Cherno AB disse...

Caros amigos,

Antes do mais quero juntar a minha voz a dos demais para felicitar ao V. Briote pela excelencia da escrita e a fidelidade na transcricao do conto mandinga que conseguiu transmitir em poucos paragrafos toda a forca da tradicao oral imprimida ao longo dos seculos nos contos tradicionais oeste africanos.

Neste conto esta patente a capacidade de adaptacao da cultura e da tradicao oral dos povos quando o narrador utiliza os nomes que na epoca sao mais valorizados mesmo se a sua adopcao era relativamente recente, por exemplo: Kadi, Ansumane, Bacar que sao nomes de origem arabe, respectivamente: Cadija (primeira esposa do profeta Mohamed), Othman (o nome de um dos companheiro do Profeta e terceiro Califa dos muculmanos) e Abubacar (amigo fiel, companheiro do profeta e primeiro Califa dos muculmanos apos a morte do Profeta).

Esta realidade aparece justificada e de certa forma desmistificada com a utilizacao da frase no inicio do conto: "Nem tinha ainda nascido o avo do meu avo..." que, feitas as contas, remonta a um periodo indefinido no tempo, mas que, na pior das hipoteses, corresponderia a um periodo anterior a islamizacao dos mandingas, pelo menos a nivel do povo simples, que como eh sabido comecaria com a batalha de Kansala que pos fim ao reino mandinga de Gabu ou Kaabu.

Antes da islamizacao, os nomes utilizados no seio dos fulas e mandingas eram diferentes assim como a sua valorizacao cultural.

Com um abraco amigo,

Cherno AB