Carlos de Matos Gomes (1946-2025), escritor Carlos Vale Ferraz

Queridos amigos,
Foi na apresentação do mais recente livro de José Brás, na Casa do Alentejo, que estive presencialmente com Carlos de Matos Gomes, já ele denotava um visível abatimento. Foi uma estima de cerca de um quarto de século, tínhamos sempre histórias para contar, livros para a permuta, momentos houve nos nossos diálogos em que eu pressentia nas suas perguntas a procura de respostas para o contexto das suas obras. Eu confessava-lhe a minha incredulidade, nunca percebi como é que ele arranjava tempo para tanta escrita, creio que a invasão da Ucrânia lhe deu ensejo para artigos quase diários que ele enviava para amigos e para a imprensa, e escreveu mesmo recentemente uma obra só com as suas reflexões políticas. Pertenceu ao núcleo fundador do MFA/Guiné, tal como Sales Golias e Duran Clemente. Não hesito em dizer que Nó Cego é referência máxima da literatura da guerra colonial, mas a sua autobiografia, Geração D, é um depoimento enriquecedor dos valores em que ele acreditava como cidadão e homem independente da esquerda.
Um abraço do
Mário
Recordar o meu amigo Carlos de Matos Gomes, o escritor Carlos Vale Ferraz
Mário Beja Santos
Carlos de Matos Gomes não ficou insensível às laudes que teci ao seu romance Nó Cego, teve a sua 1.ª edição em 1983. Tendo eu procurado compulsar o que de mais significativo se escreveu na literatura da guerra colonial, dei este romance como obra-prima absoluta, e mantenho sem hesitação tal qualificação.
A nossa aproximação aconteceu quando um dia, num alfarrabista de Campo de Ourique, de saudosa memória, encontrei uma dúzia de exemplares de outra obra sua, Soldadó, uma narrativa humorística sobre um herói fruto do acaso, obra injustamente esquecida, telefonei-lhe para lhe anunciar a oferta, marcámos encontro à hora de almoço. E assim preparámos mais de um quarto de século de encontros amistosos, trocas de referências, cumplicidades. E dez dias antes do seu passamento telefonei-lhe para lhe pedir ajuda quanto a detalhes daquela operação a Cumbamori, onde ele esteve numa das frentes da operação do Batalhão dos Comandos Africanos. Disse-me que ia fazer tratamentos na Fundação Champalimaud, “mais uma batalha, a ver o que acontece, depois voltaremos à fala”.
Não voltámos, fui-me despedir dele no velório, na Capela da Bemposta, agradeci-lhe tudo quanto me ensinou, por exemplo, o livro que escreveu com Aniceto Afonso, Guerra Colonial, Porto Editora, 2020, é um monumento de precisão e rigor, demorará muitos anos a ser reatualizado e enriquecido. E a sua obra autobiográfica Geração D, também da Porto Editora, 2024, é de uma sinceridade tocante, um poderoso testamento político.
Mas há um livro de 2017, A Última Viúva de África, que continuo a reter pelo deslumbramento da escrita, em sua homenagem aqui deixo alguns desses parágrafos que selecionei como eloquentes. Logo a dedicatória:
Mas há um livro de 2017, A Última Viúva de África, que continuo a reter pelo deslumbramento da escrita, em sua homenagem aqui deixo alguns desses parágrafos que selecionei como eloquentes. Logo a dedicatória:
Aos que se interrogam.
Aos que vivem e deixam um rasto.
Aos que procuram as nascentes dos rios.
Aos que sofrem a inevitável derrota que sempre sucede quando um tirano esgota a esperança do seu povo e manda os seus soldados combater numa terra de que não é rei.
Aos meus netos e a todos os netos, para que tenham um futuro.
O fulcro da história é uma tal Madame X, o nome de código de uma informadora residente em Leopoldville, onde os movimentos independentistas angolanos, em particular a UPA/FNLA, tinham a sua base de onde recebiam o apoio político de Mobutu. No romance ela é Alice Oliveira, nascida e criada no Minho, emigrou para o continente africano, tornar-se-á, nesses tempos turbulentos do início da República do Congo em que havia mercenários que combatiam a favor da separação do Catanga, tornou-se numa informadora exímia, várias polícias secretas ficarão a dever favores, acabou por intervir nos acontecimentos de Angola, em 1975, e no fim do Apartheid na África do Sul, já nos anos 1990. Vai aparecer como amiga de Jean Scrame, um dos míticos comandantes das tropas mercenárias. Alice Oliveira, que se considerava a última viúva de África, iria morrer na Nova Zelândia. O filho, que ela viera entregar ainda bebé aos avós, em Portugal, pretendeu trazer o seu corpo lá para o Minho, depositá-lo numa igreja, consagrada como o Panteão. E assim começa a história.
Uma empresa cinematográfica vai centrar-se num filão promissor, parece um bom argumento, lá num ponto do Minho um milionário quer prestar uma homenagem à mãe, transferi-la de um outro continente para uma capela da quinta, uma equipa desloca-se, iremos ouvir falar de Miguel Barros, será uma figura central, cabe-lhe ilustrar acontecimentos que envolvem a Madame X e Jean Scrame, comandante dos Leopardos.
Ao chegar ao acampamento de Jean Scrame, caía o dia, Miguel Barros deparou-se com um inesperado cenário de dezenas, centenas de fogueiras.
“Miguel Barros viu reunidos na messe, numa bacanal à volta de uma mesa coberta por uma toalha de bordados de Bruxelas, com travessas de loiças de Limoges cheias de restos de antílopes assados, de javalis, de macacos, garrafas de champanhe, copos de cristal da Bohemia, trazidos nos saques às casas abandonadas pelos colonos. Uma mulher grande e loira, que usava cremes e pós para a maquilhagem como se fossem estuque para cobrir fendas nas paredes, servia pedaços de carne abanando as mamas espremidas num vestido de seda costurado para o corpo de uma colona magra fugida da independência. Os homens gritavam pelo nome dela: ‘Ivette!’. Ela levantava a saia para deixar ver parte das coxas. Bebiam pelo gargalo garrafas do caríssimo champanhe Dom Pérignon, da Moët et Chandon, abandonado nas fazendas e nas lojas, a aguardar os dias de festas que nunca mais alegrariam. Só um deles, a um canto, de tronco nu, de cabeça rapada à navalha, com uma cruz de ferro pendurada por uma fita ao pescoço, bebia cerveja e berrava em alemão. O mercenário viera das estepes geladas para as savanas em brasa de África continuar a matança de comunistas e eliminação das raças inferiores.”
Vamos agora ver Miguel Barros no Victoria Hotel, em Stanleyville:
Vamos agora ver Miguel Barros no Victoria Hotel, em Stanleyville:
“Do Tennis Club de Stanleyville e do Cercle Hippique restavam os courts e as pistas cobertas de vegetação. No antigo hospital para os europeus estavam agora negros sentados à porta, à espera, eternamente à espera, afastando moscas e entrelaçando as cabeleiras. Das paredes dos edifícios iam desaparecendo os anúncios de agências de viagens da Wagons Lit e do American Express, de oficinas de mecânica e de stands de automóveis, de empresas de construção civil, de médicos e dentistas que já não davam consultas. As placas, tão esburacadas de tiros como as estradas pelas falhas de alcatrão continuavam a indicar as direções de Leopoldville, Elizabethville, Kampala, Goma.
Dos cerca de 5 mil europeus que residiam em Stanleyville e arredores antes da independência, restavam menos de metade. Quando desembarquei em Stanleyville corriam boatos entre os negros assimilados e os europeus que ali permaneciam da tomada de zonas importantes da Província Oriental pelos Simbas do Exército Revolucionário de Pierre Mulele. Em agosto, os Simbas capturaram Stanleyville – uma guarda avançada de apenas quarente negros drogados, descalços e armados de catanas, liderados por xamãs cobertos de peles de animais, com guizos de cobra nos pulsos e nos tornozelos, mascarados com cabeças de macacos. Em poucas semanas, cerca de metade do Congo caíra sobre o controlo dos Simbas. As portas do inferno tinham sido abertas. O monumento a Lumumba na praça central de Stanleyville transformou-se num altar onde Nicolas Olenga e os seus lugares-tenentes sacrificaram o que restava da antiga elite mestiça e europeizada de Stanleyville, os que se designavam como évolués. Ali foram levados, nus, os políticos, os jornalistas, os professores acusados amigos dos brancos, de traidores, e esventrados de pé, de mãos amarradas, retirados os fígados com eles vivos e dados a comer aos pigmeus Simbas.”
Mais tarde, deu-se o contra-ataque, vieram os paraquedistas, entraram depois em Stanleyville os Terríveis, comandados por Jean Scrame e mercenários brancos. Saquearam as povoações vizinhas, incendiando-as com os habitantes no interior das casas.
” Durante vários dias continuaram os tiros por toda a parte, principalmente para os lados do rio, onde eram executados os Simbas que não conseguiram escapar e os que não os haviam apoiado.”
A lei do mais forte passara para Mobutu.
Obviamente que há mais trama neste romance que todo o horror que se viveu naquele período no Congo e posteriormente. A longuíssima carta que Miguel de Barros manda a Inácia Luz ilustra perfeitamente o sucesso cinematográfico com base nesta Madame X, Alice Oliveira, uma espia talentosíssima, a mãe dos mercenários, a guerreira que comanda os mortos, que estabelecera redes de contactos que informou as autoridades portuguesas do que iria acontecer no Norte de Angola, e que torna deslumbrante toda a trama do Romance, ela é a viúva branca de um paraíso perdido com a descolonização.
Ocorreu-me esta obra de Carlos Vale Ferraz, que recebeu o prémio literário Fernando Namora 2018 para lembrar o escritor que legou a mais bela obra da literatura da guerra colonial e uma referência na investigação da História contemporânea de Portugal que me honrou com a sua amizade. E assim me curvo respeitosamente em sua memória.
Junto como apêndice um texto que o Carlos escreveu no blogue A Viagem dos Argonautas sobre este seu romance:
Obviamente que há mais trama neste romance que todo o horror que se viveu naquele período no Congo e posteriormente. A longuíssima carta que Miguel de Barros manda a Inácia Luz ilustra perfeitamente o sucesso cinematográfico com base nesta Madame X, Alice Oliveira, uma espia talentosíssima, a mãe dos mercenários, a guerreira que comanda os mortos, que estabelecera redes de contactos que informou as autoridades portuguesas do que iria acontecer no Norte de Angola, e que torna deslumbrante toda a trama do Romance, ela é a viúva branca de um paraíso perdido com a descolonização.
Ocorreu-me esta obra de Carlos Vale Ferraz, que recebeu o prémio literário Fernando Namora 2018 para lembrar o escritor que legou a mais bela obra da literatura da guerra colonial e uma referência na investigação da História contemporânea de Portugal que me honrou com a sua amizade. E assim me curvo respeitosamente em sua memória.
Junto como apêndice um texto que o Carlos escreveu no blogue A Viagem dos Argonautas sobre este seu romance:
A descolonização é um absurdo.
O romance desenvolve a reflexão do absurdo como atributo inerente do fenómeno que é habitualmente designado por “movimento descolonizador” de África feita por várias personagens. No início do romance, o narrador, um jovem português, estudante de filosofia na universidade de Lovaina, na Bélgica, fotógrafo por desejo de aventura, confrontado com as notícias e as reportagens dos tumultos que se seguiram à independência do Congo Belga, em 1960, considera como primeira impressão que os europeus andavam por África a extrair o que necessitavam para viverem melhor nas suas terras de origem, aonde regressariam após a campanha, como os pescadores de bacalhau que cumpriam temporadas na Terra Nova. Ou cumpriam penas de degredo longe das suas pátrias. O narrador apoiava as independências porque considerava um anacronismo a exploração direta de África pelos europeus:
“Para mim, descolonizar constituía uma prova de inteligência. Não apoiava as independências das colónias por ser um direito dos povos colonizados. Não me converti ao anticolonialismo por ideologia, nem por moral, mas por pragmatismo. Quis conhecer os mercenários do Congo e Jean Scrame, em particular, para perceber porque lutava depois de administrar uma propriedade da qual já havia tirado o proveito que lhe permitia estabelecer-se noutro país, ou regressar à Bélgica.”
O narrador comete aqui a mais vulgar das confusões: refere-se, não à colonização, mas ao colonialismo. É de colonialismo que fala. O Congo Belga, como toda a África a sul do Sara, nunca foi colonizado, com exceção da Colónia do Cabo, onde os ingleses ensaiaram o que viria a ser o seu modelo de administração colonial (indirect rule). O Congo Belga (que começou por ser propriedade pessoal do rei dos belgas) foi sujeito ao fenómeno do colonialismo e o colonialismo foi um sistema de exercício violento de direitos de exploração de matérias-primas instituído e acordado na Conferência de Berlim, em 1885, entre potências europeias, para satisfazer as necessidades dos complexos industriais desenvolvidos com a energia da máquina a vapor. O colonialismo é um fruto da máquina a vapor e da revolução industrial.
Até à II Guerra Mundial foi indispensável as potências europeias assegurarem a exploração direta das matérias-primas, depois, passou a ser mais rentável delegar essa tarefa em agentes locais, as elites indígenas entretanto assimiladas e integradas na cultura e nos processos europeus. Mas houve, entre os europeus que foram para África executar tarefas de exploração direta, um grupo que, por razões diversas, assumiu aquelas terras como o seu destino final – que afirmaram ser a África, fosse o Congo, Angola, a Rodésia, Moçambique ou o Quénia, a sua pátria! Em Portugal utiliza-se o termo de “cafrealização” para designar esse processo, na Bélgica ele foi designado por “zairização”. O comandante de mercenários designado no romance como Jean Scrame e a portuguesa Alice Vieira, a última viúva de áfrica, pertencem a esse grupo. O narrador descobrirá, contudo, que nem eles – mesmo assumindo a sua nova identidade de africanos brancos – se opõem ao processo de independência das colónias, a um governo de negros, porque percebem que o sistema de administração e exploração delas se mantém, apenas mudaram os executores diretos, que passaram a ser títeres locais nomeados pelos brancos, europeus e americanos. O colonialismo manteve-se enquanto sistema de exploração de riquezas. O “Movimento Descolonizador” foi apenas uma mudança de tripulação num navio que continuou a realizar as mesmas viagens, transportando os mesmos produtos entre os mesmos portos.
Não existiu qualquer movimento descolonizador, que foi e é apenas uma designação utilizada para referir o movimento de transição da administração das colónias dos funcionários das potências europeias para uma elite de funcionários e políticos negros aculturados – ditos “assimilados” ou évolués, que, no essencial, replicam os métodos dos europeus e servem os seus interesses. Em termos políticos não existe qualquer descolonização. Não existe também qualquer libertação.
Mas não existe também descolonização em termos civilizacionais. Colonizar é a instalação de um grupo de uma dada sociedade no território de outra e implica troca de experiências, saberes, valores, relações comerciais e humanas, de forma mais ou menos pacífica ou mais ou menos violenta. Colonizar é sempre uma exportação de bens civilizacionais, da língua à religião. Entre o colonizador e o colonizado estabelece-se uma relação como a de uma gota de tinta que cai num copo de água. A gota de água dissolve-se e não é possível reconstituí-la, retirá-la da água onde se dissolveu. É por isso impossível reverter a colonização, retirar dos povos colonizados o essencial do que os colonizadores levaram e lhes inculcaram.
Nós, os portugueses devíamos conhecer bem a impossibilidade de descolonizar. Fomos colonizados pelos romanos e pelos árabes, mantemos fortes marcas dessa colonização – não fomos descolonizados até hoje. Colonizámos alguns pontos do mundo, e deixámos lá as nossas marcas, como os romanos e os árabes nos tinham deixado. O Brasil, Angola, Moçambique, a Guiné, Cabo Verde, São Tomé, não foram descolonizados, tornaram-se entidades políticas independentes, estados-nação com bandeira, hino, gravatas de seda ao pescoço dos hierarcas, número de ordem nas Nações Unidas e embaixadores que falam inglês. Tanto o discurso comum da “malvada descolonização”, como da “descolonização possível” são absurdos. O discurso da “entrega” é patológico, com origem na exacerbação de sentimentos que bloqueiam o raciocínio.
As antigas colónias europeias de África não se descolonizaram, não reverteram as instituições de governo introduzidas pelas potências coloniais, retomando as suas tradições do tempo antes da chegada dos colonizadores europeus. Pelo contrário, os dirigentes dos movimentos independentistas, do movimento descolonizador do pós II Guerra, foram particularmente violentos na aniquilação das autoridades tradicionais e dos costumes ancestrais – quase sempre com o aplauso dos antigos colonizadores e das suas instituições, com relevo para a ONU e as suas agências, que os elogiaram pela luta anti-tribalista, tomada como uma acção de modernidade.
O movimento descolonizador dos pós-II guerra é um gigantesco embuste. A descolonização de África foi, de facto, a adoção pelos africanos da “ordem” do colonialismo – constituição de estados-nação com os mesmos princípios dos estados-nação que instituíram o colonialismo, imposição dos seus sistemas políticos e jurídicos, das suas línguas, até dos seus deuses e, principalmente, das suas armas, do canhangulo à AK, do jipe ao Mirage. Não existiu qualquer libertação de África, a África política e a África dos povos estão sujeitas às mesmas regras e normas dos países que enviaram os seus exploradores ao continente africano no século XIX e que o dividiram em Berlim.
O facto de não ter existido nem descolonização, nem libertação de África não é nem bom nem mau – não existiu Mal, nem Bem, nem desastrosa descolonização, nem criminosa entrega, nem falsa libertação, houve sim uma realidade: a imposição por parte das antigas e novas potências coloniais de uma nova grelha de domínio de África, de uma grelha que facilita a relação e a exploração, pois quer uma quer outra se realizam segundo a regra dominante. O resto, o que subsiste da antiga África antes do colonialismo, das danças às mezinhas dos feiticeiros é folclore que serve de atração turística. Resta uma pergunta que Alice, A Última Viúva de África e Scrame, o último dos grandes comandantes de mercenários, colocam: Porque não podem e não puderam eles e os europeus manter-se em África como africanos brancos? Porque não pode ser a África uma pátria de brancos, como foram e são as Américas?
O romance ensaia uma resposta. A ficção é mais adequada a abordar questões difíceis que a análise política e histórica…
_____________
Notas do editor
Vd. post de 13 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26683: In Memoriam (542): Carlos Matos Gomes (1946-2025), membro do MFA no CTIG, cor cav 'cmd', ref, escritor e historiógrafo, e grande amigo da Tabanca Grande
Último post da série de9 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26781: In Memoriam (547): Maria Rosa Exposto, ex-alf enf pqdt (Bragança, c. 1940 - Portalegre, 2021), pertencia ao 4º curso (1964) e passou pelo CTIG... Rosa, que descanses em paz!
O narrador comete aqui a mais vulgar das confusões: refere-se, não à colonização, mas ao colonialismo. É de colonialismo que fala. O Congo Belga, como toda a África a sul do Sara, nunca foi colonizado, com exceção da Colónia do Cabo, onde os ingleses ensaiaram o que viria a ser o seu modelo de administração colonial (indirect rule). O Congo Belga (que começou por ser propriedade pessoal do rei dos belgas) foi sujeito ao fenómeno do colonialismo e o colonialismo foi um sistema de exercício violento de direitos de exploração de matérias-primas instituído e acordado na Conferência de Berlim, em 1885, entre potências europeias, para satisfazer as necessidades dos complexos industriais desenvolvidos com a energia da máquina a vapor. O colonialismo é um fruto da máquina a vapor e da revolução industrial.
Até à II Guerra Mundial foi indispensável as potências europeias assegurarem a exploração direta das matérias-primas, depois, passou a ser mais rentável delegar essa tarefa em agentes locais, as elites indígenas entretanto assimiladas e integradas na cultura e nos processos europeus. Mas houve, entre os europeus que foram para África executar tarefas de exploração direta, um grupo que, por razões diversas, assumiu aquelas terras como o seu destino final – que afirmaram ser a África, fosse o Congo, Angola, a Rodésia, Moçambique ou o Quénia, a sua pátria! Em Portugal utiliza-se o termo de “cafrealização” para designar esse processo, na Bélgica ele foi designado por “zairização”. O comandante de mercenários designado no romance como Jean Scrame e a portuguesa Alice Vieira, a última viúva de áfrica, pertencem a esse grupo. O narrador descobrirá, contudo, que nem eles – mesmo assumindo a sua nova identidade de africanos brancos – se opõem ao processo de independência das colónias, a um governo de negros, porque percebem que o sistema de administração e exploração delas se mantém, apenas mudaram os executores diretos, que passaram a ser títeres locais nomeados pelos brancos, europeus e americanos. O colonialismo manteve-se enquanto sistema de exploração de riquezas. O “Movimento Descolonizador” foi apenas uma mudança de tripulação num navio que continuou a realizar as mesmas viagens, transportando os mesmos produtos entre os mesmos portos.
Não existiu qualquer movimento descolonizador, que foi e é apenas uma designação utilizada para referir o movimento de transição da administração das colónias dos funcionários das potências europeias para uma elite de funcionários e políticos negros aculturados – ditos “assimilados” ou évolués, que, no essencial, replicam os métodos dos europeus e servem os seus interesses. Em termos políticos não existe qualquer descolonização. Não existe também qualquer libertação.
Mas não existe também descolonização em termos civilizacionais. Colonizar é a instalação de um grupo de uma dada sociedade no território de outra e implica troca de experiências, saberes, valores, relações comerciais e humanas, de forma mais ou menos pacífica ou mais ou menos violenta. Colonizar é sempre uma exportação de bens civilizacionais, da língua à religião. Entre o colonizador e o colonizado estabelece-se uma relação como a de uma gota de tinta que cai num copo de água. A gota de água dissolve-se e não é possível reconstituí-la, retirá-la da água onde se dissolveu. É por isso impossível reverter a colonização, retirar dos povos colonizados o essencial do que os colonizadores levaram e lhes inculcaram.
Nós, os portugueses devíamos conhecer bem a impossibilidade de descolonizar. Fomos colonizados pelos romanos e pelos árabes, mantemos fortes marcas dessa colonização – não fomos descolonizados até hoje. Colonizámos alguns pontos do mundo, e deixámos lá as nossas marcas, como os romanos e os árabes nos tinham deixado. O Brasil, Angola, Moçambique, a Guiné, Cabo Verde, São Tomé, não foram descolonizados, tornaram-se entidades políticas independentes, estados-nação com bandeira, hino, gravatas de seda ao pescoço dos hierarcas, número de ordem nas Nações Unidas e embaixadores que falam inglês. Tanto o discurso comum da “malvada descolonização”, como da “descolonização possível” são absurdos. O discurso da “entrega” é patológico, com origem na exacerbação de sentimentos que bloqueiam o raciocínio.
As antigas colónias europeias de África não se descolonizaram, não reverteram as instituições de governo introduzidas pelas potências coloniais, retomando as suas tradições do tempo antes da chegada dos colonizadores europeus. Pelo contrário, os dirigentes dos movimentos independentistas, do movimento descolonizador do pós II Guerra, foram particularmente violentos na aniquilação das autoridades tradicionais e dos costumes ancestrais – quase sempre com o aplauso dos antigos colonizadores e das suas instituições, com relevo para a ONU e as suas agências, que os elogiaram pela luta anti-tribalista, tomada como uma acção de modernidade.
O movimento descolonizador dos pós-II guerra é um gigantesco embuste. A descolonização de África foi, de facto, a adoção pelos africanos da “ordem” do colonialismo – constituição de estados-nação com os mesmos princípios dos estados-nação que instituíram o colonialismo, imposição dos seus sistemas políticos e jurídicos, das suas línguas, até dos seus deuses e, principalmente, das suas armas, do canhangulo à AK, do jipe ao Mirage. Não existiu qualquer libertação de África, a África política e a África dos povos estão sujeitas às mesmas regras e normas dos países que enviaram os seus exploradores ao continente africano no século XIX e que o dividiram em Berlim.
O facto de não ter existido nem descolonização, nem libertação de África não é nem bom nem mau – não existiu Mal, nem Bem, nem desastrosa descolonização, nem criminosa entrega, nem falsa libertação, houve sim uma realidade: a imposição por parte das antigas e novas potências coloniais de uma nova grelha de domínio de África, de uma grelha que facilita a relação e a exploração, pois quer uma quer outra se realizam segundo a regra dominante. O resto, o que subsiste da antiga África antes do colonialismo, das danças às mezinhas dos feiticeiros é folclore que serve de atração turística. Resta uma pergunta que Alice, A Última Viúva de África e Scrame, o último dos grandes comandantes de mercenários, colocam: Porque não podem e não puderam eles e os europeus manter-se em África como africanos brancos? Porque não pode ser a África uma pátria de brancos, como foram e são as Américas?
O romance ensaia uma resposta. A ficção é mais adequada a abordar questões difíceis que a análise política e histórica…
_____________
Notas do editor
Vd. post de 13 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26683: In Memoriam (542): Carlos Matos Gomes (1946-2025), membro do MFA no CTIG, cor cav 'cmd', ref, escritor e historiógrafo, e grande amigo da Tabanca Grande
Último post da série de9 de maio de 2025 > Guiné 61/74 - P26781: In Memoriam (547): Maria Rosa Exposto, ex-alf enf pqdt (Bragança, c. 1940 - Portalegre, 2021), pertencia ao 4º curso (1964) e passou pelo CTIG... Rosa, que descanses em paz!
4 comentários:
Mais uma vez um sincero OBRIGADO a Beja Santos.
J.Belo
"O movimento descolonizador dos pós-II guerra é um gigantesco embuste".
não sei se esta frase é atribuída a alguma das figuras do livro e se está ou não no espírito do autor, e (vá lá, do próprio Beja Santos, que eu sigo sempre).
Como o livro se refere particularmente ao Congo ex-Belga, Zaire, com fronteiras com Angola, independente em 1960, a frase ajusta.se na perfeição, com colaboração da ONU-
Houve muita gente que lutou contra esse tipo de independência em Angola, mas não foi possível.
Paciência, mas que essa luta fique bem gravada na História de Portugal.
Mário,
Pela leitura deste texto chego à conclusão de que o exemplar que me entregaste com dedicatória de Matos Gomes era um exemplar dessa "... dúzia de exemplares de outra obra sua , "Soldadó"..." que encontraste no alfarrabista de Campo de Ourique. OBRIGADO.
Fiquei indisposto pelo facto de a sua obra "Guerra Colonial", conjunta com Aniceto Afonso, não fazer referência à operação "Bola de Fogo" de 1968, com quase 40 dias consecutivos de acção, na zona do Corredor de Guilege, (na qual esteve a minha CART 1689). Aliás, o meu mal-estar consta de texto publicado aqui, neste blogue, onde, talvez me tenha excedido.
Tenho grande admiração e consideração pelo escritor Matos Gomes e pela sua obra.
Também acompanhei os textos dele que vinham sendo publicados n' "A Viagem dos Argonautas".
Abraço.
Alberto Branquinho
Rosinha, a frase não é do Beja Santos, o "crítico", é do Carlos Matos Gomes, o "criador" (vem um texto que ele escreveu em vida no blogue "A Viagem dos Argonautas" que o MBS, reproduz, na íntegra, na sua nota de leitura... Por acaso, ainda não o consegui localizar... O texto tem por título (provocatório...) "A descolonização é um absurdo"... (Na nota de leitura, devia estar com aspas, ou todo em itálico, para não haver confusões sobvre quemn disse o quê, o MBS e o CMG)...
Não sei se muitos leitores africanos concordarão com o "radicalismo" da leitura do CMG (desencantada, dilacerada...) das "descolonizações"... Eu diria que é uma leitura muito a preto e a branco, quiçá etnocêntrica... Nós, europeus, se olharmos para a nossa história, também não temos motivos para sorrir, infelizmente... As independências, as democracias, as sociedades abertas e pluralistas, o desenvolvimento, o progresso, a paz... a concertação social, etc. são partos sempre muito difíceis... E nada pode ser dado como adquirido... Ao longo da história, são mais as vezes que temos estado à beira do precipício do que sentados à mesa da paz e da concordórdia...
Quem somos nós, antigos e novos colonialistas, portugueses, ingleses, franceses, alemães, espanhóis, russos, americanos, chineses, japoneses, etc,. para "dar lições aos nossos amigos africanos" ?...
Enviar um comentário