1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 7 de Maio de 2012:
Queridos amigos,
Foi um privilégio conhecer o soldado Calvário. Telefonei-lhe para a sua terra, Caçador, em Viseu, ficou feliz por saber que o seu livro fora desencantado de uma estante. Juntou a contracapa do seu diário original, onde ele registou o que se encontrava gravado num pequeno monumento situado dentro da Amura. Reproduz também uma página do seu documento.
O Leonel Barreiros tem vários livros publicados . Andou emigrado na Alemanha, foi continuo em duas escolas secundárias, andou sempre envolvido em ranchos folclóricos.
É uma alegria acolhermos mais um genuíno diário da Guiné.
Um abraço do
Mário
Diário do soldado Calvário, da Companhia de Polícia Militar 590,
Guiné 1963/1965 (3)
Beja Santos
Devemos ao diário do soldado Calvário um relato minucioso das atividades da Polícia Militar em Bissau e arredores, entre finais de 1963 e 1965. É um rol infindável de escoltas, rondas, segurança no Hospital Militar, ordenança ao comandante militar e misteres afins. Calvário é pândego, namoradeiro tipo Don Juan, gostou de Canjala, teve derriço por Arcanja Patrícia, gosta agora de Mariana e vai ficar pelo beicinho por Liége. E regista a captura de guerrilheiros, o aparecimento de armas, os bailes, as informações que lhe chegam de vários pontos do teatro de operações, quando encontra patrícios ou malta conhecida. Dá-nos igualmente um quadro vivacíssimo da caserna, das idas ao Pilão e desmandos de vária ordem durante as rondas e até fascinas ao refeitório. Tem imensa correspondência com madrinhas de guerra, o dinheiro é pouco para aquelas praças a viver as delícias citadinas, ele e os camaradas vão vender regularmente sangue, sempre são mais umas centenas de escudos para a estroina.
O alferes Mário Tomé foi promovido, a malta da PM gosta imenso dele. A religiosidade é uma das marcas de água de Calvário, como ele escreve em 12 de Outubro de 1964: “
Não faltei ao ato religioso que se celebrou na catedral”. Apesar de só o fazer de vez em quando, vive impressionado pelo Nazareno. Com frequência, somos inteirados da chegada de feridos ao Hospital Militar. As queixas sobre a alimentação levam-nos a percorrer a generalidade das tasquinhas de Bissau, ele, o Rei do Sono, o Cabo Banharia, o Entretela, o Arrentela, o Narciso, mas há muitos mais. Há aviões alvejados, dá para perceber que o armamento do PAIGC se aperfeiçoa mês após mês.
Há descrições tocantes: “
Um militar dos comandos de Angola veio visitar um irmão que acabara de chegar da metrópole. Quando estava prestes a partir para Luanda adoeceu gravemente. A doença não perdoou e morreu aos olhos do irmão”. E também: “
Um militar do B490, que sofria de úlcera, foi internado de urgência. Pouco lhe valeram as pressas. Acabou por sucumbir antes de ser operado. De olhos abertos, sem vida, ali ficou para sempre, naquela parcela do mundo vivo”. E assim se passou um ano de comissão. A PM tem artes e manhas para fugir à rotina. Logo no dia de S. Martinho vão até à caça e nesse dia assistem a um espetáculo de folclore no cinema UDIB. Vai aparecendo gente que esteve na operação Tridente, deixou sequelas, anda muita gente em consulta no hospital militar. Um camarada fala de coisas insólitas que se passaram na ilha do Como: “
A um, uma bala partiu-lhe dois dentes; a outro, furou-lhe a orelha. Um outro levou com uma bala no pescoço e saiu por o outro lado sem cuidados de maior; a um fuzileiro levou-lhe a cabeça do dedo quando carregava no gatilho. A um colega meu a bala bateu-lhe no salto da bota e arrancou-lho. Era tudo assim…”.
Recusa mostrar o diário seja a quem for. E verseja, pois claro, já leva um romanceiro longo, assim: “
A tua boca é um cravo/ Os dentes são as folhinhas/ As tuas falas me agradam/ Além de serem pouquinhas./ Sem ti são tristes os dias/ É penoso o meu viver/ Salta daí vem comigo/ Atenua o meu sofrer”. Se há muitos feridos que chegam ao hospital, também impressiona o seu registo em inúmeros desastres, envolvendo militares e civis. Deixa lavrado que consta que James Pinto Bull é dado como presidente da Guiné caso Portugal venha a dar independência à região. No final de Novembro é acionada uma mina que fez explodir uma viatura que transportava bidons de gasolina, ficaram carbonizados 10 homens. Calvário e os camaradas já não aguentam mais o arroz e o peixe do rancho, até já se insinua um levantamento de rancho. De vez em quando aparece pela Amura gente da sua região: “
Chegaram do mato os vizinhos de Fragosela. Para os recompensar das novidades que me mandava quando me escreviam, ofereci-lhes um jantar na taberna do ligeiro, com o dinheiro do sangue. Quim Bispo, Tó Vicente, Zé Pêssego, Tó Medo e furriel Lourenço, dificilmente nos voltaríamos a juntar todos naquela mesa. Na opinião de todos nós, era de facto triste ver cair um companheiro; vê-lo cheirar a flor da vida no chão da terra”.
É impressionante como Calvário é imparável nos amores, nas diversões, na galhofa, em apontar tudo quanto ouve, os guerrilheiros que se entregam, os acidentes aparatosos, a audição da rádio Argel, a alegria nas patuscadas, as peripécias nas rondas, botes que se voltam e militares que se afundaram nos rios, temo-lo de faxina à cozinha, de serviço à porta de armas, de plantão, a gozar desabridamente nas suas folgas, o serviço no hospital militar é sempre acompanhado de relatos de dor. Chegam navios repletos de tropas, ele próprio anda aturdido com a extensão daquela guerra, tanto avião cheio de bombas. A comissão avança e também os processos disciplinares crescem: as orgias do Cabo do Rancho, os que irão presos porque prometeram casar com as meninas, é um nunca mais acabar de tragicomédia. Há cada vez mais álcool e farras com o passar dos meses. Cresce a pancadaria na caserna.
É uma arte tratar matéria comezinha com tanto enredo e cores vivas, a sinceridade de Calvário impõe-se nesta escrita do quotidiano, é um processo infatigável de se encontrar, era nesta escrita que ele aportava como numa enseada de serenidade, vagabundeia, olha as estrelas, o Geba, vibra com todos os seus engates o que lhe permite escrever coisas como: “
Achávamos tudo tão inocente naquelas horas que chegávamos a procurar a nós próprios que raio andávamos por ali a fazer”. Calvário anda dividido, ama Mariana mas quer regressar descomprometido. Os encontros são descritos com sensualidade discreta: “
Brincamos como duas crianças e acabámos trancados nos braços um do outro como dois amados legítimos. Despedimo-nos daquela noite com o respirar leve de quem amava e sofria sem saber do seu futuro”.
Estamos nos reboliços dos últimos dias, há ainda mais cenas de paixão, o embarque avizinha-se, Calvário descreve a euforia da partida. Faz o discurso do adeus a Bissau e escreve: “
E, quando fores país, que a tua felicidade prospere e cresça, sem barreiras. Que as tuas necessidades cresçam no pleno esplendor da democracia. Desejo-te um destino nobre”. O navio “Niassa” chega à rocha de Conde de Óbidos, lá está a sua mãe para o abraçar. E assim conclui: “
Hoje, nos momentos curtos e loucos em que escrevo, debruço-me sobre a folha branca e procuro-lhe fazer o mais belo poema da minha vida (refere-se à madrinha de guerra que virá a ser sua mulher) mas a grande ansiedade de começá-lo faz com que tudo se me afunde”.
Leonel Barreiros enviou-me, autorizando a divulgação no blogue, de elementos do seu diário. A carta que me enviou termina assim:
“
Rezo por aquele belo povo guineense para que procure a sorte de caminhar por caminhos novos e diferentes, mesmo dentro dos perigos e guerras forçadas, a que tanto tem estado sujeito.
Abraços fraternos do seu amigo Calvário”.
Em 2009 ele conclui o 12.º ano de escolaridade. Tem 11 livros publicados. Este achado trouxe-me ainda mais entusiasmo para continuar a ler esta literatura escondida em edições de autor, estou em crer que há pedras preciosas, pepitas de ouro a juntar para o tesouro da literatura da guerra da Guiné.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 18 de Junho de 2012 >
Guiné 63/74 - P10045: Notas de leitura (370): "Bissau, Entre o Amor e a Guerra", de Leonel C. Barreiros (2) (Mário Beja Santos)