B. Sétima carta: Universidade
No princípio de Outubro de 1966, começaram as aulas de Direito. Estava ansioso. Tomei o autocarro para o Campo Grande. Estou a lembrar-me de o atravessar apressado, com uma mala, e subir a pé a alameda da universidade.
Fui o primeiro aluno a entrar no anfiteatro onde ia assistir à primeira aula. Um grande salão em escadaria de balcões, como num cinema. No palco, ficava, imponente, a secretária do professor. Tive a noção exacta de que aquele, sendo o meu curso inicial, não seria com ele que eu chegaria ao fim. E senti-me triste.
Dentro em pouco estaria casado e a trabalhar. Sabia que não ia adiar a vinda dos filhos por causa do curso. Os colegas começaram a entrar e a ocupar as cadeiras livremente. Eu escolhi uma da coxia na 4ª fila. Para poder alcançar tudo bem.
Eram todos mais novos que eu. Rapazes e raparigas. Muito tenros. Tinham acabado o liceu. Lembro-me duma colega que viria a ser célebre, a Leonor Beleza, e doutro, o… O resto era tudo desconhecido. As aulas iriam acontecer lentamente, no dia a dia. Sem provas nem frequências. Exame, só no final do ano.
Se corresse tudo bem, teria de esperar cinco anos pelo fim do curso. O ramerrame do dia-a-dia, no meio daquela turma de gente muito mais jovem que eu, era-me muito desagradável. As mentalidades eram naturalmente diversas.
Eram todos mais novos que eu. Rapazes e raparigas. Muito tenros. Tinham acabado o liceu. Lembro-me duma colega que viria a ser célebre, a Leonor Beleza, e doutro, o… O resto era tudo desconhecido. As aulas iriam acontecer lentamente, no dia a dia. Sem provas nem frequências. Exame, só no final do ano.
Se corresse tudo bem, teria de esperar cinco anos pelo fim do curso. O ramerrame do dia-a-dia, no meio daquela turma de gente muito mais jovem que eu, era-me muito desagradável. As mentalidades eram naturalmente diversas.
Tinha de avançar noutro ritmo. Eu sabia que poderia utilizar o regime de estudante-militar. Nele, preparar-me-ia por mim, e, quando entendesse que estava habilitado, requeria exame. Em qualquer data. Era uma pequena compensação para quem tinha perdido tempo no serviço militar. Abalancei-me a utilizar esse regime.
Depressa me apercebi de que os professores não gostavam muito dos estudantes trabalhadores, muito menos de ex-militares. Tinha sido uma imposição do governo. Quem sofria éramos nós. As notas eram baixas, à partida. Muito facilmente se reprovava. Bastava um deslize estava tudo perdido. Havia que repetir. Com mais duas tentativas. Se chumbasse três vezes, estava erradicado da universidade nessa cadeira. Só noutra faculdade. A única existente era Coimbra.
Foi o que aconteceu numa das primeiras cadeiras do segundo ano. Teoria Geral de Direito. O professor era o célebre Paulo Cunha [, 1908-1986]. Um catedrático veterano, distante e pomposo. Um vozeirão de meter medo. Fui ao exame oral. A tremer de medo. Sentado diante daquela bisarma, lá em cima no seu cadeirão, varreu-se- me tudo da cabeça, à primeira questão que me pôs:
- O aluno vai dizer-me quais os vícios da vontade na formação do contrato. – foi a primeira pergunta. Dá pano para muita manga.
- O aluno vai dizer-me quais os vícios da vontade na formação do contrato. – foi a primeira pergunta. Dá pano para muita manga.
Eu sabia que a lista dos vícios era uma fila enorme. Ocupava folhas e folhas na sebenta.Todos muito ligados uns aos outros por ligeiras nuances que teriam de ser logo muito bem distinguidas e explicadas.
Num primeiro momento, fiquei atordoado. Não me lembrava, rigorosamente, de nenhum. Fiquei calado por instantes. Eu sabia que não podia demorar muito. Numa tentativa de me desenlaçar, respondi para o ar:
- Os vícios da vontade na formação da vontade… são sete.
Ele sorriu.
- Como os sete pecados mortais?... - gracejou.
- Bem. Então vamos ao primeiro.
Mais uns momentos de silêncio. E nada. Bom. Tenho de desistir, para não chumbar.
Foi o que fiz.
- Senhor Professor! Quero desistir…
- Porquê? Não quer tentar mais um pouco?
Num primeiro momento, fiquei atordoado. Não me lembrava, rigorosamente, de nenhum. Fiquei calado por instantes. Eu sabia que não podia demorar muito. Numa tentativa de me desenlaçar, respondi para o ar:
- Os vícios da vontade na formação da vontade… são sete.
Ele sorriu.
- Como os sete pecados mortais?... - gracejou.
- Bem. Então vamos ao primeiro.
Mais uns momentos de silêncio. E nada. Bom. Tenho de desistir, para não chumbar.
Foi o que fiz.
- Senhor Professor! Quero desistir…
- Porquê? Não quer tentar mais um pouco?
Fiquei calado, a ver se recuperava a memória. Afinal, eu tinha-os estudado muito bem. Não deu certo.
- Bem, então pode levantar-se. Voltará cá outra vez. - disse o professor.
Grande desaire!... A partir daí, foi uma desgraça. Eu que sempre fora um aluno superior, não habituado a chumbar, a dispensar da oral, passei a levar de todos. Tinha entrado automaticamente para o lote dos que deveriam ser escorraçados da faculdade.
A minha luta, porém, foi titânica. Nunca desarmei. Ia dando em maluco. Eu e a namorada que viria a ser a minha mulher, a breve trecho.
Grande desaire!... A partir daí, foi uma desgraça. Eu que sempre fora um aluno superior, não habituado a chumbar, a dispensar da oral, passei a levar de todos. Tinha entrado automaticamente para o lote dos que deveriam ser escorraçados da faculdade.
A minha luta, porém, foi titânica. Nunca desarmei. Ia dando em maluco. Eu e a namorada que viria a ser a minha mulher, a breve trecho.
Andei a caminhar para a faculdade como um viciado ou que vai à missa, a todas as horas, durante anos e anos. Não havia recanto ou café de Lisboa onde não tivesse estado a estudar. Até nas maternidades, quando acompanhava a mulher, no nascimento de mais um filho. Cheguei a levar o primogénito, o Paulo Alexandre, aí com uns 3 a 4 anitos, a ver as notas dum exame, na pauta.
Os colegas que ali estavam puseram-se a brincar com ele. Nas correrias, as calças caíram-lhe pelas pernas abaixo e ficou com o rabito ao léu… foi uma risota no átrio. Nunca mais esqueci.
Os colegas que ali estavam puseram-se a brincar com ele. Nas correrias, as calças caíram-lhe pelas pernas abaixo e ficou com o rabito ao léu… foi uma risota no átrio. Nunca mais esqueci.
Entretanto, a situação política do país e a internacional, tinha evoluído muito. Com grandes manchetes. Em 1967, subitamente, Israel, sob o comando do Moshe Dyan, invade a Palestina, com um poderio bélico de tal ordem, que sufocou o adversário em meia dúzia de dias, com o espanto de todo mundo.
Cá dentro, a guerra colonial agravava-se num crescendo assustador. Como alimentá-la em material e homens?...As gerações jovens estavam cada vez mais esclarecidas. Começava a dar-se uma hemorragia preocupante, deles para o estrangeiro, na hora de se apresentarem. Portugal estava a ser flagelado nos aerópagos internacionais, pela adversidade de todos os países ocidentais.
A polícia política exaspera-se, de dia para dia, na caça aos comunistas clandestinos que desestabilizavam as universidades e as empresas. A universidade torna-se palco de pancadaria pelos corredores e escadas, entre os “gorilas” (uma tropa de seguranças escolhidos a dedo) e os estudantes “insurrectos”. Cada vez se tornava mais difícil salvaguardar o regular funcionamento das aulas.
A mim, não me preocupava essa pancadaria. Já tinha feito a minha guerra. Não tomava partido por nada. Um clima de incerteza geral e de preocupação instala-se na universidade. Havia que concluir o curso o mais depressa possível.
Quando, em 1974 se desencadeia o vinte cinco de Abril, eu estava quase a concluir o 4º ano. Durante os dias que se seguiram ao golpe, as universidades colapsaram com as rebeliões internas. Os saneamentos dos professores, a torto e a direito, despovoaram as cátedras de mestres. Era a vingança da estudantada.
Não se sabe donde, surgem mil movimentos ideológicos que querem apoderar-se das rédeas das escolas superiores. Os confrontos, agora, passaram a ser entre os MEC {, Movimento Estudantil Comunista] e os MRPP [, Movimento de Reorganização do Proletariado Português], comunistas e maoístas…
A mim, não me preocupava essa pancadaria. Já tinha feito a minha guerra. Não tomava partido por nada. Um clima de incerteza geral e de preocupação instala-se na universidade. Havia que concluir o curso o mais depressa possível.
Quando, em 1974 se desencadeia o vinte cinco de Abril, eu estava quase a concluir o 4º ano. Durante os dias que se seguiram ao golpe, as universidades colapsaram com as rebeliões internas. Os saneamentos dos professores, a torto e a direito, despovoaram as cátedras de mestres. Era a vingança da estudantada.
Não se sabe donde, surgem mil movimentos ideológicos que querem apoderar-se das rédeas das escolas superiores. Os confrontos, agora, passaram a ser entre os MEC {, Movimento Estudantil Comunista] e os MRPP [, Movimento de Reorganização do Proletariado Português], comunistas e maoístas…
Sucedem-se repetidas RGAS (e uniões gerais de alunos) para se obterem votações directas. Os estudantes eram quem tinha o poder de traçar rumos para a universidade. Verdadeiras batalhas campais, com muita violência, martirizavam aquelas magnas assembleias, sem se chegar a conclusão nenhuma. Só pela alta madrugada, quando já se tinham ido embora a maior parte dos estudantes, é que vinham as decisões.
Tudo foi posto em causa. Rasgaram-se os programas de ensino. Ensaiaram-se os métodos e currículos o mais utópicos que se possa imaginar. Foi uma terrível frustração geral. Parecia que nunca mais as Universidades funcionariam outra vez.
Tudo foi posto em causa. Rasgaram-se os programas de ensino. Ensaiaram-se os métodos e currículos o mais utópicos que se possa imaginar. Foi uma terrível frustração geral. Parecia que nunca mais as Universidades funcionariam outra vez.
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Nota do editor:
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