ou na autoestrada da vida, ao km 40, 50, 60).
ouvi o telejornalista de serviço
(fez-me lembrar o porta-voz
do tribunal do santo ofício
que condenou à fogueira o tetravô
do meu tetravô, cristão-novo de penamacor).
o inquisidor-mor malha nas mulheres portugas
que estão a estragar as estatísticas sanitárias.
diz o senhor diretor geral:
os portugas ainda podem orgulhar-se,
(ao menos, valha-nos isso!),
de serem os menos fumadores da eurolândia.
repete o loquaz locutor:
não fumar está na moda.
é politicamente correto, é fixe.
faz à bem à saúde e à carteira.
os portugas que não fumam ou deixaram de fumar
estão na moda, são fixes.
eu, fumador, de maço e meio, me confesso.
desde tancos, ou figo maduro, ou bissalanca,
já não sei onde nem quando comecei a fumar,
mas foi na tropa.
não quero estar na moda, não quero ser fixe.
quero e não quero deixar de fumar,
mas temo o cerco,
como em guidaje.
cerco, é isso.
os tempos são bons para apertar o cerco
aos fumantes. aos novos párias sociais,
aos desalinhados, aos marginais-secantes,
às amplas minorias, aos novos inimigos da ordem pública.
o pretexto pode ser a nova peste branca,
a pandemia da gripe,
o direito à saúde,
a economia da saúde,
os direitos e liberdades e garantias dos não fumadores,
o fumo passivo,
mais as contas públicas, o endividamento das famílias,
o exemplo (triste) do cowboy da marlboro
que era gay e morreu de cancro,
a nova ética do trabalho,
ou a falta de ética e de trabalho,
o sobreaquecimento do planeta,
o medo e sobretudo o medo do medo,
a produtividade do trabalho,
a competitividade das empresas,
a identidade da nação,
a incultura do tabaco,
a globabilização, e a verdade trágica das estatísticas da saúde,
os superiores desígnios do estado e o seu biopoder,
enfim, e não menos importante,
a poluição tabágica,
que além dos pulmões dos colarinhos azuis
e do resto do corpinho da gente,
dá cabo da pintura dos tetos e das paredes,
do sistema de ar condicionado,
dos microequipamentos,
dos circuitos integrados dos computadores,
das mother boards, dos chips,
das placas gráficas,
dos neurónios dos colarinhos brancos e dourados,
da testosterona da dream team,
dos satélites das telecomunicações,
dos estofos do carro do patrão,
da pele de veludo da gaja do patrão,
do clima organizacional da empresa,
da missão, dos valores, da estratégia,
do ranking de portugal no mundo.
o tabaco que mata meio milhão de eurolandeses por ano,
morrem que nem tordos, dizem,
diz o sanitário de serviço,
doze mil, falando só de portugas.
mais num ano do que em 13 anos de guerra colonial,
e o mulherio a dar cabo da estatística,
diz a senhora enfermeira lá da fábrica!
não vi, todavia,
as empresas portuguesas seguirem o exemplo
das suas congéneres multinacionais
que operam cá no burgo,
como a ibm ou a siemens ou a cisco,
não vi os senhores gestores engravatados lá da minha guerra
virem à televisão dizer com orgulho:
somos mais uma smoke free company,
somos amigos do ambiente,
somos gajos decentes,
somos verde-rubros,
somos patriotas,
não fumem, seus idiotas,
criamos riqueza e saúde,
não fume, seus cabrões,
que o tabaco dá cabo do tesão!...
não, eles, os senhores e as senhoras da gestão do pessoal,
os senhores engenheiros da organização e métodos,
eles e elas, não têm lata para o fazer,
porque antes disso teriam que dar o exemplo,
e mostrar que também dão bons exemplos
de boas práticas noutras matérias
como a proteção ambiental,
a ergonomia da minha máquina de comando numérico,
o apoio aos órfãos e viúvas
dos operários que morreram a trabalhar,
a proteção da saúde e segurança dos trabalhadores,
a consulta e a participação do zé portuga,
a cidadania organizacional,
ou lá o que isso queira dizer,
as boas contas, o blá-blá, coisa e tal,
a garantia do trabalho decente,
o sentido de responsabilidade social,
e toda blá-blá de merda que os gajos e as gajas usam.
e a propósito:
alguém sabe explicar-me
o que é isso de trabalho decente, vida decente,
salário decente, condições de trabalho decentes,
cuidados de saúde de decentes,
ambiente decente, educação decente, habitação decente,
saúde mental decente, intimidade decente,
privacidade decente, humanidade decente ?
também eu quero viver
decentemente,
respirar decentemente,
comer decentemente,
amar decentemente,
envelhecer decentemente
e morrer decentemente.
hoje é dia mundial do não fumador,
uma vez por ano, todos os anos,
só não o foi na minha parvónia dos arrabaldes,
nem na caserna da minha memória,
nem no tasco que eu frequento,
nem na fábrica onde eu trabalho,
nem no meu bairro (social)
onde não há trabalho decente para a gente
nem dinheiro para o tabaco que engana a fome,
e a apagada e vil tristeza do nosso quotidiano.
e a angústia do amanhã sem amanhã,
a falta de graveto, pilim ou guita
para oferecer uma rosa à patroa
que agora vai fazer cinquenta anos
e é mais nova do que eu.
hoje foi um dia trivial,
como os outros,
não dei por nada de especial.
hoje o estado arrecadou mais de 600 mil euros
de imposto sobre o vício de fumar,
33 homens e mulheres, meus compatriotas, morreram
de doenças relacionadas com o tabagismo,
não vi nem ouvi os senhores ministros preocuparem-se
com os que trabucam e fumam,
com os pobres que fumam e que vão morrer,
vão morrer do trabalho e do cigarro e do cancro do pulmão,
tal como os outros que não fumam,
nunca fumaram ou deixaram de fumar.
ou que não trabalham.
um dia todos vamos morrerm
conheço essa teoria, a da dissonância cognitiva,
diz-me o doutor médico do trabalho lá da fábrica
e que até é um gajo porreiro
porque fuma,
tem paleio p'ra malta do fato macaco
e sabe que fumar e trabalhar fazem à mal saúde,
a gente precisa sempre de um bom alibi,
quer dizer uma desculpa,
para adiar a puta da morte
ou fintar a morte como na guiné,
a gente precisa de esconjurar a morte,
a malapata, a doença, a dor,
os medos, os fantasmas da noite,
a mina anticarro ou a emboscada na picada para guidaje.
a travessia do cacheu, a subida ao céu na ponte do jagarajá.
a descida ao inferno de gadamael,
o trânsito no purgatório do xime,
o juízo final em guileje,
o helicanhão a varrer o chão no choquemone,
a danação eterna em canquelifá.
amen, padre nosso, avé-maria
que deus tenha em santo descanso
os meus pobres camaradas que lá ficaram
e que eu tive de deixar para trás.
minto: o senhor ministro da saúde
que também o é da saúde pública,
da saúde da gente,
das crianças que estão no ventre
das mães toxicodependentes e das mães fumadoras
e das mães operárias do vale do ave,
o senhor ministro
acaba de anunciar a sua (dele e do governo) intenção
de aumentar o número de consultas hospitalares
de desabituação tabágica.
eu aplaudo,
com duas mãos e um rajada de gê três
que era a minha gaja na centésima vigésima qualquer coisa
companhia de caçadores paraquedistas.
de setenta e dois a setenta e quatro,
na guiné, longe do vietname.
mas quantas (consultas) não disse, o senhor ministro da doença,
nem onde nem com que meiosm
ele há montes de tugas a pedir ajuda,
não há técnicos para as encomendas,
e, os que há, são voluntários.
psicólogos à procura de espaço de trabalho
no mundo das batas brancas.
há listas de espera de dois anos,
para este tipo de consulta,
no serviço nacional de saúde
sua excelência bem sabe melhor do que eu.
e a propósito: diz-se desabituação
ou cessação tabágica ?
cessação, dizem os puristas.
que fumar é uma doença,
uma pestilência,
um pecado mortal,
um gajo morre e ainda por cima vai para o inferno.
mas o que é que um gajo como eu,
ex-combatente,
fumador compulsivo, de maço e picos
(que a guita não dá para mais),
faz em dois anos ?
dá em doido ?
morre de cancro ?
estoira com os miolos ?
trepa pelas paredes acima ?
em dois anos um portuga fumante como eu
acendeu pelo menos 21900 vezes o isqueiro,
fumou pelo menos 21900 cigarros (fora o cravanço).
ficou exposto a 4 mil produtos químicos
vezes 22 mil cigarros,
ou serão 5 mil ?
mais mil menos mil, tanto faz.
por conseguinte, um gajo está arrumado
ao fim de dois anos de espera na lista de espera
e a continuar a fumar,
e a trabucar.
e a pagar o imposto do vício,
a tirar o leitinho àd criancinhas,
e a foder o coirão, como no morés ou no fiofiili.
eu queria deixar de fumar,
sinceramente queria deixar de fumar,
talvez alguém me possa ajudar,
lá em casa todos fumam.
e as mulheres (a patroa e as duas filhas)
mais do que os homens.
eu fico, por isso, sensibilizado
com a sensibilidade do senhor ministro da saúde,
que é doutor e é um gajo bestial,
que se preocupa com a gente.
com os que não fumam
e apanham com o fumo dos que fumam,
mas também com os que fumam e trabalham como eu,
que fiz e perdi a guerra dita colonial,
classe operária, malandra, tunante,
grevista, marginal, quezilenta,
todos feios, porcos e maus,
e fumante como eu,
embora em vias de extinção
enquanto classe mal comportada,
e pior qualificada.
no dia mundial do não fumador,
eu pichei no muro do cemitério,
a caminho da fábrica,
fumo, logo existo.
imaginem se eu não fumasse:
estava tramado,
ninguém se preocupava comigo,
mas neste dia tenho a certeza que
alguém se preocupou comigo,
um ministro da saúde,
médicos, enfermeiros, psicólogos.
padres, polícias, jornalistas, amigos.
cangalheiros, coveiros.
educadores, doutores em ética,
teólogos, estatistas, informáticos,
locutores da TV, radialistas, epidemiólogos,
patrões do século vinte e um,
gestores do capital humano,
técnicos de seguros, sociólogos
e até banqueiros,
tudo gente importante e séria e engravatada.
hoje houve gente que se preocupou comigo.
e isso tocou-me,
deixou-me sensibilizado,
senti-me importante,
mesmo que sozinho no meio da multidão do metro.
de casa para o trabalho e viceversa, cansado.
talvez eu ainda tenha sorte,
e vá a tempo de me inscrever
numa consulta de desabituação
(perdão, cessação) tabágica
em 2005,
mesmo com meio pulmão,
bem humorado,
a sorrir à vida e a piscar um olho à morte,
ou talvez morra antes, de febre hemorrágica.
ou de uma simples constipação,
ou passado a ferro na passadeira para peões,
numa qualquer sexta-feira à noite
onde há gajos, bêbedos, de carro
com licença para matar,
como eu como me deram um gê três